São Paulo, domingo, 11 de janeiro de 2004

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"Outros Escritos" traz ensaios teóricos e textos de valor histórico, como "Ato de Fundação", sobre a inauguração da Escola Francesa de Psicanálise, em 1964

O ponto de referência Lacan

Ana Cecília Carvalho
especial para a Folha

Em um depoimento dado em junho de 1990 e que está registrado no livro "Jacques Lacan - Esboço de uma Vida, História de um Sistema de Pensamento", de Elisabeth Roudinesco, o filósofo francês Jacques Derrida se lembra do temor de Lacan em relação ao destino dos seus textos escritos, às vésperas de sua publicação em 1966, caso fossem reunidos em um único volume de mais de 900 páginas. Fazendo um gesto com as mãos, Lacan teria dito a Derrida: "Você verá, isso vai acabar se rompendo". Esse temor confessado na verdade apontava para uma preocupação angustiada de Lacan que o termo "Poubellication" ["publixação"], trocadilho inventado por ele com a palavra "poubelle" [lata de lixo] para designar o caráter de dejeto de suas publicações, acentuava ainda mais. Se, de um lado, o desdém com que Lacan se referia à transcrição para a forma escrita dos seminários o fez forjar o termo "Stécriture", um neologismo que associava "sténographie" [estenografia] a "écriture" [escrita ou escritura], era bem outro seu estado de espírito em relação à publicação dos textos escritos por seu próprio punho. Roudinesco não deixará de enfatizar essa ambivalência, pois Lacan tanto temia o plágio e queria conservar secretas suas idéias como, ao mesmo tempo, desejava que elas fossem reconhecidas por todo o mundo: "Invadido pelo medo que lhe inspirava sua própria imagem e sempre com a obsessão de não agradar, esse homem genial manifestava uma espécie de terror à idéia de que sua obra pudesse escapar à interpretação que ele próprio queria lhe dar. Assim conservava nos armários os volumes impraticáveis de seus seminários e as cópias de seus artigos, agora inencontráveis, como se jamais conseguisse separar-se deles". Se tinham ou não fundamento as preocupações de Lacan em relação ao destino de sua obra, o fato é que nada impediu o sucesso editorial ininterrupto que tem marcado a trajetória dos "Escritos" desde sua primeira edição francesa há mais de três décadas (a edição brasileira completa somente veio a lume em 1998). Muito pelo contrário, esse livro hermético e denso não se "desfez", e não porque nenhuma encadernação fosse suficientemente forte para conservá-lo. Mas sim, ao que tudo indica, porque nunca cessou de se desdobrar em interlocuções com áreas tão diferentes da psicanálise, como a física, a matemática, a ciência política e a teoria literária, sejam os participantes desses diálogos adeptos ou não das teorias lacanianas. O vigor dessa obra monumental, que para muitos pode ser considerada clássica (no sentido empregado por Ítalo Calvino), provém de sua capacidade de multiplicar leituras e ao mesmo tempo de permanecer estável, como um ponto de referência inarredável ao qual devemos sempre nos voltar para conferir a pertinência de nossas interpretações. Assim é preciso voltar a ela para avaliar se as interpretações que nos obriga a fazer não são meras repetições macaqueadas do sotaque e do estilo barroco de Lacan e, como tal, esterilizantes, ou se de fato caminham na direção do saudável arejamento e da crítica das idéias.

