São Paulo, domingo, 11 de fevereiro de 2007

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O plano perfeito

Revolucionário, esboço que procurava unir as perspectivas de Paris, "os imensos gramados ingleses" e "a pureza da Diamantina dos anos 20" foi apresentado de forma amadora e sem nenhum cálculo

MARIO CESAR CARVALHO
ENVIADO ESPECIAL AO RIO

P arece um trabalho escolar. Sobre quatro pranchas de cartão, de 57 cm x 70 cm, estão coladas 17 folhas de tamanho ofício datilografas e outras sete com desenhos. Os esboços, feitos a nanquim, estão colorizados com lápis de cor, com pequenas sombras feitas em "sfumato".
Uma quinta prancha traz um único desenho, assemelhado a um avião. Três letras desenhadas à mão na prancha do avião embaralham ainda mais o enigma: PPB.
PPB são as iniciais de Plano Piloto de Brasília. Foi com um trabalho de feição amadora, sem um único cálculo, que o arquiteto e urbanista Lucio Costa (1902-1998) venceu o concurso do plano urbano de Brasília em 1957, numa disputa que tinha concorrentes do porte de um Rino Levi e dos irmãos Roberto (criadores do aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro).
No próximo dia 11 de março faz 50 anos que o arquiteto entregou o trabalho à comissão julgadora. Nascia ali o maior mito do urbanismo brasileiro -o Plano Piloto de Brasília.
Sir William Halford, arquiteto inglês que presidiu o júri internacional que escolheu o plano de Brasília, foi um dos primeiros a perceber o alcance do projeto de Lucio, ao classificá-lo em 1957 como "uma das contribuições mais interessantes e mais importantes feitas em nosso século à teoria do urbanismo moderno".
A pergunta óbvia, que desafia explicadores há 50 anos, é: como um plano despretensioso na sua aparência mudou a história do urbanismo?
Em Brasília, Lucio acabou com duas das tradições mais caras das cidades brasileiras: a rua como espaço de convívio (a socialização em Brasília ocorre nas superquadras) e as esquinas (o arquiteto disse em entrevista à Folha em 1995 que elas existiam em Brasília, na entrada dos conjuntos de quatro superquadras, onde funcionam bares e restaurantes).

Franco-atirador
O próprio arquiteto gostava de enfatizar o seu papel de franco-atirador no concurso: "Compareço não como técnico devidamente aparelhado, pois nem sequer disponho de escritório, mas como simples "maquisard" [guerrilheiro da Resistência francesa] do urbanismo", escreveu na apresentação do Plano Piloto de Brasília.
A já folclórica modéstia do arquiteto parece ter a sua gênese, ao menos em textos, no documento de 1957 sobre Brasília: "Não pretendia competir e, na verdade, não concorro -apenas me desvencilho de uma solução possível, que não me foi procurada mas surgiu, por assim dizer, já pronta".
Qualquer estudante de história sabe que discursos sobre soluções que nascem prontas, como Lucio diz ter ocorrido com o Plano Piloto, tendem a esconder um longo processo de buscas, pesquisas e fracassos. Isso é verdade no caso do Plano Piloto, mas documentos da Casa de Lucio Costa obtidos pela Folha mostram que o primeiro esboço de Brasília já tinha a forma triangular da Praça dos Três Poderes e os ministérios enfileirados no Eixo Monumental. É a primeira vez que esse desenho é publicado.
Brasília nasceu no mar, de acordo com esse documento. No final de 1956, Lucio viajara para Nova York para participar de um evento na Parsons School of Design -o outro homenageado era o estilista Christian Dior. O edital para o Plano Piloto de Brasília havia sido publicado em setembro; Lucio se inscrevera no concurso, mas, aparentemente, não fizera nada até a viagem.
Foi na volta, a bordo do navio argentino Rio Jachal, que Lucio fez o que é considerado o primeiro esboço do Plano Piloto. O retorno ocorreu em dezembro de 1956, segundo Helena Costa, filha do arquiteto.
As duas passagens de Lucio por Nova York, em 1939 e 1956, parecem ter influído no traçado de Brasília. As vias expressas sem cruzamento e o uso de parques como uma ferramenta de urbanismo, não como simples paisagismo, parecem uma herança dessas viagens.
Lucio escreveu num texto publicado em sua autobiografia, "Registro de uma Vivência" (ed. Empresa das Artes), sobre o impacto que lhe causou "percorrer de "Greyhound" [empresa de ônibus] as auto-estradas e os belos viadutos-padrão de travessia nos arredores da cidade" de Nova York.

