São Paulo, domingo, 11 de março de 2007

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Consumismo no tapete voador

Shopping centers atuais remontam às passagens de Londres e Paris, no século 19, e aos bazares iranianos do século 10º

PETER BURKE
COLUNISTA DA FOLHA

G ilberto Freyre sugeriu certa vez que diferentes tipos de construção revelam algo importante sobre a cultura dentro da qual foram criadas. "O século 19 criou o "grande hotel" assim como o século 6º criou a catedral gótica", disse ele. Qual seria o equivalente à catedral ou ao hotel em nossos tempos? O shopping center, com certeza. O shopping é ao mesmo tempo uma resposta aos problemas urbanos, uma forma arquitetônica que molda nosso cotidiano e um símbolo da sociedade de consumo.
No Brasil, o shopping parece ter sido uma inovação nos anos 1960. Em São Paulo, por exemplo, o shopping Iguatemi foi aberto em 1966. Foi uma resposta aos problemas de estacionamento nessa região da cidade, que levaram à decadência de ruas comerciais como a rua Augusta. Desde então, os shoppings se multiplicaram. Eles se converteram em centros de sociabilidade, tomando o lugar das ruas e das praças como lugares para passear, encontrar amigos, tomar um café e ir a restaurantes e cinemas. Poderíamos dizer que o shopping center se converteu num modo de vida, entre outras razões porque garante um ambiente seguro. Até que ponto esse fenômeno é distintamente brasileiro?
Como é o caso de tantas inovações surgidas nos últimos cem anos, mais ou menos, os EUA foram os primeiros a ter shoppings. Já havia 30 shoppings nos EUA em 1940, e até 1970 esse número já tinha crescido para cerca de 13 mil, sendo que alguns dos mais famosos incluíam o Linda Vista, em Los Angeles (1944), o Northland Center, em Detroit (1954), e o The Mall, em Fresno (1968).

Contra as intempéries
Os centros começaram como uma combinação de lojas, estacionamentos de veículos e áreas de pedestres, mas pouco depois ganharam o acréscimo de cafés, restaurantes, cinemas e agências bancárias, criando virtuais pequenas cidades, protegidas tanto das intempéries do clima quanto (graças aos guardas de segurança) da violência. Esses empreendimentos faziam e ainda fazem muito sentido econômico.
Construídos em áreas de aluguel baixo, nas periferias das cidades ou até mesmo fora delas, dotadas de amplo espaço para estacionamento, tinham como público as famílias que eram atraídas pelos cinemas ou restaurantes, mas que ficavam para fazer compras também (ou eram atraídas pelas lojas, mas ficavam mais tempo para comer fora ou ir ao cinema). Esses complexos geralmente são descritos como "malls", o que é um termo revelador, já que "mall" antigamente indicava uma avenida ladeada por árvores na qual os pedestres podiam passear, como é o caso da The Mall, em Londres, que vai de Trafalgar Square até o Palácio de Buckingham.
Em outras palavras, eram ruas em espaços fechados. Um exemplo especialmente inequívoco de brincadeira com essa idéia pode ser encontrado em Las Vegas, onde o Caesar's Palace, por exemplo, é um shopping que inclui uma "piazza" em estilo italiano, com fonte e um restaurante italiano com mesas em seu interior e "ao ar livre".
O "céu" muda de cor a cada poucos minutos para dar às pessoas a ilusão de estarem de fato comendo na rua. Arquitetos americanos renomados, como Clarence Stein (1882-1975) e Victor Gruen (1903-80), participaram da criação de alguns desses complexos e enxergaram o shopping center como centro de sociabilidade.

