São Paulo, domingo, 11 de fevereiro de 2007

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Ponto de fuga

A ética da História


O centro de "A Conquista da Honra" é ético, como sempre ocorre com Clint Eastwood, e isso determina uma atitude: descobrir "os fatos" por trás da célebre foto de Iwo Jima


JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

A Conquista da Honra" é um filme de guerra, com momentos de suspense, com seqüências arrebatadoras. O milagre de Hollywood é este: permitir que existam filmes "para todos" (isto é, sem bizantinismos intelectuais ou aridez experimental) que brotem de reflexões densas. "A Conquista da Honra" não é uma desmistificação do herói nem do heroísmo.
Pelo exemplo, expõe a própria natureza da História com H maiúsculo. Aquela que se estuda nas universidades e se aprende nas escolas. O centro de "A Conquista da Honra" é ético, como ocorre sempre com o diretor Clint Eastwood. Isso determina, na obra, uma primeira atitude: descobrir "os fatos" que estavam por trás da célebre foto de Iwo Jima. Quem foram as verdadeiras pessoas que figuram ali, em que condições a fotografia foi tirada.
O filme procede a uma busca escrupulosa, mas percebe logo que esse positivismo é insuficiente, pois outras questões vão se amontoando. É uma vertigem. A pergunta ética, longe de ser abandonada, se modifica e se aprofunda. Ela deixa de se motivar pela idéia de fazer justiça a quem de direito; no caso, nomear os verdadeiros e os falsos heróis. Essa visão podia ter um Clint Eastwood justiceiro de outros tempos, o vingador de "Os Imperdoáveis" (92) e de todos os seus filmes, desde os primeiros.
Mas seu "Sobre Meninos e Lobos", de 2003, significou, para ele, uma evidente ruptura. O vingador descobre então que o tempo impede a justiça, pois o que carreia são apenas representações imaginárias que se superpõem. Elas nada são diante, não do fato, que é sempre representação, mas do acontecimento, que guarda o sentido metafísico de um presente incapaz de voltar.

Podre
Clint Eastwood ensina que o historiador não é um justiceiro, restaurando fatos e reputações. Ele ensina que a História, se ela se quer ética, torna-se justamente a demonstração da ética impossível. A História surge então como um campo de estudos presidido pela angústia: cada representação examinada provoca o exame de outras representações, que, por sua vez, suscitam representações ainda.
Com os créditos, no fim do filme, são mostradas fotografias autênticas dos personagens e dos acontecimentos. O espectador pode comparar o rosto dos soldados com o rosto dos atores, as cenas de batalha reais com as fictícias. O paralelo é convincente e verossímil. Mas, se o prazer que esse jogo proporciona é inegável, ele é também pueril, porque pressupõe uma verdade, de um lado (as fotografias de época), e, de outro, uma ficção (o filme).
Ora, as fotografias funcionam para Clint Eastwood exatamente como para os melhores historiadores. Fornecem um traço do passado, um indício do que não existe, porque simplesmente passou. São figurações de outrora, como o filme também o é. Com uma diferença: elas não permitem compreender o que foi, coisa que o filme faz. Funcionam como garantia de testemunho, e é esse o papel de todo documento. Garantia de que o historiador (e, no caso, o cineasta-historiador) está se referindo a algo que, supõe-se, deve ter ocorrido.

Agora
O cineasta escolheu um momento para fixar um presente -o presente metafísico- graças aos poderes da arte, capazes de tornar eterno o efêmero. Esse instante não é o da foto do heroísmo, da vitória e da bandeira, foto que virou monumento em bronze. É o de jovens soldados felizes que brincam na água, fora da História.
jorgecoli@uol.com.br


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