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+ brasil 501 d.C.
Elogio da lentidão
Milton Santos
O mundo de hoje parece existir
sob o signo da velocidade. O
triunfo da técnica, a onipresença
da competitividade, o deslumbramento da instantaneidade na transmissão e recepção de palavras, sons e imagens e a própria esperança de atingir outros mundos contribuem, juntos, para que
a idéia de velocidade esteja presente em
todos os espíritos e a sua utilização constitua uma espécie de tentação permanente.
Ser atual ou eficaz, dentro dos parâmetros
reinantes, conduz a considerar a velocidade como uma necessidade e a pressa como
uma virtude. Quanto aos demais não incluídos, é como se apenas fossem arrastados a participar incompletamente da produção da história.
Sem dúvida, a maioria das pessoas, das
empresas e das instituições não se utiliza
das velocidades exponenciais tecnicamente possíveis e muitos continuam a sobreviver na lentidão, mas isso não impede que o
ideário dominante, em todos os arcanos
da vida social, sugira uma existência com
ritmos cada vez mais acelerados. Paralelamente, aquela questão do "fixo tecnológico", fulcro de tantas discussões teóricas
nos anos 60 e 70, retoma atualidade.
Dizia-se que a entrada de um país na linhagem das nações desenvolvidas dependia da aceitação de condições tecnológicas
então consideradas modernas, sem as
quais a presença atuante no plano internacional seria impossível. Mas havia, também, os que discutiam e recusavam essa
premissa, afirmando que tecnologias intermediárias seriam capazes de dar conta,
satisfatoriamente, do processo de crescimento de um determinado país. Era um
tempo diferente do atual e no qual o debate civilizatório impedia o triunfo do pensamento único.
Fuga para a frente Hoje, graças às novas realidades da presente globalização, aquela tese do "technological fix" se robusteceu e se impõe com muito mais força, já que a batalha encarniçada entre os
agentes dominantes da economia os leva à
busca desesperada de tecnologias "up-to-date", por sua vez necessitadas de adaptação urgente -técnica ou organizacional- cada vez que uma nova conquista
científica é obtida.
A necessidade, sempre presente, de
competir por um mercado que é uma permanente fuga para a frente conduz a essa
espécie de endeusamento da técnica, autorizando os agentes vitoriosos a manter sua
posição de superioridade sobre os demais.
Na medida em que as grandes empresas
transnacionais ganharam dimensões planetárias, a tecnologia se tornou um credo
generalizado, assim como a velocidade.
Ambas passam a fazer parte do catecismo
da nova fé.
Todos acabam aceitando como verdade
essa premissa. Ser ultramoderno impõe-se
como uma ilusão generalizada, e o tempo
desejado é o tempo da nova técnica. Seu
ideário se alimenta de uma construção
ideologia elaborada de forma sistêmica,
mas que é apenas diretamente funcional
para um pequeno número de atores privilegiados. De fato, somente algumas pessoas, firmas e instituições são altamente
velozes. O resto da humanidade, em todos
os países, vive e produz de uma outra maneira.
Essa velocidade exacerbada, própria a
uma minoria, não tem e nem busca sentido. Serve à competitividade desabrida,
coisa que ninguém sabe para o que realmente serve, de um ponto de vista moral
ou social. Fruto das necessidades empresariais de apenas um punhado de firmas,
tal velocidade põe-se a serviço da política
de tais empresas. E estas arrastam a política dos Estados e das instituições supranacionais. E aí se situa a matriz de um grave
equívoco. Porque, vista historicamente, a
técnica não é um absoluto.
Aliás, em seu estado absoluto, a técnica
jamais foi realizada. Todas as vezes em que
deixa de ser um capítulo da ciência para
transformar-se em história, ela se relativiza. Por isso, a velocidade hegemônica
atual, do mesmo modo que aquelas que a
precederam -e tudo o que vem com ela e
que dela decorre- é apreciável, mas não
imprescindível. Não é certo que haja um
imperativo técnico, o imperativo é político. A velocidade utilizada é um dado da
política, e não da técnica.
Daí a emergência possível de uma pergunta de ordem prática: será mesmo impossível limitar a velocidade dos mais velozes, isto é, dos mais fortes? Ou, em todo
caso, poderíamos limitar essa força dos
mais fortes?
No passado, a ordem mundial pôde, em
diversos momentos da história, construir-se mediante a não-obediência aos ditames
da técnica mais moderna.
