|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ livros
"Outros Escritos" traz ensaios teóricos e textos de valor histórico, como "Ato de Fundação", sobre a inauguração da Escola Francesa de Psicanálise, em 1964
O ponto de referência Lacan
Ana Cecília Carvalho
especial para a Folha
Em um depoimento dado em junho de 1990 e que está registrado
no livro "Jacques Lacan - Esboço
de uma Vida, História de um Sistema de Pensamento", de Elisabeth Roudinesco, o filósofo francês Jacques Derrida se lembra do temor de Lacan em relação ao destino dos seus textos escritos, às
vésperas de sua publicação em 1966, caso
fossem reunidos em um único volume
de mais de 900 páginas. Fazendo um gesto com as mãos, Lacan teria dito a Derrida: "Você verá, isso vai acabar se rompendo".
Esse temor confessado na verdade
apontava para uma preocupação angustiada de Lacan que o termo "Poubellication" ["publixação"], trocadilho inventado por ele com a palavra "poubelle"
[lata de lixo] para designar o caráter de
dejeto de suas publicações, acentuava
ainda mais. Se, de um lado, o desdém
com que Lacan se referia à transcrição
para a forma escrita dos seminários o fez
forjar o termo "Stécriture", um neologismo que associava "sténographie" [estenografia] a "écriture" [escrita ou escritura], era bem outro seu estado de espírito
em relação à publicação dos textos escritos por seu próprio punho.
Roudinesco não deixará de enfatizar
essa ambivalência, pois Lacan tanto temia o plágio e queria conservar secretas
suas idéias como, ao mesmo tempo, desejava que elas fossem reconhecidas por
todo o mundo: "Invadido pelo medo que
lhe inspirava sua própria imagem e sempre com a obsessão de não agradar, esse
homem genial manifestava uma espécie
de terror à idéia de que sua obra pudesse
escapar à interpretação que ele próprio
queria lhe dar. Assim conservava nos armários os volumes impraticáveis de seus
seminários e as cópias de seus artigos,
agora inencontráveis, como se jamais
conseguisse separar-se deles".
Se tinham ou não fundamento as preocupações de Lacan em relação ao destino
de sua obra, o fato é que nada impediu o
sucesso editorial ininterrupto que tem
marcado a trajetória dos "Escritos" desde sua primeira edição francesa há mais
de três décadas (a edição brasileira completa somente veio a lume em 1998).
Muito pelo contrário, esse livro hermético e denso não se "desfez", e não porque
nenhuma encadernação fosse suficientemente forte para conservá-lo. Mas sim,
ao que tudo indica, porque nunca cessou
de se desdobrar em interlocuções com
áreas tão diferentes da psicanálise, como
a física, a matemática, a ciência política e
a teoria literária, sejam os participantes
desses diálogos adeptos ou não das teorias lacanianas.
O vigor dessa obra monumental, que
para muitos pode ser considerada clássica (no sentido empregado por Ítalo Calvino), provém de sua capacidade de
multiplicar leituras e ao mesmo tempo
de permanecer estável, como um ponto
de referência inarredável ao qual devemos sempre nos voltar para conferir a
pertinência de nossas interpretações. Assim é preciso voltar a ela para avaliar se
as interpretações que nos obriga a fazer
não são meras repetições macaqueadas
do sotaque e do estilo barroco de Lacan
e, como tal, esterilizantes, ou se de fato
caminham na direção do saudável arejamento e da crítica das idéias.
Fertilizador
Infelizmente tornou-se
comum esquecer, na maior parte das
instituições psicanalíticas, hoje em dia,
que esse saudável exercício de arejamento é necessário sempre, porque age como
um fertilizador na produção de conhecimento e leva a psicanálise para longe do
risco dos dogmatismos, da multiplicação
das franquias e das seitas obscurantistas
que revelam uma espécie de doença na
transmissão da psicanálise e na formação do analista.
É bem provável que o caminho aberto
pelos "Escritos" tenha propiciado a organização, em 2001, de uma nova coletânea
de textos não-inéditos intitulada "Autres
Écrits", cuja edição brasileira, em excelente tradução de Vera Ribeiro, sai agora
com o título "Outros Escritos". Segundo
a apresentação feita por Jacques-Alain
Miller (genro de Lacan e seu controvertido executor testamentário, que se tornou
conhecido mundialmente por regular o
ritmo das publicações dos famosos seminários de seu sogro ao sabor de algum
inexplicável critério pessoal nunca inteiramente revelado), essa publicação é
uma maneira de celebrar o centenário de
Lacan. Além disso, segundo Miller, embora o livro "Outros Escritos" dê uma
continuidade à primeira coletânea, não
constitui um "retorno a Lacan", já que,
segundo pensa, "Lacan não se afastou" e
está presente, "sempre atual" e ainda
"definitivamente intempestivo".
