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O plano perfeito
Revolucionário, esboço que
procurava unir as
perspectivas de Paris,
"os
imensos gramados
ingleses" e "a pureza da
Diamantina dos anos 20"
foi apresentado de forma
amadora e sem
nenhum cálculo
MARIO CESAR CARVALHO
ENVIADO ESPECIAL AO RIO
P
arece um trabalho escolar. Sobre quatro
pranchas de cartão,
de 57 cm x 70 cm, estão coladas 17 folhas
de tamanho ofício datilografas
e outras sete com desenhos. Os
esboços, feitos a nanquim, estão colorizados com lápis de
cor, com pequenas sombras
feitas em "sfumato".
Uma quinta prancha traz um
único desenho, assemelhado a
um avião. Três letras desenhadas à mão na prancha do avião
embaralham ainda mais o enigma: PPB.
PPB são as iniciais de Plano
Piloto de Brasília. Foi com um
trabalho de feição amadora,
sem um único cálculo, que o arquiteto e urbanista Lucio Costa
(1902-1998) venceu o concurso
do plano urbano de Brasília em
1957, numa disputa que tinha
concorrentes do porte de um
Rino Levi e dos irmãos Roberto
(criadores do aeroporto Santos
Dumont, no Rio de Janeiro).
No próximo dia 11 de março
faz 50 anos que o arquiteto entregou o trabalho à comissão
julgadora. Nascia ali o maior
mito do urbanismo brasileiro
-o Plano Piloto de Brasília.
Sir William Halford, arquiteto inglês que presidiu o júri internacional que escolheu o plano de Brasília, foi um dos primeiros a perceber o alcance do
projeto de Lucio, ao classificá-lo em 1957 como "uma das contribuições mais interessantes e
mais importantes feitas em
nosso século à teoria do urbanismo moderno".
A pergunta óbvia, que desafia
explicadores há 50 anos, é: como um plano despretensioso
na sua aparência mudou a história do urbanismo?
Em Brasília, Lucio acabou
com duas das tradições mais
caras das cidades brasileiras: a
rua como espaço de convívio (a
socialização em Brasília ocorre
nas superquadras) e as esquinas (o arquiteto disse em entrevista à Folha em 1995 que
elas existiam em Brasília, na
entrada dos conjuntos de quatro superquadras, onde funcionam bares e restaurantes).
Franco-atirador
O próprio arquiteto gostava
de enfatizar o seu papel de franco-atirador no concurso:
"Compareço não como técnico
devidamente aparelhado, pois
nem sequer disponho de escritório, mas como simples "maquisard" [guerrilheiro da Resistência francesa] do urbanismo", escreveu na apresentação
do Plano Piloto de Brasília.
A já folclórica modéstia do
arquiteto parece ter a sua gênese, ao menos em textos, no documento de 1957 sobre Brasília: "Não pretendia competir e,
na verdade, não concorro
-apenas me desvencilho de
uma solução possível, que não
me foi procurada mas surgiu,
por assim dizer, já pronta".
Qualquer estudante de história sabe que discursos sobre soluções que nascem prontas, como Lucio diz ter ocorrido com
o Plano Piloto, tendem a esconder um longo processo de buscas, pesquisas e fracassos. Isso
é verdade no caso do Plano Piloto, mas documentos da Casa
de Lucio Costa obtidos pela Folha mostram que o primeiro
esboço de Brasília já tinha a forma triangular da Praça dos Três
Poderes e os ministérios enfileirados no Eixo Monumental.
É a primeira vez que esse desenho é publicado.
Brasília nasceu no mar, de
acordo com esse documento.
No final de 1956, Lucio viajara
para Nova York para participar
de um evento na Parsons
School of Design -o outro homenageado era o estilista
Christian Dior. O edital para o
Plano Piloto de Brasília havia
sido publicado em setembro;
Lucio se inscrevera no concurso, mas, aparentemente, não fizera nada até a viagem.
Foi na volta, a bordo do navio
argentino Rio Jachal, que Lucio
fez o que é considerado o primeiro esboço do Plano Piloto.
O retorno ocorreu em dezembro de 1956, segundo Helena
Costa, filha do arquiteto.
As duas passagens de Lucio
por Nova York, em 1939 e 1956,
parecem ter influído no traçado de Brasília. As vias expressas
sem cruzamento e o uso de parques como uma ferramenta de
urbanismo, não como simples
paisagismo, parecem uma herança dessas viagens.
Lucio escreveu num texto
publicado em sua autobiografia, "Registro de uma Vivência"
(ed. Empresa das Artes), sobre
o impacto que lhe causou "percorrer de "Greyhound" [empresa de ônibus] as auto-estradas e
os belos viadutos-padrão de
travessia nos arredores da cidade" de Nova York.
Autopistas dos EUA
Maria Elisa Costa, filha de
Lucio e arquiteta, tem outra hipótese sobre o aparente paradoxo de seu pai nunca ter criticado as ruas (como fizera Le
Corbusier) e ter abolido esse
conceito no Plano Piloto: "Se
Brasília tivesse ruazinhas, seria
uma cidade convencional".
