São Paulo, domingo, 11 de abril de 2004

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+ cultura

"A Etiqueta de Livros no Brasil" reúne e estuda selos afixados na obras com os nomes dos estabelecimentos e se impõe como um documento valioso de história cultural

Chá, rapé, livros e outros artigos sem rivais

Marcelo Coelho
Colunista da Folha

Todo mundo conhece coleções de selos, de colherinhas de café, de caixas de fósforo e mesmo de anéis de charuto. Mas este livro de luxo, volumoso e pesado, dedica-se a um item de colecionador bem menos usual: as etiquetas de livraria. A julgar pela contracapa, trata-se da primeira publicação mundial dedicada a objeto tão simpático e secundário.
Grudados num canto de página, com o nome e o endereço da livraria em que o livro foi comprado, esses pequenos selos, muitas vezes de papel ordinário (caso em que servem apenas para anotar o preço do exemplar), nada têm de especial para chamar a atenção.
Reunidos, estudados, comentados, fotografados e finalmente impressos num volume de arte, constituem documento valioso sobre a história cultural de um país e coisa muito bonita de ver.


Certa saudade de dom Pedro 2º e da velha rua do Ouvidor convém ao espírito geral deste trabalho, mas que se estende até hoje

"A Etiqueta de Livros no Brasil" (Imprensa Oficial do Estado de SP/ Oficina do Livro Rubens Borba de Moraes/Edusp (tel. 0/xx/11/3091-4008), 459 págs., R$ 180), de Ubiratan Machado -não sei qual o nome de sua atividade: bibliófilo? Parabibliófilo? Bibliofilatelista?-, justamente oscila entre o interesse documental-histórico e o puramente estético.
Ao que tudo indica, a primeira etiqueta brasileira foi impressa em Salvador, no final da década de 1820. Ela informa que "Antonio Jozé Coimbra/ vende livros e encaderna/ de todas as qualidades". A sintaxe, embora arrevesada, não dói tanto nos ouvidos quanto a etiqueta-anúncio de um estabelecimento comercial de Pelotas: "Os nossos cadernos/.../ É um artigo sem rival/ Para se poder comprar barato dirigir-se á/ Livraria Americana".
Ubiratan Machado observa que, nesses primórdios comerciais, as livrarias não se sustentavam apenas com a venda de livros. As etiquetas mostram que o freguês podia também se abastecer de chá, rapé, objetos de escritório, porcelanas; serviços de encadernação e mesmo de relojoaria eram oferecidos assim como "qualquer trabalho tendente á arte typographica" -caso da livraria Boulitreau, de Recife.
É curto o predomínio dos livreiros portugueses (como um tal José Fernandes de Sousa, o Pândega, em São Paulo, que, se lhe roubavam uma galinha do quintal, descarregava o prejuízo no preço do primeiro livro que vendesse). Logo chegam os franceses, cujo nome ainda é familiar: Garraux, em São Paulo (1860), e antes, no Rio, Laemmert (1833) e Garnier (1845).
Em 1872, havia 35 livrarias no Rio de Janeiro. A cidade tinha 274 mil habitantes. "Ou seja", diz Machado, "uma livraria para cada 7.830 habitantes". Em 2001, a proporção sobe para 23.783 habitantes no Rio e 41.625 habitantes em São Paulo; Porto Alegre é a cidade com mais livrarias por habitante: uma a cada 12.636.
O autor não esconde suas simpatias pelo fastígio da época imperial. A Proclamação da República, afirma, "mergulhou o país num dos períodos mais críticos de sua história. Houve uma retração violenta da freguesia, com a consequente crise do comércio livreiro. O número de livrarias começou a decrescer a cada ano".
Certa saudade de dom Pedro 2º e da velha rua do Ouvidor convém ao espírito geral deste trabalho -cujo âmbito se estende, contudo, até os dias atuais. Em favor das grandes redes de livrarias (que começam a surgir na década de 60) e das "megastores" de hoje, diga-se aliás que ainda não abandonaram o hábito das etiquetas. As informações históricas do livro de Ubiratan Machado se concentram em curtos capítulos introdutórios. Das suas 459 páginas, mais de 300 se compõem de reproduções coloridas das próprias etiquetas, em papel cuchê, separadas por Estado de origem. Uma das muitas qualidades do livro, aliás, é a de não dedicar atenção exclusiva ao eixo Rio-São Paulo. Cidades como Belém (30 etiquetas), Teresina (sete etiquetas), Formiga (em Minas, duas etiquetas) e Juruá, no Acre (uma só) também aparecem.
Por outro lado, grandes livrarias, como a Teixeira e a Siciliano, em São Paulo, ocupam sozinhas mais de um página cada uma. O efeito visual é sedutor: vemos o mesmo selo (em pequeno formato de livro, o da Teixeira, ou com o L e o S espelhados, lembrando uma âncora, o da Siciliano) variar nas mais diversas cores.
Encontramos mesmo, nas livrarias mais antigas, certas colorações de estampilha, fora de moda, como a dos bilhetes da sorte em realejo: um marrom de bala de cevada, um amarelo de bala de abacaxi, turquesas desbotados, vermelhões, carmins, ferrugens; e há as etiquetas de luxo, em várias cores, feitas em papel laminado, com relevo; as raridades, as ruínas, os formatos exóticos... Sem contar as pequenas obras-primas do gênero: as da casa Manon ou da livraria Magalhães, em São Paulo; as da livraria Americana, de Pelotas (RS); as da papelaria Progresso, em Juiz de Fora (MG), por exemplo.
É por motivos assim que o interesse estético acaba se sobrepondo à precisão historiográfica. Dispostas com muito bom gosto em cada página, conforme a combinação das cores e dos formatos, parecem mais ou menos coexistir etiquetas de épocas diferentes; e, como a organização se faz por Estados, e por livrarias dentro de cada Estado, não temos uma linha de tempo contínua no livro (mesmo porque, aliás, deve ser quase impossível determinar a data de aparecimento de muitas etiquetas).
Os que gostam de comprar livros e terminam sem ler nenhum podem respirar aliviados: "A Etiqueta de Livros no Brasil", embora tenha interessante material de leitura, é de certo modo um livro feito só daquilo que não se vê, que não se lê, que nem sempre se guarda de todos os livros que compramos.
Seu material, modesta primícia do prazer bibliográfico, nem por isso deixa de ser imensamente rico.


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