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2x Kafka
Saem no Brasil os quadrinhos do desenhista americano Robert Crumb que
recriam a vida e a obra do autor de "O Processo"
JOCA REINERS TERRON
ESPECIAL PARA A FOLHA
As edições estrangeiras originais de
"Kafka de Crumb"
[de David Zane
Mairowitz e Robert
Crumb, ed. Relume Dumará,
trad. José Gradel, 176 págs., R$
34,90] cometeram um tremendo equívoco, minimizado na
edição brasileira, que é o de ostentarem títulos como "Introducing Kafka" (Kafka para
Principiantes).
Tais nomes induzem a pensar que o formidável perfil biográfico escrito por David Zane
Mairowitz (autor de outros do
gênero "Introducing", dedicados a Albert Camus, Wilhelm
Reich etc.) é um texto barato
com fins didáticos, o que passa
a quilômetros da verdade.
A edição brasileira, entretanto, reservou-se o direito de cometer outro engano: embora
tenha retirado a ênfase no didatismo, também diminuiu
drasticamente a importância
de Mairowitz na obra, privilegiando a presença do magnífico
(e muito mais conhecido) quadrinista Robert Crumb no título do livro.
Tremenda injustiça, sem dúvida, e que bem pode receber o
adjetivo de "kafkiana", precisamente uma das pedras de toque de Mairowitz, a tentativa
de elucidar o freqüente (ele de
novo) equívoco na adoção contemporânea do termo.
Atmosfera de pesadelo
"Kafkiano" é o que, além de
remeter à obra de Kafka (1883-1924), "evoca uma atmosfera
de pesadelo, de absurdo, especialmente em um contexto burocrático que escapa a qualquer
lógica ou racionalidade", de
acordo com o Houaiss.
Mairowitz procura balizar o
leitor, fornecendo o contexto
em que foi criada uma das
maiores obras satíricas da modernidade.
Refere-se, portanto, à burocracia sem face legada ao mundo pelo eficiente Império Austro-Húngaro e à complexa ironia judaica das fábulas do escritor nascido em 1883 -tcheco
de nascimento que sempre escreveu em alemão (a língua oficial do império) e proveniente
de família judaica "assimilada".
Kafka era o retrato perfeito
de sua era e de sua situação geográfica, portanto: falando alemão e nascido tcheco, não era
nem um nem outro. Sendo judeu, era odiado por ambos, às
vésperas do acirramento dos
nacionalismos que fariam tremer o século 20.
Está tudo ali, entre as hachuras de Crumb (1943): os labirínticos guetos de Praga (um dos
mais antigos da Europa) povoados de lendas (como a do Gólem, supostamente enterrado
na sinagoga Altneu, cujo prédio
-dos mais sinistros- fica em
Josefov, o gueto em que Kafka
cresceu) e o passado de santos
talmúdicos e cabalistas guinchando pelos labirintos sombrios da cidade cheia de ratos.
Brueghel da América
O traço do lendário pai de
"Fritz, the Cat" integra-se com
perfeição a esse universo e à
maneira como Mairowitz entrelaça biografia a adaptações
em quadrinhos das obras-primas neuróticas e hipersensíveis de Kafka.
Em momento mais realista,
Crumb faz jus ao epíteto de
"Brueghel da América".
Em seu notável (e certamente mais substancial) perfil biográfico de Franz Kafka, o ensaísta italiano Pietro Citati
menciona episódio ocorrido no
final da vida do escritor tcheco:
em viagem a Berlim com Dora
Dymant, Kafka conheceu certa
menina que havia perdido a boneca e se encontrava desolada.
Na tentativa de consolo, Kafka afirmou à garota que a boneca partira, mas deixara aos seus
cuidados uma carta destinada a
ela. Assim, prometeu à pequena retornar no dia seguinte
com a mensagem. E cumpriu,
trazendo a carta escrita na noite anterior narrando as peripécias da boneca em viagens por
lugares desconhecidos, prosseguindo com o jogo por mais três
semanas, até que a menina esquecesse a perda e se interessasse apenas pela ficção.
Esse contraponto lírico surgido nos estertores da breve
existência de Franz Kafka contrasta imensamente com sua
obra, zona de sombra onde não
há esperança e o único luzir é
apenas nosso rápido reflexo
nos dentes de quem nos devora
ou apenas ri de nós.
JOCA REINERS TERRON é escritor, autor de
"Sonho Interrompido por Guilhotina" (Casa da
Palavra) e "Hotel Hell" (Livros do Mal).
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