São Paulo, domingo, 11 de fevereiro de 2001

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Em "Ravelstein", que sai neste mês pela Rocco, Bellow faz um perfil ficcionalizado de Allan Bloom, o autor de "O Declínio da Cultura Ocidental"

A derrota da morte

por Arthur Nestrovski

Associated Press
O escritor Saul Bellow em seu escritório, na Universidade de Boston, em 1997


Nada é mais burguês do que o medo da morte." Palavras do professor Ravelstein ao seu amigo sem sobrenome, que ele encarregou de escrever sua biografia. Os dois formaram um par e tanto, por anos: o professor de filosofia, brilhante e exuberante, com namorados, seguidores e inimigos espalhados pelo mundo, e o romancista famoso, intimista e irônico, equilibrando a vida entre maus casamentos. Ravelstein está morto; Chick quase morre de intoxicação alimentar. Entre um e outro desastre, o livro é uma festa. Nem biografia nem exatamente romance, mas algo entre os dois e ainda uma terceira coisa, o "livro escondido" que Ravelstein julgava existir em toda grande obra e que nos compete, agora, desvelar neste novo grande livro de Saul Bellow. A identificação entre o fictício Abe Ravelstein e o verdadeiro Allan Bloom (1930-92) deve ser imediata, para quem quer que tenha lido "O Declínio da Cultura Ocidental". Que Chick e Bellow (1915) falam com a mesma voz fica igualmente claro para qualquer leitor de qualquer de seus 12 romances anteriores. E notadamente para os que tiverem lido o elogio fúnebre de Bloom, escrito por Bellow, que serve de base para várias passagens do livro. "Os motivos por que ele atraía tanta gente talentosa dariam um estudo fascinante, se aparecesse alguém capaz de dar conta deles", dizia Bellow há oito anos, numa intuição premonitória (em "Tudo Faz Sentido", Rocco).

Impossibilidade de compreensão
Mas entre as idéias que este livro lotado de idéias levanta está, precisamente, a impossibilidade da compreensão, ou representação total de uma personalidade, até mesmo para um mestre tão consumado e um homem tão sábio como Bellow. Faz parte do seu estilo alterar, então, modestamente, os nomes. Sem apagar os rastros, mas sem abdicar das liberdades de imaginação que são a própria vida do romancista, dentro e fora do livro, e sem as quais não se faz um retrato vivo de ninguém. Até porque o retrato principal é o do romancista, espectador do outro e de si mesmo.
O estilo em si, para Bellow, já é uma questão de autoconhecimento -idéia central da sua biografia, recentemente publicada (James Atlas, "Bellow - A Biography", Random House).

Que prato cheio para Bellow se atirar neste retrato de um homem de apetites enormes, erudição rara, exuberâncias e idiossincrasias


E, dentro desta palavra simples, "estilo", devem caber desde "o ritmo incrivelmente sincopado das frases", que encantava John Cheever, e as paixões do específico, uma "arte mimética fluente, nervosa, colorida", louvada por John Updike, até o apetite pela vida, as cargas de ambiguidade que animam a menor descrição e um respeito pela inteligência, um prazer do pensamento, que não abdica nunca das pressões afetivas e que contribui para fazer dessa "prosa robusta" o modelo mais alto da ficção americana contemporânea (1), segundo o seu maior herdeiro, Philip Roth (leia o ensaio a partir da pág. 7). Que prato cheio para Bellow, então, se atirar neste retrato de um homem de apetites enormes, erudição rara, exuberâncias e idiossincrasias. Ainda por cima um amigo e colega de anos, o que torna tudo uma outra espécie de álgebra, mais pessoal e difícil.
O livro começa em Paris. Seguindo um conselho de Chick, Ravelstein publica um livro em que sintetiza os conceitos propagados por ele, em classe, há muito tempo. Uma crítica dura da educação moderna e um manifesto pela cultura integrada, humana, centrada na noção platônica do eros. Para surpresa de todos, o livro se torna um best seller. Ravelstein está rico. Pode exercer sem limites sua paixão por roupas finas, equipamentos de som, cristais Lalique, jantares no Lucas-Carton. Tudo isso em retribuição por suas idéias, redigidas sem concessão.
Chick e a mulher, bem mais nova que ele, uma ex-aluna de Ravelstein, estão hospedados no Crillon, a convite do amigo, festejando em grande estilo o seu sucesso. As anedotas e descrições dessa temporada parisiense são memoráveis: é impressionante, mesmo numa releitura, notar como nada se esquece num livro tão cheio de tudo. Parte da batalha amistosa de Chick com o fantasma de Ravelstein dá-se por essa via oblíqua das minúcias, armas perenes da literatura em seu combate com os conceitos. "Ao me descrever, você talvez se emancipe", diz o filósofo, tentando convencer o romancista a escrever sua vida. E, entre os livros ocultos que Ravelstein nos instiga a ler em "Ravelstein", está esse também, uma afirmação das virtudes da literatura para o entendimento da vida.
No outro extremo do arco invertido do livro, Chick e Rosamund estão veraneando em St. Martin (Caribe), alguns anos depois da morte de Ravelstein. O peixe errado no lugar errado na hora errada quase acaba com a vida do autor. Nada é mais burguês do que o medo da morte; mas a morte gradual de virtualmente toda a vizinhança de Chick em Chicago foi o motivo para o casal ter se mudado, uma semana antes dessa segunda lua-de-mel.
Encarada tão de frente quanto possível, a morte soa como um baixo-contínuo para meditações sobre a política no século 20 ou sobre o judaísmo. Faz pensar ainda em outras crueldades, quando o assunto é Vela, a ex-mulher de Chick, mais uma versão da criatura fatal dominadora, cuja mágica erótica prende esse homem tão lúcido em círculos de autolimitação. A morte, para o gentil professor Grilescu (leia-se: o estudioso das religiões Mircea Eliade), tem outra natureza, quando se sabe que ele foi membro da Guarda de Ferro, o pavoroso exército nazista da Romênia.
"Ravelstein" é um livro de revelações, como sugere o nome (ravel, "desfiar", unravel, "desenredar"; o contrário de "Vela"). De todas, nenhuma é mais importante do que a descoberta, afinal, quando tudo já parecia estar escurecendo, de alguém capaz de encarnar, com Chick, as lições mais altas de Ravelstein sobre a busca da metade perdida de uma alma única ancestral, no mito platônico do amor. Só um leitor muito apressado não perceberia a dose de rivalidade entre os amigos, que não diminui o afeto entre eles. Mas só um leitor muito azarado não perceberia que o livro foi escrito para vencer a morte, que a morte já foi vencida, e que só um amor pleno, incondicional, a virtude mais elevada que existe, tem força para tanto, como ensinava o finado e eterno professor Ravelstein.