Fertilizador
Infelizmente tornou-se comum esquecer, na maior parte das instituições psicanalíticas, hoje em dia, que esse saudável exercício de arejamento é necessário sempre, porque age como um fertilizador na produção de conhecimento e leva a psicanálise para longe do risco dos dogmatismos, da multiplicação das franquias e das seitas obscurantistas que revelam uma espécie de doença na transmissão da psicanálise e na formação do analista.
É bem provável que o caminho aberto pelos "Escritos" tenha propiciado a organização, em 2001, de uma nova coletânea de textos não-inéditos intitulada "Autres Écrits", cuja edição brasileira, em excelente tradução de Vera Ribeiro, sai agora com o título "Outros Escritos". Segundo a apresentação feita por Jacques-Alain Miller (genro de Lacan e seu controvertido executor testamentário, que se tornou conhecido mundialmente por regular o ritmo das publicações dos famosos seminários de seu sogro ao sabor de algum inexplicável critério pessoal nunca inteiramente revelado), essa publicação é uma maneira de celebrar o centenário de Lacan. Além disso, segundo Miller, embora o livro "Outros Escritos" dê uma continuidade à primeira coletânea, não constitui um "retorno a Lacan", já que, segundo pensa, "Lacan não se afastou" e está presente, "sempre atual" e ainda "definitivamente intempestivo".
Curiosamente, a ordem seguida nesse volume não segue uma cronologia, em sua maior parte, já que ela se inicia com o texto "Lituraterra", de 1971, continua com um texto de 1938 ("Os Complexos Familiares na Formação do Indivíduo") e daí em diante vai e volta em uma sequência que, de acordo com Miller, não apenas reproduz a composição da coletânea, mas, sobretudo, a "urde". A escolha de Miller para compor "Outros Escritos" revela uma preferência pessoal que seus admiradores poderão sempre justificar como um critério metodológico próprio da psicanálise.
Não obstante poderá deixar perplexo o pesquisador que não costuma frequentar as instituições psicanalíticas. E ele terá todo o direito de perguntar se será suficiente a explicação, dada por Miller ao leitor, de que o texto "Lituraterra" pareceu ocupar na nova publicação o lugar concedido nos "Escritos" ao "Seminário Sobre a Carta Roubada".
O pesquisador comum, mais acostumado ao rigor do universo acadêmico e avesso a idiossincrasias, não hesitará em questionar a relevância de uma preferência na qual se optou por uma sequência em que a "urdidura da obra" prevalece sobre a sequência cronológica. Afinal, o que seria de nós se James Stratchey tivesse organizado a famosa edição standard das "Obras Completas" de Sigmund Freud em uma sequência que começasse por algum texto que, segundo a visão pessoal do editor, daria ao conjunto da obra uma re-significação unificadora?
Nesse sentido, nem tudo na organização de "Outros Escritos" está perdido. No final há uma seção na qual Miller apresenta uma cronologia e as referências bibliográficas. Ali o leitor ficará sabendo que, ao contrário do que Miller anuncia no "Prólogo", dos 45 textos reunidos na coletânea, são de fato três ("A Psicanálise Verdadeira, e a Falsa", "Notas Sobre a Criança" e "Nota Italiana"), e não dois, os que não foram publicados enquanto Lacan ainda vivia. Alguns dos textos não inéditos em "Outros Escritos" não são inteiramente desconhecidos pelo leitor brasileiro. Esse é o caso de "Os Complexos Familiares na Formação do Indivíduo", de 1938 (publicado no Brasil em 1987), e "Televisão", de 1974 (edição brasileira em 1993). Outros menos conhecidos, pelo menos para o leitor brasileiro, mas não menos importantes, como "Respostas a Estudantes de Filosofia", de 1966, e "Alocução Sobre o Ensino", de 1970, podem ser lidos ao lado de dois textos sobre a psicanálise da criança ("Alocução Sobre as Psicoses da Criança", de 1968, e "Nota Sobre a Criança" , de 1969), além dos textos de incomparável valor histórico, como o "Ato de Fundação", sobre a inauguração da Escola Francesa de Psicanálise, em junho de 1964 (incluindo a "Nota Anexa", de 1971), e a famosa "Carta de Dissolução", escrita em 5 de janeiro de 1980 para finalizar as atividades da escola, um ano e nove meses antes da morte de Lacan, em setembro de 1981.
É bem provável que o leitor mais atento não esteja de fato preocupado em decidir se o caminho de "Outros Escritos" percorre uma linha de continuidade ou uma de retorno. Mas, certamente, se ele fizer uma comparação entre a modesta lista de trabalhos de Lacan apresentada por Miller para compor esse livro recente e aquela, muito maior, publicada no livro de Elisabeth Roudinesco dez anos atrás, concluirá que essa diferença reforça a necessidade por uma publicação que de fato faça justiça à extensão do corpus da obra lacaniana.


Ana Cecília Carvalho é psicanalista, professora da Universidade Federal de Minas Gerais e autora de "A Poética do Suicídio em Sylvia Plath" (editora da UFMG).


Outros Escritos
608 págs., R$ 79 de Jacques Lacan. Trad. Vera Ribeiro. Jorge Zahar (r. México, 31, sobreloja, CEP 20031-144, RJ, tel. 0/xx/ 21/ 2240-0226).



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