São Paulo, domingo, 11 de abril de 2004

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LEIA ABAIXO DEPOIMENTO DO ARCEBISPO EMÉRITO DE SÃO PAULO, DOM PAULO EVARISTO ARNS, SOBRE O PERÍODO VIVIDO EM UM SEMINÁRIO DURANTE OS ANOS 30

LIÇÕES DE SOLIDARIEDADE

Paulo Evaristo Arns
Fiz o ginásio e o colégio no seminário (menor) de Rio Negro. Fui para lá partindo de Forquilinha, antigamente município de Criciúma, hoje uma cidade de 180 mil habitantes e que recentemente sofreu com o ciclone. Fui com 12 anos ao seminário. Classificavam todos os estudantes antes de serem admitidos no primeiro ano ginasial. Tive a sorte de logo entrar para o primeiro ano ginasial sem passar pelos dois anos de preparatório. Estudava antes na colônia com dois tios, tio Adolfo e tio Jacó, irmão e cunhado de meu pai, em regime escolar, com umas 40 crianças. Meus tios eram professores formados em Blumenau.
As matérias principais que se ensinavam no seminário eram português e latim. A partir da terceira série já ensinavam grego, latim, francês, alemão e as mais diversas matérias que formam a grade das escolas públicas, que não tinham tanto latim e tanto português quanto nós. O que me proporcionou alegria especial era a dedicação dos professores e o ensino muito bem ministrado só por padres, que na maioria eram alemães. Todos eles eram extremamente rigorosos tanto nas aulas da manhã, que começavam às 7h30 e terminavam às 12h, quanto no estudo, que se iniciava normalmente às 14h e, com alguma pausa para recreio, ia até as 18h30.
O estudo era sempre numa grande sala, vigiado por um padre ou um substituto dele. Cada qual tinha sua carteira e seus apetrechos escolares, e todos eram examinados pelos resultados que apresentavam no dia seguinte. Reunidos no mesmo espaço, bem amplo, bem arejado e num clima bem frio. Só trago lembranças favoráveis tanto do ensino como do relacionamento com os colegas e os professores.
Cada classe tinha o seu chamado "sênior", quer dizer, o mais antigo [encarregado de vigiar os demais alunos], que costumava ser aquele que tirasse as melhores notas no semestre. Nunca perguntamos a razão desse nome "sênior"; eu, por exemplo, fui logo no primeiro semestre escolhido sênior, mesmo sendo o mais novo de todos. Fui escolhido todos os anos, até terminar o colegial, porque sempre fui o primeiro da classe, por isso era o sênior automaticamente.
O que eu introduzi imediatamente como sênior foi [a prática de] nunca denunciar um aluno por causa de uma brincadeira qualquer ou de uma transgressão das pequenas regrinhas observadas por todo mundo. Por exemplo, conversar nas pausas de uma aula para outra ou preparar em conjunto as matérias que cada qual devia apresentar escritas de próprio punho, se ele a copiasse de outro. Há uma questão muito especial: logo no primeiro ano fundamos um jornal em que cada qual podia escrever os artigos que quisesse, e estes eram publicados. A partir do segundo ano o jornal se tornou semanário e recebeu o nome de "União": publicava os artigos sob pseudônimos, como Rui Barbosa, Nabuco, Machado de Assis e tantos outros.
O nosso professor de português naqueles dois anos era um gaúcho chamado frei Cipriano Chardon, que nos obrigava a escrever para cada aula um artigo de uma página sobre qualquer assunto, e as melhores produções literárias eram passadas para o "Livro de Ouro" e comentadas pelo professor, que as corrigia diariamente. Giravam em torno de qualquer coisa, por exemplo o lápis, a cadeira, qualquer animal, qualquer coisa, nós podíamos escolher o que quiséssemos. Foi fundamental para nos incentivar a escrever aquilo que observávamos sobre objetos, animais ou pessoas.
