São Paulo, domingo, 11 de fevereiro de 2007

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A máquina de linguagem

"A Paciência do Conceito", de Gérard Lebrun, defende que Hegel rompeu com a história da filosofia

RUY FAUSTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A Paciência do Conceito", livro de estilo polêmico do ex-professor da USP Gérard Lebrun, tenta mostrar como, longe de ser mais uma construção dogmática, a filosofia de Hegel marca uma ruptura na história da filosofia. Ao contrário do que se afirma, o discurso hegeliano não compete com os das ciências positivas, mas os deixa intactos. E o hegelianismo não é uma nova filosofia, mas uma maneira inteiramente nova de conceber em que consiste a filosofia. Nem doutrina "dogmática", nem uma nova ontologia, o hegelianismo é, para Lebrun, uma "máquina de linguagem".
Hegel não propõe novas teses, mas se dispõe a deixar que as significações se "desdobrem" plenamente, num movimento em que elas exibirão seu conteúdo contraditório. Essa dialética aparece na sua forma mais perfeita no último livro da "Ciência da Lógica" -a "Lógica do Conceito", que sucede à do ser e à da essência. O melhor modelo para o movimento do conceito (a distinguir do "conceito" no sentido usual) é finalmente a distinção aristotélica entre "potência" e "ato" (mas não na acepção da passagem do germe ao indivíduo, e sim na acepção mais imediata que separa, por exemplo, o sábio no momento em que não exerce a ciência do sábio no momento em que a exerce).
Que se poderia dizer em termos críticos desse belo livro? O movimento do conceito -afirma Lebrun- remete a uma linguagem. Importante resultado contra as leituras vulgares. Porém, mais do que uma linguagem, ele é um "logos" (ver pág. 344), o que já é um pouco diferente (logos é também razão e pode ser algo como "uma ordem racional". Se o movimento do conceito não constitui uma ontologia (um discurso sobre o ser transcendente) -nem sintaticamente, porque o ser só se diz, em Hegel, dizendo o seu outro, isto é, a lógica inteira; nem, a rigor, semanticamente, se é verdade que o movimento do conceito é imanente-, há nele, sem dúvida, uma "carga ontológica".

Reabilitação
Isso é visível já na presença, no nível do conceito, do termo "objeto" ou "objetivo" ("objekt", "objektiv") -embora na imanência o conceito "desdobre" um "significado" objetivo-, e na reabilitação, mesmo se transfigurada, do tema, tradicional ("representativo") por excelência, da "adequação" (entre conceito e objeto). Com o "Conceito", não há mais separação entre sujeito e objeto. Mas sujeito e objeto, eles próprios, mesmo se como sujeito-objeto, ou por isso mesmo, só são suprimidos, a rigor, no sentido hegeliano da supressão-conservação (este deve ser também, de modo aproximado, o estatuto da "ontologia" no hegelianismo).
A linguagem do conceito não tem um estatuto mais ou menos neutro (nem "linguagem do ser" nem "simplesmente linguagem"). Seu análogo, para Hegel (em outra vertente) é o ato puro de Aristóteles; e o "Conceito", unidade do ser e da essência, culmina com a "Idéia" e com a "Idéia Absoluta". Esses termos seriam inocentes? A questão poderia parecer bizantina, mas não é, e ela interessa inclusive para pensar o destino da filosofia de Hegel.

Uma nova lógica
Afirmar que o conceito é máquina de linguagem instaura, sem dúvida, uma ruptura radical no interior da história da filosofia, mas não diz muito sobre as "sugestões" que ofereceria o hegelianismo para o seu futuro e para além da filosofia. Inversamente, afirmar que se trata do movimento de um logos reduz de certo modo a ruptura interna (estamos longe, mas não tão longe de uma ontologia), porém ressalta a novidade em termos de possibilidades "externas".
Os pós-hegelianos não herdam apenas um novo jogo de linguagem mas também a tentativa de instaurar uma nova lógica e, sem dúvida, um modelo de "estrutura significativa do objeto" -e, com isso, apesar de tudo, um conteúdo tético (teses)- que, mais para o melhor do que para o pior (o antidogmatismo hegeliano tem, por caminhos complicados, algo de dogmático, e o dogmatismo dos "pós" é sob certos aspectos antidogmático), terá por muito tempo um peso determinante, dentro e fora da filosofia.


RUY FAUSTO é filósofo, professor emérito da USP e lecionou na Universidade de Paris 8. É autor de "Marx - Lógica e Política" (ed. 34).

A PACIÊNCIA DO CONCEITO
Autor:
Gérard Lebrun
Tradução: Sílvio Rosa Filho
Editora: Unesp
Quanto: R$ 70 (412 págs.)



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