Arthur Nestrovski é professor titular de literatura na pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica-SP, autor de "Ironias da Modernidade" (Ática) e "Notas Musicais" (Publifolha), entre outros livros.


Nota:
1.A tradução, embora fluente e fácil de ler, escorrega em muitos pontos. Há desde erros de português ("entre o irmão mais velho e mim", pág. 93) até insuficiências idiomáticas ("a major-league brain", "o cérebro [dela" jogava na primeira divisão", vira "um cérebro de primeira grandeza", pág. 103), além de equívocos de edição (como citar o nome de livros de Rousseau em inglês). A espontaneidade dos diálogos de Bellow é um de seus trunfos; aqui, também, a tradução às vezes sugere um português de legendas televisivas ("Tremendo, não é, este circo pop?", pág. 10).

+ trecho

"Ninguém antes de ele enriquecer jamais questionou a necessidade de Ravelstein por ternos Armani ou malas Vuitton, por charutos cubanos, impossíveis de conseguir nos Estados Unidos, por acessórios Dunhill, por canetas de ouro maciço Mont Blanc ou cristal Baccarat ou Lalique para servir vinho -ou mandar servi-lo. Ravelstein era um desses homens grandes -grandes, não corpulentos- cujas mãos tremem quando têm que realizar pequenas tarefas. A causa disso não era fraqueza e sim uma tremenda energia ansiosa que o sacudia quando era descarregada.
Bem, seus amigos, colegas, alunos e admiradores não precisavam mais contribuir para sustentar seus hábitos extravagantes. Graças a Deus, ele agora podia dispensar as complicadas barganhas em torno da prataria Jensen, Spode ou Quimper com seus amigos da academia. Tudo isso era coisa do passado. Ele agora estava muito rico. Tinha tornado públicas as suas idéias. Tinha escrito um livro -difícil mas popular-, um livro espirituoso, inteligente, belicoso, e ele tinha vendido e ainda estava vendendo em ambos os hemisférios e ambos os lados do Equador. A coisa tinha sido feita depressa, mas com toda a seriedade: sem concessões baratas, sem popularização, sem nenhuma trapaça mental, sem apologismo, sem ares aristocráticos. Ele tinha todo o direito de estar como estava naquele momento, enquanto o garçom servia o nosso café. Seu intelecto o havia tornado um milionário.
Não é pouca coisa ficar rico e famoso dizendo exatamente o que você pensa -dizendo isso com suas próprias palavras, sem nenhuma concessão.
Esta manhã Ravelstein usava um quimono azul e branco. Ele o havia ganho no Japão, no ano anterior, quando estivera lá dando palestras. Tinham perguntado o que ele gostaria especialmente de ganhar e ele tinha dito que era um quimono. Este aqui, digno de um xogum, devia ter sido feito por encomenda. Ele era muito alto. Não era particularmente elegante. A enorme roupa estava com o cinto frouxo e mais do que parcialmente aberta. Suas pernas eram muito compridas e nada bem-feitas. Suas cuecas estavam frouxas.
- O garçom está me dizendo que Michael Jackson se recusa a comer a comida do Crillon -ele disse. - O cozinheiro dele vai com ele para toda a parte em seu jato particular. O chef do Crillon está desconcertado. A comida dele era suficientemente boa para Richard Nixon e Henry Kissinger, ele diz, e também para uma cambada de xás, reis, generais e primeiros-ministros. Mas aquele pequeno macaco glamouroso a estava recusando. Não tem alguma coisa na Bíblia a respeito de reis aleijados vivendo debaixo da mesa de seus conquistadores, alimentando-se do que cai no chão?
- Acho que tem. Eu me lembro de que seus polegares foram arrancados. Mas o que isso tem a ver com o Crillon ou com Michael Jackson?
Abe riu e disse que não sabia ao certo. Era só uma coisa que tinha passado pela cabeça dele. (...)"

Extraído de "Ravelstein", de Saul Bellow.
Tradução de Léa Viveiros de Castro.


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