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Consumismo no tapete voador
Shopping centers atuais remontam às passagens de Londres e Paris, no século 19, e aos
bazares iranianos do século 10º
PETER BURKE
COLUNISTA DA FOLHA
G
ilberto Freyre sugeriu certa vez que
diferentes tipos de
construção revelam algo importante sobre a cultura dentro da
qual foram criadas. "O século
19 criou o "grande hotel" assim
como o século 6º criou a catedral gótica", disse ele.
Qual seria o equivalente à catedral ou ao hotel em nossos
tempos? O shopping center,
com certeza. O shopping é ao
mesmo tempo uma resposta
aos problemas urbanos, uma
forma arquitetônica que molda
nosso cotidiano e um símbolo
da sociedade de consumo.
No Brasil, o shopping parece
ter sido uma inovação nos anos
1960. Em São Paulo, por exemplo, o shopping Iguatemi foi
aberto em 1966. Foi uma resposta aos problemas de estacionamento nessa região da cidade, que levaram à decadência
de ruas comerciais como a rua
Augusta.
Desde então, os shoppings se
multiplicaram. Eles se converteram em centros de sociabilidade, tomando o lugar das ruas
e das praças como lugares para
passear, encontrar amigos, tomar um café e ir a restaurantes
e cinemas. Poderíamos dizer
que o shopping center se converteu num modo de vida, entre outras razões porque garante um ambiente seguro. Até
que ponto esse fenômeno é distintamente brasileiro?
Como é o caso de tantas inovações surgidas nos últimos
cem anos, mais ou menos, os
EUA foram os primeiros a ter
shoppings. Já havia 30 shoppings nos EUA em 1940, e até
1970 esse número já tinha crescido para cerca de 13 mil, sendo
que alguns dos mais famosos
incluíam o Linda Vista, em Los
Angeles (1944), o Northland
Center, em Detroit (1954), e o
The Mall, em Fresno (1968).
Contra as intempéries
Os centros começaram como
uma combinação de lojas, estacionamentos de veículos e
áreas de pedestres, mas pouco
depois ganharam o acréscimo
de cafés, restaurantes, cinemas
e agências bancárias, criando
virtuais pequenas cidades, protegidas tanto das intempéries
do clima quanto (graças aos
guardas de segurança) da violência. Esses empreendimentos faziam e ainda fazem muito
sentido econômico.
Construídos em áreas de aluguel baixo, nas periferias das cidades ou até mesmo fora delas,
dotadas de amplo espaço para
estacionamento, tinham como
público as famílias que eram
atraídas pelos cinemas ou restaurantes, mas que ficavam para fazer compras também (ou
eram atraídas pelas lojas, mas
ficavam mais tempo para comer fora ou ir ao cinema).
Esses complexos geralmente
são descritos como "malls", o
que é um termo revelador, já
que "mall" antigamente indicava uma avenida ladeada por árvores na qual os pedestres podiam passear, como é o caso da
The Mall, em Londres, que vai
de Trafalgar Square até o Palácio de Buckingham.
Em outras palavras, eram
ruas em espaços fechados.
Um exemplo especialmente
inequívoco de brincadeira com
essa idéia pode ser encontrado
em Las Vegas, onde o Caesar's
Palace, por exemplo, é um
shopping que inclui uma "piazza" em estilo italiano, com fonte e um restaurante italiano
com mesas em seu interior e
"ao ar livre".
O "céu" muda de cor a cada
poucos minutos para dar às
pessoas a ilusão de estarem de
fato comendo na rua.
Arquitetos americanos renomados, como Clarence Stein
(1882-1975) e Victor Gruen
(1903-80), participaram da
criação de alguns desses complexos e enxergaram o shopping center como centro de sociabilidade.
Invenção não tão nova
Uma espécie de substituto,
em ambiente fechado, da vida
das ruas, que, nessa época, se
encontrava mais e mais ameaçada pela expansão das cidades,
pelo uso crescente do automóvel e pelo conseqüente declínio
das calçadas. Olhando em retrospectiva, os historiadores
sem dúvida vão enxergar os
shoppings como símbolos da
sociedade de consumo, nos
quais fazer compras -ou, pelo
menos, olhar as vitrines sem
comprar nada-, converteu-se
em forma de lazer importante.
