São Paulo, domingo, 10 de dezembro de 2006

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2x Kafka

Saem no Brasil os quadrinhos do desenhista americano Robert Crumb que recriam a vida e a obra do autor de "O Processo"

JOCA REINERS TERRON
ESPECIAL PARA A FOLHA

As edições estrangeiras originais de "Kafka de Crumb" [de David Zane Mairowitz e Robert Crumb, ed. Relume Dumará, trad. José Gradel, 176 págs., R$ 34,90] cometeram um tremendo equívoco, minimizado na edição brasileira, que é o de ostentarem títulos como "Introducing Kafka" (Kafka para Principiantes).
Tais nomes induzem a pensar que o formidável perfil biográfico escrito por David Zane Mairowitz (autor de outros do gênero "Introducing", dedicados a Albert Camus, Wilhelm Reich etc.) é um texto barato com fins didáticos, o que passa a quilômetros da verdade.
A edição brasileira, entretanto, reservou-se o direito de cometer outro engano: embora tenha retirado a ênfase no didatismo, também diminuiu drasticamente a importância de Mairowitz na obra, privilegiando a presença do magnífico (e muito mais conhecido) quadrinista Robert Crumb no título do livro. Tremenda injustiça, sem dúvida, e que bem pode receber o adjetivo de "kafkiana", precisamente uma das pedras de toque de Mairowitz, a tentativa de elucidar o freqüente (ele de novo) equívoco na adoção contemporânea do termo.

Atmosfera de pesadelo
"Kafkiano" é o que, além de remeter à obra de Kafka (1883-1924), "evoca uma atmosfera de pesadelo, de absurdo, especialmente em um contexto burocrático que escapa a qualquer lógica ou racionalidade", de acordo com o Houaiss.
Mairowitz procura balizar o leitor, fornecendo o contexto em que foi criada uma das maiores obras satíricas da modernidade. Refere-se, portanto, à burocracia sem face legada ao mundo pelo eficiente Império Austro-Húngaro e à complexa ironia judaica das fábulas do escritor nascido em 1883 -tcheco de nascimento que sempre escreveu em alemão (a língua oficial do império) e proveniente de família judaica "assimilada".
Kafka era o retrato perfeito de sua era e de sua situação geográfica, portanto: falando alemão e nascido tcheco, não era nem um nem outro. Sendo judeu, era odiado por ambos, às vésperas do acirramento dos nacionalismos que fariam tremer o século 20.
Está tudo ali, entre as hachuras de Crumb (1943): os labirínticos guetos de Praga (um dos mais antigos da Europa) povoados de lendas (como a do Gólem, supostamente enterrado na sinagoga Altneu, cujo prédio -dos mais sinistros- fica em Josefov, o gueto em que Kafka cresceu) e o passado de santos talmúdicos e cabalistas guinchando pelos labirintos sombrios da cidade cheia de ratos.

Brueghel da América
O traço do lendário pai de "Fritz, the Cat" integra-se com perfeição a esse universo e à maneira como Mairowitz entrelaça biografia a adaptações em quadrinhos das obras-primas neuróticas e hipersensíveis de Kafka. Em momento mais realista, Crumb faz jus ao epíteto de "Brueghel da América".
Em seu notável (e certamente mais substancial) perfil biográfico de Franz Kafka, o ensaísta italiano Pietro Citati menciona episódio ocorrido no final da vida do escritor tcheco: em viagem a Berlim com Dora Dymant, Kafka conheceu certa menina que havia perdido a boneca e se encontrava desolada. Na tentativa de consolo, Kafka afirmou à garota que a boneca partira, mas deixara aos seus cuidados uma carta destinada a ela. Assim, prometeu à pequena retornar no dia seguinte com a mensagem. E cumpriu, trazendo a carta escrita na noite anterior narrando as peripécias da boneca em viagens por lugares desconhecidos, prosseguindo com o jogo por mais três semanas, até que a menina esquecesse a perda e se interessasse apenas pela ficção.
Esse contraponto lírico surgido nos estertores da breve existência de Franz Kafka contrasta imensamente com sua obra, zona de sombra onde não há esperança e o único luzir é apenas nosso rápido reflexo nos dentes de quem nos devora ou apenas ri de nós.


JOCA REINERS TERRON é escritor, autor de "Sonho Interrompido por Guilhotina" (Casa da Palavra) e "Hotel Hell" (Livros do Mal).


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