Essa técnica funcionou durante dois anos. Na quarta série recebemos um novo professor, que era carioca e fazia questão de realçar seu "privilégio" de carioca; ele nos ensinava literatura brasileira, mas também as técnicas da métrica em poesia, do estilo, nas mais diversas condições, e ele dirigia também o teatro para nos ensinar gestos, as tonalidades da voz e a capacidade de encarnar um personagem.
Fiz muitos teatros, qualquer festinha de seminário terminava com a arte ou, digamos, com ensaios literários. Eu representava em quase todos os teatros, por exemplo, em "O Gondoleiro da Morte" representei o próprio gondoleiro, portanto o bandido. Representamos [essa peça] até em Curitiba. Em geral eram teatros entendidos por todos os alunos, da primeira até a última série, não eram escolhidos pela linguagem seleta, mas sim por seu conteúdo e pela possibilidade de os alunos se aperfeiçoarem na arte da apresentação em público. Peças religiosas, profanas, de todos os tipos.
Festas havia a toda hora, e com todo brilho, tanto da missa, quanto do canto, quanto do coral, havia grandes professores músicos, compositores, tínhamos uma orquestra que era conhecida na cidade e que apresentava músicos de talento, sobretudo porque naquele tempo recebíamos reforços de alunos da Alemanha que vinham ser missionários franciscanos no Brasil, e alguns deles haviam feito curso completo de música e nos ajudavam a treinar os diversos instrumentos, como também a cantar as peças polifônicas mais variadas.
Não faltava nem a orquestra, que ensaiava todos os dias, nem a banda de música, que tocava nas festas do colégio e da cidade de Rio Negro e formava o gosto daqueles que tinham habilidade para o gênero musical. Eu cantava sempre.
Em termos de leitura, nossos mestres foram verdadeiros pedagogos. Eles nos passavam os livros conforme nossa idade e conforme nossa curiosidade e nos reservavam não só o tempo das férias para a leitura, mas também um tempo à noite, para lermos o que mais nos agradasse em diversas línguas. Romance era o que mais agradava. Descrições de viagens, aventuras, conquistas, história universal, da evolução do próprio Brasil, das questões brasileiras.
Essa experiência foi de 1934 até o fim de 1939; tenho só lembranças boas daquele tempo, sobretudo pela prática da solidariedade. Aprendi muito sobre são Francisco, sobre a vida missionária dos franciscanos, sobre o modo de trabalhar com o povo simples e de gostar de situações difíceis. Lá, porém, tínhamos pouquíssimo contato com o povo, só nos dias de festa, era muito pouco, não nos fazia praticamente falta naquele momento, mais tarde é que fomos refletir sobre esse assunto.
Em Petrópolis [1956-1966], depois de voltar da França [onde fez doutorado na Sorbonne], vim a ter muito contato [com a população carente], sete morros eram meus, onde ficavam favelas; subia três vezes por semana para verificar se o pessoal tinha saúde, escola, convivência pacífica e prática religiosa aprendida em casa ou trazida de Minas ou de outros Estados. Pudemos cuidar dos pobres e lembrar os tempos em que éramos criança e passávamos necessidade como gente pobre da colônia. Eram anos muito bonitos, a maior satisfação da vida, e, juntamente com o trabalho com os seminaristas [no Instituto Franciscano de Teologia de Petrópolis, naquele período], ensinando a minha matéria [a evolução do cristianismo e o pensamento dos Padres da Igreja], era uma realização pessoal como não podia haver outra.
Espero que a igreja no futuro se ocupe muito mais do relacionamento inter-religioso para termos um código mínimo de ética para todos os povos e uma possibilidade de paz autêntica, sem guerras internas e externas. A paz é o maior dom de Deus. Quando Cristo nasceu, os anjos cantavam paz aos homens de boa vontade. Quando ele se despediu do mundo, disse: "A paz esteja com vocês". Se é o desejo de Cristo, é o nosso desejo, e há de ser o desejo dos futuros padres.


Depoimento colhido por Caio Caramico Soares.


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