A influência das autopistas
americanas pode dar a impressão de que o plano de Lucio era
o mais moderno -no sentido
de fidelidade aos ideais do movimento modernista- entre os
27 que participaram da disputa.
Nada mais equivocado, segundo o arquiteto Milton Braga, que estudou o Plano Piloto
no mestrado e no doutorado na
FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo) da USP.
"O projeto de Lucio é o que
menos se prende ao ideário
moderno", diz Braga. "Ele
aproveita tudo que havia de
bem-sucedido nas cidades de
que gostava." Entraram no Plano Piloto de Brasília, segundo o
próprio Lucio, as perspectivas
de Paris, "os imensos gramados
ingleses", "a pureza da distante
Diamantina dos anos 20", a
maneira chinesa de fazer terra
arrasada do terreno para a
construção de pavilhões.
"Lucio usa toda a história da
arquitetura para fazer Brasília,
não só a arquitetura moderna",
frisa Braga.
Fracassos e sucessos de Lucio também são recuperados
no Plano Piloto, de acordo com
o arquiteto Guilherme Wisnik,
autor do livro "Lucio Costa".
A idéia de superquadra nasceu de um projeto bem-sucedido do arquiteto, os edifícios do
parque Guinle, no Rio. Os dois
prédios, construídos entre
1948 e 1954, são voltados para o
parque, não para a rua, como
ocorre em Brasília.
A disposição dos ministérios
no Eixo Monumental já existia
de forma similar no projeto de
universidade que Lucio criou
em 1936, segundo Maria Elisa.
A idéia difundida pelo próprio Lucio de que ele era um
guerrilheiro em urbanismo
tem algo de lenda urbana, ainda
segundo Wisnik. Os próprios
trabalhos do arquiteto ajudam
a minar a noção de que ele era
pouco mais do que um diletante nessa matéria.
Diletantes não teriam o conhecimento que Lucio exibe no
projeto que fez em 1934 para
uma vila operária em Monlevade (MG). Numa epígrafe, ele cita o inglês Roy Nash ("A vila foi
concebida tendo em vista o espírito de camaradagem e solidariedade humana de seus habitantes") e Frederick Law
Olmstead (1822-1903), o arquiteto que projetou o Central
Park, em Nova York.
Vivência na Europa
Essa formação foi resultado
do que Lucio chamou de anos
de "chômage" (desemprego),
que vão de 1932 a 1936. Nesse
período, o arquiteto deixa o estilo eclético, faz uma opção pela
arquitetura moderna e não
consegue vender seus projetos.
Como tinha reservas, Lucio
decidiu estudar. "Ninguém
pesquisou o que ele leu nesse
período, mas parece certo que
ele estudou alguma coisa de urbanismo", afirma Wisnik.
Milton Braga diz que a vivência de Lucio na Europa talvez
tenha influenciado mais o urbanismo de Brasília do que as
leituras. Filho de um engenheiro naval, Lucio nasceu na França (Toulon) durante uma viagem de trabalho do pai, ingressou na escola na Inglaterra
(Newcastle) e fez o secundário
na Suíça (Montreux).
"O imaginário de Lucio era ligado ao urbanismo tradicional", afirma Braga.
Uma das maneiras de testar
essa hipótese, segundo Braga, é
aplicar a Brasília a idéia de Colin Rowe e Fred Koeffer, professores da Universidade Cornell, sobre a relação entre figura e fundo nas cidades.
Rowe e Koeffer dizem que na
cidade pré-moderna a figura
era representada pelos espaços
vazios. Na cidade moderna, essa relação inverte-se: a figura
migra para os edifícios, e o fundo é o espaço vazio.
Em Brasília, para Braga, o
que define a cidade é o vazio: "O
Lucio pensava mais nos espaços vazios do que os outros arquitetos que apresentaram
proposta para o Plano Piloto".
É uma das sabedorias do plano de Lucio: o espaço vazio é
mais duradouro do que um
projeto centrado em edifícios.
O holandês Rem Koolhas,
um dos mais influentes pensadores da arquitetura atualmente, defende que os urbanistas
retomem o controle dos espaços vazios.
O cuidado com o vazio seria
uma das razões por que Brasília
envelhece melhor que a maioria das cidades planejadas por
arquitetos modernos, como
Chandigarh, na Índia, criada
pelo franço-suíço Le Corbusier.
"Brasília envelhece bem porque não é um projeto de cidade
ideal, ela foi criada para mudar.
As mudanças da cidade cabem
no Plano Piloto. O desenho de
Lucio permite transformações
radicais sem perder a essência", analisa Braga.
A essência de Brasília, segundo ele, está nos dois eixos e na
escala prevista para os usos que
a cidade tem -residencial, gregária e monumental. "São diretrizes espaciais, suficientes para guiar o futuro da cidade",
afirma Braga.
Num manuscrito sem data
intitulado "Eu Sou Peixe", o
signo de Lucio no zodíaco, ele
arrasa o chão daqueles que cultuam sua suposta recusa ao sucesso e cultua a cidade, classificada de invenção: "Às vezes me
espanto e me envaideço, quando penso: "Fui eu que planejei
-que inventei- a nossa capital", e acrescento -é, deste pecado você não escapa!".
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