Os cem anos que se confundem com o
século do imperialismo abrigaram grandes conjuntos políticos territoriais vivendo e convivendo segundo "idades" técnicas diversas, ou melhor, segundo combinações desiguais dos avanços técnicos
possíveis. O Império Britânico estava à
frente quanto à posse e ao uso das tecnologias então mais modernas, e os outros
impérios vinham na rabeira, depois e depois. Mas isso não os impedia de conviver. O exercício da política permitia enfrentar os conflitos internos e sugerir, cada vez, novas formas de equilíbrio.
Aliás, de um ponto de vista internacional, o que se passa dentro de cada império parece se espelhar em relação ao que
se verificava externamente. A política comercial aplicada no interior desses grandes conjuntos territoriais, fragmentados
e espalhados em diversos continentes, é
que acabava permitindo a possibilidade
de sua harmonização, malgrado suas diferenças de poder, dentro do conjunto
do mundo ocidental (1). O notável é que
o balanço desses cem anos que precedem a atual fase de globalização permite,
apesar das guerras que os marcaram, reconhecer, junto aos inegáveis progressos
técnicos e ganhos econômicos, a manifestação também de progressos políticos
e éticos, com a ampliação da idéia de humanidade solidária e de sociedade nacional solidária, mediante a conquista e a
busca de aperfeiçoamento de um estatuto político eficaz na construção de uma
vida social civilizada, nos planos nacional e internacional.
Casa coletiva O progresso técnico
não constituía obstáculo ao progresso
moral, quando havia, paralelamente,
progressos políticos. Assim, o problema
fundamental é o de retomar o curso dessa história, recolocando o homem em
seu lugar central no planeta. Uma das
condições para alcançá-lo parece ser o
reconhecimento da realidade dos territórios tal como sempre foram utilizados
pela população como um todo.
São usos múltiplos marcados por diferentes velocidades e pela utilização de
técnicas as mais diversas, maneira de
deixar que o território nacional constitua
uma verdadeira casa coletiva, um abrigo
para todos, empresas, instituições e homens. Somente dessa forma, soluções de
convivência plenas ou sequiosas de humanidade são possíveis.
Não se trata de pregar o desconhecimento da modernidade -ou uma forma de regresso ao passado-, mas de encontrar as combinações que, segundo as
circunstâncias próprias a cada povo, a
cada região, a cada lugar, permitam a
construção do bem-estar coletivo. É possível dispor da maior velocidade tecnicamente possível no momento e não utilizá-la. É possível fruir da modernidade
nova, atual, sem ser obrigatoriamente o
mais veloz.
Numa situação em que se combinam
técnicas e tempos e velocidades diferentes, sem que um deles obrigatoriamente
arraste os demais, se impõem forçosamente soluções políticas que não passem
obrigatoriamente pela economia e suas
conhecidas paixões inferiores.
A velocidade não apenas se define a
partir do tempo utilizado para superar as
distâncias. A questão é a de encontrar,
para a palavra velocidade, equivalentes
na prática social e política.
Acreditamos que a noção de cidadania
se possa prestar à discussão aqui proposta, desde que a consideremos em sua tríplice significação: cidadania social, econômica e política. Quanto mais se afirmam essas diversas vertentes da cidadania, maior é a garantia de que a "velocidade" pode ser limitada, ao mesmo tempo em que os benefícios da modernidade
encontram a possibilidade de uma difusão democrática. Será dessa forma que,
num primeiro momento, serão reforçadas as individualidades fortes, provocando a necessidade de uma informação veraz, criando limites à propaganda invasora e enganosa, tudo isso se dando paralelamente a uma renovação do papel
do Estado nacional.
Será, também, por meio desse processo que o mercado interno será revigorado e os mercados comuns entre países
serão horizontalizados, abrindo caminho para que o dinheiro regresse à sua
condição histórica de equivalente universal e abandone a sua função atual de
regedor exclusivo e despótico das relações econômicas. Pelas mesmas razões,
aquilo a que chamamos de "informalidade da economia" melhor cumprirá suas
funções econômica, social e política sem
a necessidade de formalizações alienantes e fortalecendo o papel da cultura localmente constituída como um cimento
social indispensável a que cada comunidade imponha sua própria identidade e
faça valer, a um ritmo próprio, o seu sentido mais profundo.
Será um mundo no qual os que desejarem ter pressa poderão fazê-lo livremente e no qual os que não são apressados serão fortalecidos, de modo a poder pensar
na reconstrução da paz mundial e na luta
por uma convivência social digna e humana dentro de cada país.
Nota
1. Milton Santos, "A Natureza do Espaço" (ed. Hucitec), págs. 36, 37 e 152, 153.
Milton Santos é geógrafo, professor emérito da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da Universidade de São Paulo, autor, entre outros
livros, de "Por uma Outra Globalização" (Record).
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