Invenção não tão nova
Uma espécie de substituto, em ambiente fechado, da vida das ruas, que, nessa época, se encontrava mais e mais ameaçada pela expansão das cidades, pelo uso crescente do automóvel e pelo conseqüente declínio das calçadas. Olhando em retrospectiva, os historiadores sem dúvida vão enxergar os shoppings como símbolos da sociedade de consumo, nos quais fazer compras -ou, pelo menos, olhar as vitrines sem comprar nada-, converteu-se em forma de lazer importante.
Eles também oferecem um bom exemplo de como a arquitetura não apenas exprime os valores de uma cultura (como sugeriu Gilberto Freyre com sua comparação entre catedrais e hotéis) mas também molda a vida social, incentivando o surgimento de novas rotinas cotidianas e novas formas de sociabilidade. Essa nova invenção transformou as vidas de muitas pessoas no último meio século, mas, como tantas invenções, não é tão nova quanto pode parecer. O "mall" criado por Victor Gruen em Southdale, Minnesota, aberto em 1956 e que serviu de modelo para muitos complexos erguidos posteriormente, se inspirou -como a galeria Pacífico, em Buenos Aires- na galeria Vittorio Emanuele, de Milão (1877).
Várias galerias semelhantes, como os italianos as chamam, foram erguidas ainda no final do século 19 em Roma, Nápoles, Berlim, Paris, Bruxelas e outras cidades (uma delas foi planejada para São Paulo, mas o projeto não chegou a se concretizar). A luz que passa pelos telhados de vidro dessas galerias não apenas aumenta a visibilidade dos produtos expostos nas vitrines como cria a ilusão de que se está caminhando ao ar livre ou sentado diante de mesas de um café ao ar livre.
As grandes galerias do final do século 19 foram inspiradas, por sua vez, nas construções mais modestas que surgiram em Paris e Londres a partir do final do século 18, descritas por um guia de Paris, em 1852, como "invenção recente do luxo industrial". Os franceses chamavam essas construções de "passagens", enquanto os britânicos as denominavam "arcadas". Entre as mais famosas estavam a Passage des Panoramas (1800), a Passage de l'Opéra (1823) e, em Londres, a Burlington Arcade (1819), nas proximidades de Piccadilly, que ainda abriga lojas elegantes.
As "passagens" francesas do século 19 foram objeto de um ensaio famoso de Walter Benjamin ["Passagens", ed. UFMG/Imprensa Oficial de SP], que sugeriu que a experiência de caminhar nesses espaços cobertos encorajava as pessoas a ver a cidade inteira com "o olhar do "flâneur" (aquele que perambula por prazer)". Benjamin evocou e elogiou as "passagens" parisienses na década de 1920, época, justamente, em que a tradição parecia estar chegando ao fim -até ser redescoberta e adaptada ao mundo social da América do Norte, na década de 1950.

Marketing
Mas a história que estou contando, partindo do presente para o passado, não termina em 1800. Os nomes de algumas das "arcadas" ou galerias do século 19 são reveladores: o Soho Bazaar e o Baker Street Bazaar, em Londres, e o Sillem's Bazaar, em Hamburgo. Essas "arcadas" pretendiam evocar o estereótipo do "luxo oriental" que faz parte das visões ocidentais do Oriente descritas por Edward Said (1935-2003) como "orientalismo".
Podemos olhar para essas construções não apenas de um ponto de vista prático, como lugares para as pessoas se refugiarem da chuva, mas também como artifício inteligente de marketing, na medida em que seu charme exótico encorajava a ilusão agradável de que os consumidores e "flâneurs" tinham subido num tapete voador e chegado ao Oriente. A idéia de imitar o bazar oriental parece ter surgido em Paris, onde em 1799 foi aberta a Passage du Caire, decorada em estilo egípcio. A questão era que Napoleão acabara de invadir o Egito, o que tornava o tema oriental pontual e na moda.
Em outras palavras, o modelo seguido conscientemente por essas galerias, "arcadas" ou passagens era o do "suq": o Grande Bazar de Isfahan [atual Irã], por exemplo, que data do século 10º, ou o Grande Bazar de Istambul, que foi construído no século 15 e que, ao que consta, contém 4.000 lojas. Na próxima vez em que você for aos shoppings Ibirapuera ou Iguatemi, imagine-se caminhando por um "suq".
Ou, se você estiver passeando pelo Grande Bazar de Istambul, imagine que está num shopping center -coisa que não será difícil, já que hoje o bazar contém cafés que servem café expresso, nos moldes dos shopping centers ocidentais. O círculo da imitação está completo.


PETER BURKE é historiador inglês, autor de "O Que É História Cultural?" (ed. Jorge Zahar). Escreve na seção "Autores", do Mais! . Tradução de Clara Allain.


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