Autopistas dos EUA
Maria Elisa Costa, filha de Lucio e arquiteta, tem outra hipótese sobre o aparente paradoxo de seu pai nunca ter criticado as ruas (como fizera Le Corbusier) e ter abolido esse conceito no Plano Piloto: "Se Brasília tivesse ruazinhas, seria uma cidade convencional".
A influência das autopistas americanas pode dar a impressão de que o plano de Lucio era o mais moderno -no sentido de fidelidade aos ideais do movimento modernista- entre os 27 que participaram da disputa.
Nada mais equivocado, segundo o arquiteto Milton Braga, que estudou o Plano Piloto no mestrado e no doutorado na FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo) da USP.
"O projeto de Lucio é o que menos se prende ao ideário moderno", diz Braga. "Ele aproveita tudo que havia de bem-sucedido nas cidades de que gostava." Entraram no Plano Piloto de Brasília, segundo o próprio Lucio, as perspectivas de Paris, "os imensos gramados ingleses", "a pureza da distante Diamantina dos anos 20", a maneira chinesa de fazer terra arrasada do terreno para a construção de pavilhões.
"Lucio usa toda a história da arquitetura para fazer Brasília, não só a arquitetura moderna", frisa Braga.
Fracassos e sucessos de Lucio também são recuperados no Plano Piloto, de acordo com o arquiteto Guilherme Wisnik, autor do livro "Lucio Costa".
A idéia de superquadra nasceu de um projeto bem-sucedido do arquiteto, os edifícios do parque Guinle, no Rio. Os dois prédios, construídos entre 1948 e 1954, são voltados para o parque, não para a rua, como ocorre em Brasília.
A disposição dos ministérios no Eixo Monumental já existia de forma similar no projeto de universidade que Lucio criou em 1936, segundo Maria Elisa.
A idéia difundida pelo próprio Lucio de que ele era um guerrilheiro em urbanismo tem algo de lenda urbana, ainda segundo Wisnik. Os próprios trabalhos do arquiteto ajudam a minar a noção de que ele era pouco mais do que um diletante nessa matéria.
Diletantes não teriam o conhecimento que Lucio exibe no projeto que fez em 1934 para uma vila operária em Monlevade (MG). Numa epígrafe, ele cita o inglês Roy Nash ("A vila foi concebida tendo em vista o espírito de camaradagem e solidariedade humana de seus habitantes") e Frederick Law Olmstead (1822-1903), o arquiteto que projetou o Central Park, em Nova York.

Vivência na Europa
Essa formação foi resultado do que Lucio chamou de anos de "chômage" (desemprego), que vão de 1932 a 1936. Nesse período, o arquiteto deixa o estilo eclético, faz uma opção pela arquitetura moderna e não consegue vender seus projetos.
Como tinha reservas, Lucio decidiu estudar. "Ninguém pesquisou o que ele leu nesse período, mas parece certo que ele estudou alguma coisa de urbanismo", afirma Wisnik.
Milton Braga diz que a vivência de Lucio na Europa talvez tenha influenciado mais o urbanismo de Brasília do que as leituras. Filho de um engenheiro naval, Lucio nasceu na França (Toulon) durante uma viagem de trabalho do pai, ingressou na escola na Inglaterra (Newcastle) e fez o secundário na Suíça (Montreux).
"O imaginário de Lucio era ligado ao urbanismo tradicional", afirma Braga.
Uma das maneiras de testar essa hipótese, segundo Braga, é aplicar a Brasília a idéia de Colin Rowe e Fred Koeffer, professores da Universidade Cornell, sobre a relação entre figura e fundo nas cidades.
Rowe e Koeffer dizem que na cidade pré-moderna a figura era representada pelos espaços vazios. Na cidade moderna, essa relação inverte-se: a figura migra para os edifícios, e o fundo é o espaço vazio.
Em Brasília, para Braga, o que define a cidade é o vazio: "O Lucio pensava mais nos espaços vazios do que os outros arquitetos que apresentaram proposta para o Plano Piloto".
É uma das sabedorias do plano de Lucio: o espaço vazio é mais duradouro do que um projeto centrado em edifícios.
O holandês Rem Koolhas, um dos mais influentes pensadores da arquitetura atualmente, defende que os urbanistas retomem o controle dos espaços vazios.
O cuidado com o vazio seria uma das razões por que Brasília envelhece melhor que a maioria das cidades planejadas por arquitetos modernos, como Chandigarh, na Índia, criada pelo franço-suíço Le Corbusier.
"Brasília envelhece bem porque não é um projeto de cidade ideal, ela foi criada para mudar. As mudanças da cidade cabem no Plano Piloto. O desenho de Lucio permite transformações radicais sem perder a essência", analisa Braga.
A essência de Brasília, segundo ele, está nos dois eixos e na escala prevista para os usos que a cidade tem -residencial, gregária e monumental. "São diretrizes espaciais, suficientes para guiar o futuro da cidade", afirma Braga.
Num manuscrito sem data intitulado "Eu Sou Peixe", o signo de Lucio no zodíaco, ele arrasa o chão daqueles que cultuam sua suposta recusa ao sucesso e cultua a cidade, classificada de invenção: "Às vezes me espanto e me envaideço, quando penso: "Fui eu que planejei -que inventei- a nossa capital", e acrescento -é, deste pecado você não escapa!".


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