Curiosamente, a ordem seguida nesse
volume não segue uma cronologia, em
sua maior parte, já que ela se inicia com o
texto "Lituraterra", de 1971, continua
com um texto de 1938 ("Os Complexos
Familiares na Formação do Indivíduo")
e daí em diante vai e volta em uma sequência que, de acordo com Miller, não
apenas reproduz a composição da coletânea, mas, sobretudo, a "urde". A escolha de Miller para compor "Outros Escritos" revela uma preferência pessoal que
seus admiradores poderão sempre justificar como um critério metodológico
próprio da psicanálise.
Não obstante poderá deixar perplexo o
pesquisador que não costuma frequentar as instituições psicanalíticas. E ele terá todo o direito de perguntar se será suficiente a explicação, dada por Miller ao
leitor, de que o texto "Lituraterra" pareceu ocupar na nova publicação o lugar
concedido nos "Escritos" ao "Seminário
Sobre a Carta Roubada".
O pesquisador comum, mais acostumado ao rigor do universo acadêmico e
avesso a idiossincrasias, não hesitará em
questionar a relevância de uma preferência na qual se optou por uma sequência
em que a "urdidura da obra" prevalece
sobre a sequência cronológica. Afinal, o
que seria de nós se James Stratchey tivesse organizado a famosa edição standard
das "Obras Completas" de Sigmund
Freud em uma sequência que começasse
por algum texto que, segundo a visão
pessoal do editor, daria ao conjunto da
obra uma re-significação unificadora?
Nesse sentido, nem tudo na organização de "Outros Escritos" está perdido.
No final há uma seção na qual Miller
apresenta uma cronologia e as referências bibliográficas. Ali o leitor ficará sabendo que, ao contrário do que Miller
anuncia no "Prólogo", dos 45 textos reunidos na coletânea, são de fato três ("A
Psicanálise Verdadeira, e a Falsa", "Notas Sobre a Criança" e "Nota Italiana"), e
não dois, os que não foram publicados
enquanto Lacan ainda vivia. Alguns dos
textos não inéditos em "Outros Escritos"
não são inteiramente desconhecidos pelo leitor brasileiro. Esse é o caso de "Os
Complexos Familiares na Formação do
Indivíduo", de 1938 (publicado no Brasil
em 1987), e "Televisão", de 1974 (edição
brasileira em 1993). Outros menos conhecidos, pelo menos para o leitor brasileiro, mas não menos importantes, como
"Respostas a Estudantes de Filosofia", de
1966, e "Alocução Sobre o Ensino", de
1970, podem ser lidos ao lado de dois textos sobre a psicanálise da criança ("Alocução Sobre as Psicoses da Criança", de
1968, e "Nota Sobre a Criança" , de 1969),
além dos textos de incomparável valor
histórico, como o "Ato de Fundação",
sobre a inauguração da Escola Francesa
de Psicanálise, em junho de 1964 (incluindo a "Nota Anexa", de 1971), e a famosa "Carta de Dissolução", escrita em 5
de janeiro de 1980 para finalizar as atividades da escola, um ano e nove meses
antes da morte de Lacan, em setembro
de 1981.
É bem provável que o leitor mais atento não esteja de fato preocupado em decidir se o caminho de "Outros Escritos"
percorre uma linha de continuidade ou
uma de retorno. Mas, certamente, se ele
fizer uma comparação entre a modesta
lista de trabalhos de Lacan apresentada
por Miller para compor esse livro recente
e aquela, muito maior, publicada no livro
de Elisabeth Roudinesco dez anos atrás,
concluirá que essa diferença reforça a necessidade por uma publicação que de fato faça justiça à extensão do corpus da
obra lacaniana.
Ana Cecília Carvalho é psicanalista, professora
da Universidade Federal de Minas Gerais e autora
de "A Poética do Suicídio em Sylvia Plath" (editora
da UFMG).
Outros Escritos
608 págs., R$ 79
de Jacques Lacan. Trad. Vera Ribeiro. Jorge Zahar
(r. México, 31, sobreloja, CEP 20031-144, RJ, tel.
0/xx/ 21/ 2240-0226).
Texto Anterior: Virilidade, valentia e violência Próximo Texto: A difusão de um clássico Índice
|