São Paulo, domingo, 11 de abril de 2004

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Poema de José Kozer

Tradução de Josely Vianna Baptista

Água constante e miúda

Onde houve abril cai um aguaceiro, ouço o chapinhar,
avanço (assovio) a água apaga a cântaros o mundo
exterior, apenas a forma cônica de um guarda-chuva
de bambu, que esqueci em casa: assovio, ouço o
rumo passo a passo a torrente corre pelos bueiros
da cidade para as gargantas dos precipícios, greta
entre montanhas: o pé eu finco levanto avanço
perco o pé me reequilibro, as águas despencam;
rangem sob as solas de minhas botinas de inverno
os bichinhos secos do verão, e esta água não os molha:
cai do alto e não os molha; piso, e rangem, rangem e
ouço, frágil lamento de um pecíolo, os metatarsos
de uma rosa rangeram, pulou amarelo o pólen (devo
lembrar de novo que não é verão). Não é ilha: dádiva.
O vale não está no vale. A água se arroja por um solo
seco lá no fundo não há trigais, um total abandono
à vista o esquilo preto que trepa a interpretação de um
choupo; álamo sem bosque de carvalhos; bosque
de chorões sem castanheiros-da-Índia; o velho esquilo
corre para a toca com a única bolota rolada no chão
naquele dia, guardou rubi, guardou goma-arábica,
rangem as esfoladuras de animais domésticos a passo,
sob minhas botas: água; apenas água; o grande aguaceiro
onde foi abril inunda minha cantilena, mal posso ver,
os óculos se embebem do leito seco do rio (lá embaixo),
oleandros em flor a suas margens, um longo percurso
seco os oleandros até a janela, debruçar-me no peitoril,
apoiar o queixo no mainel, a testa no vidro da janela,
abril, e chove: saio, esqueci o guarda-chuva, no
caminho escrevo um poema no caderno de notas,
a caneta-tinteiro já faz das suas, aves árvores trigais
a casa do telhado de ardósia, jorra: da calha do telhado
de duas águas à terra amolecida, urbe, alverca, o canto
estridente das cigarras (me lembro, agora, ainda não é
verão): a água dissolveu a tinta do poema; guardo o
caderno no bolso avesso do paletó verde-escuro de
veludo, ajeito o gorro de lona, o cachecol vermelho:
sou eu, precipito-me, a emoção agita de novo a forma
despenteada de minha cabeça, priora e rododendro
(em flor) meandro e zibelina viva farejando na boca
das tocas, esta cabeça; encharcada: vou correr, entrar
de cabeça nessa biografia da água que deixa um
sedimento de florestas (amapolas; o senécio) escorre
a tinta da caneta-tinteiro sobre o papel sob o aguaceiro,
um arroio as letras, e, embaixo, a aranha da água tece,
tece e irrompe, está suja de borra, fabrica e trama, depois
da última cortina de chuva que cai aos borbotões
(pelo caminho, da janela) guardo o vazado filete
(caudal, caudal) das nomenclaturas.


José Kozer nasceu em Havana em 28 de março de 1940, emigrando para os Estados Unidos em 1960. Sua vasta obra poética inclui "Carece de causa", "et mutabile", "Trazas del lirondo" e "Fronda" (inédito, a sair no Brasil por Edições Mirabilia).

Josely Vianna Baptista é poeta, autora de "Ar" e "Corpografia" (ambos pela ed. iluminuras). Entre suas traduções, encontram-se livros de Jorge Luis Borges e Néstor Perlongher.



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