São Paulo, domingo, 10 de dezembro de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ Livros

Nietzsche em potência

Em "Introdução à Tragédia de Sófocles", o pensador busca a superação da filologia e da filosofia

OSWALDO GIACOIA JR.
ESPECIAL PARA A FOLHA

Com a publicação dessas preleções, a coleção Estéticas (ed. Jorge Zahar) brinda o leitor interessado em arte e filosofia com uma preciosidade de valor extraordinário, tanto como curiosidade histórico-filológica como por sua relevância teórica.
"Contribuição à História da Tragédia Grega" e "Introdução à Tragédia de Sófocles" são preleções proferidas por Friedrich Nietzsche no semestre de verão de 1870, na universidade suíça da Basiléia.
Com outros textos contemporâneos, como "O Drama Musical Grego", "Sócrates e a Tragédia" e "A Visão Dionisíaca do Mundo" (Martins Fontes), marca uma etapa importante na preparação do primeiro grande livro publicado por Nietzsche, em 1872: "O Nascimento da Tragédia", que expõe a metafísica de artista do jovem Nietzsche (1844-1900) e constitui uma das principais referências da estética e da filosofia contemporâneas.

Frustração
Em tradução extremamente refinada e cuidadosa -acompanhada por notas histórico-críticas que auxiliam a compreensão do texto, o entendimento de conjunto da filosofia de Nietzsche assim como sua inserção no movimento cultural que vai do romantismo ao final do idealismo alemão-, o texto situa Nietzsche na cena cultural de sua época, mostrando a recepção sempre lúcida e crítica das fontes de que se vale o filósofo.
Nesse sentido, as preleções esclarecem as razões da polêmica que envolveu a publicação de "O Nascimento da Tragédia", que talvez tenha contribuído para a frustração de Nietzsche com a filosofia universitária alemã (cujo modelo era seguido na parte suíça de língua alemã), levando-o a abandoná-la, dez anos depois de sua precoce consagração, em 1869, como catedrático de filologia clássica na Basiléia.
"Introdução à Tragédia de Sófocles" traz à luz o entendimento heterodoxo por Nietzsche da ciência filológica, que não deveria limitar-se à verdade histórica nem apenas à crítica rigorosa das fontes documentais -ainda que não pudesse descurar delas.
A preleção já evidencia, bem antes de "O Nascimento da Tragédia", que a erudição filológica somente adquire sentido como meio para a realização do ideal humanista de frutificação do presente pelo conhecimento do passado, para o vínculo entre os interesses científicos, as urgências da vida e as necessidades da cultura.
Como indica o tradutor brasileiro, filologia e filosofia não se perfilam, para Nietzsche, como domínios separados; respeitadas as especificidades, trata-se também de "pouco a pouco construir uma espécie de terceiro registro, de terceira possibilidade, qual seja, a de uma reflexão filosófica que tomasse a seu serviço a filologia, naquilo que esta, segundo Nietzsche, teria de melhor: a implosão de todo e qualquer significado transcendente, que pudesse enfim servir como um referente último, uma verdade absoluta".
Essa "terceira margem" entre filologia e filosofia, a estrita confissão da especialidade acadêmica jamais perdoaria Nietzsche. No entanto será ela, desde o início buscada e alcançada, que marcará o estilo de toda sua filosofia, sendo um dos principais recursos de suas mais geniais criações.

Jovem filósofo
A presente edição das preleções se pauta pelos critérios de rigor histórico-filológico característicos da edição crítica de Nietzsche por G. Colli, M. Montinari e sucessores. Trata-se de uma contribuição maiúscula para os estudos brasileiros sobre a filosofia de Nietzsche mas também sobre história da arte, estética e história das idéias.
Ela permite compreender melhor aspectos essenciais do pensamento do jovem Nietzsche, sobretudo o movimento genético de constituição e desenvolvimento de seus principais temas e problemas. Assim, por exemplo, o papel ambíguo de Eurípides; consumador da morte da tragédia, é ele, no entanto, quem fornece, com "As Bacantes", o modelo básico do dionisíaco. O mesmo vale para a influência das fontes recepcionadas criticamente por Nietzsche -particularmente Lessing, Schiller, Wagner e August Schlegel.
Além disso, o livro permite um olhar no gabinete de trabalho do professor Nietzsche, revelando o cuidado e o esmero na preparação das aulas, em fecundo diálogo com a ciência de seu tempo.

Culminância do trágico
Isso se evidencia a propósito da posição de Sófocles em relação a Ésquilo e Eurípides, que se altera radicalmente no intervalo entre a "Introdução à Tragédia de Sófocles" e "O Nascimento da Tragédia". Isso ilustra um momento importante na formação do pensamento de Nietzsche, sua posição no clássico debate iniciado por Aristóteles sobre "Édipo Rei" como culminância do gênero trágico.
Tendo em vista a riqueza dos elementos dessas preleções -seja em perspectiva histórico-filosófica, seja em relação às concepções originais de Nietzsche sobre o sentido dos mistérios dionisíacos, a importância do coro ditirâmbico na tragédia, as relações entre o drama musical, a cultura, a religião e a política-, elas ajudam a entender a ressignificação do trágico-dionisíaco na filosofia madura de Nietzsche.


OSWALDO GIACOIA JR. é doutor em filosofia pela Universidade Livre de Berlim e professor da Universidade Estadual de Campinas.

INTRODUÇÃO À TRAGÉDIA DE SÓFOCLES
Autor:
Friedrich Nietzsche
Tradução: Ernani Chaves
Editora: Jorge Zahar
Quanto: R$ 19 (96 págs.)



Texto Anterior: + Lançamentos
Próximo Texto: O trágico na história é tema de estudo
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.