Eles também oferecem um
bom exemplo de como a arquitetura não apenas exprime os
valores de uma cultura (como
sugeriu Gilberto Freyre com
sua comparação entre catedrais e hotéis) mas também
molda a vida social, incentivando o surgimento de novas rotinas cotidianas e novas formas
de sociabilidade.
Essa nova invenção transformou as vidas de muitas pessoas
no último meio século, mas, como tantas invenções, não é tão
nova quanto pode parecer. O
"mall" criado por Victor Gruen
em Southdale, Minnesota,
aberto em 1956 e que serviu de
modelo para muitos complexos
erguidos posteriormente, se
inspirou -como a galeria Pacífico, em Buenos Aires- na galeria Vittorio Emanuele, de Milão (1877).
Várias galerias semelhantes,
como os italianos as chamam,
foram erguidas ainda no final
do século 19 em Roma, Nápoles, Berlim, Paris, Bruxelas e
outras cidades (uma delas foi
planejada para São Paulo, mas
o projeto não chegou a se concretizar).
A luz que passa pelos telhados de vidro dessas galerias não
apenas aumenta a visibilidade
dos produtos expostos nas vitrines como cria a ilusão de que
se está caminhando ao ar livre
ou sentado diante de mesas de
um café ao ar livre.
As grandes galerias do final
do século 19 foram inspiradas,
por sua vez, nas construções
mais modestas que surgiram
em Paris e Londres a partir do
final do século 18, descritas por
um guia de Paris, em 1852, como "invenção recente do luxo
industrial".
Os franceses chamavam essas construções de "passagens", enquanto os britânicos
as denominavam "arcadas".
Entre as mais famosas estavam
a Passage des Panoramas
(1800), a Passage de l'Opéra
(1823) e, em Londres, a Burlington Arcade (1819), nas proximidades de Piccadilly, que
ainda abriga lojas elegantes.
As "passagens" francesas do
século 19 foram objeto de um
ensaio famoso de Walter Benjamin ["Passagens", ed.
UFMG/Imprensa Oficial de
SP], que sugeriu que a experiência de caminhar nesses espaços cobertos encorajava as
pessoas a ver a cidade inteira
com "o olhar do "flâneur" (aquele que perambula por prazer)".
Benjamin evocou e elogiou as
"passagens" parisienses na década de 1920, época, justamente, em que a tradição parecia estar chegando ao fim -até ser
redescoberta e adaptada ao
mundo social da América do
Norte, na década de 1950.
Marketing
Mas a história que estou contando, partindo do presente para o passado, não termina em
1800. Os nomes de algumas das
"arcadas" ou galerias do século
19 são reveladores: o Soho Bazaar e o Baker Street Bazaar,
em Londres, e o Sillem's Bazaar, em Hamburgo.
Essas "arcadas" pretendiam
evocar o estereótipo do "luxo
oriental" que faz parte das visões ocidentais do Oriente descritas por Edward Said (1935-2003) como "orientalismo".
Podemos olhar para essas
construções não apenas de um
ponto de vista prático, como lugares para as pessoas se refugiarem da chuva, mas também
como artifício inteligente de
marketing, na medida em que
seu charme exótico encorajava
a ilusão agradável de que os
consumidores e "flâneurs" tinham subido num tapete voador e chegado ao Oriente.
A idéia de imitar o bazar
oriental parece ter surgido em
Paris, onde em 1799 foi aberta a
Passage du Caire, decorada em
estilo egípcio. A questão era
que Napoleão acabara de invadir o Egito, o que tornava o tema oriental pontual e na moda.
Em outras palavras, o modelo seguido conscientemente
por essas galerias, "arcadas" ou
passagens era o do "suq": o
Grande Bazar de Isfahan [atual
Irã], por exemplo, que data do
século 10º, ou o Grande Bazar
de Istambul, que foi construído
no século 15 e que, ao que consta, contém 4.000 lojas.
Na próxima vez em que você
for aos shoppings Ibirapuera
ou Iguatemi, imagine-se caminhando por um "suq".
Ou, se você estiver passeando
pelo Grande Bazar de Istambul,
imagine que está num shopping center -coisa que não será difícil, já que hoje o bazar
contém cafés que servem café
expresso, nos moldes dos shopping centers ocidentais.
O círculo da imitação está
completo.
PETER BURKE é historiador inglês, autor de "O
Que É História Cultural?" (ed. Jorge Zahar). Escreve na seção "Autores", do Mais! .
Tradução de Clara Allain.
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