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Os novos bolchevistas
Silêncio de instituições e intelectuais brasileiros sobre a violação de direitos políticos em Cuba revela o mais estreito pragmatismo
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
COLUNISTA DA FOLHA
Para os mais jovens,
vale lembrar que os
bolchevistas -palavra que vem do russo
significando maioria- representavam a facção
majoritária que, no congresso
do Partido Comunista de 1903,
seguiu Lênin, contra os menchevistas, os minoritários, sociais-democratas mais moderados do que o grande líder revolucionário.
Mas interessa, neste momento, lembrar que o bolchevismo representou uma forma
de prática política em que o militante adere ao partido de corpo e alma, como se aderisse a
uma igreja, a uma instituição
prenhe de verdade.
Os velhos comunistas pediam a autorização do partido
para se casarem.
E, durante os processos de
Moscou, quando Stálin liquidou seus adversários, estes terminaram confessando crimes
que não tinham cometido, pois
pensavam o partido como a
morada da verdade.
Se o comunismo desapareceu do horizonte político de
hoje, se a democracia se impôs,
vamos dizer assim, como valor
universal, não é por isso que essa adesão emocional, e às vezes
mística, a uma organização política tenha se extinguido.
É muito comum em pequenos partidos de esquerda (ou
de direita), assim como em certas correntes da esquerda infiltradas nos grandes partidos.
A maior surpresa, todavia, é
constatar que medra no pensamento de muitos intelectuais.
Compreende-se que um militante endosse uma decisão
partidária, mesmo contra sua
vontade. Participou das discussões internas do partido e, tendo perdido a disputa, só lhe cabe acatar a decisão da maioria.
Há um compromisso com a
instituição em que milita. Se
ela viola seus princípios, resta-lhe apenas retirar-se.
Nas situações-limite, porém,
essa regra se torna relativa.
Ao intelectual, em particular,
orgânico ou não, cabe estar
sempre atento às questões de
princípio. Se um partido nega
um de seus esteios fundadores,
não precisa abandoná-lo, desde
que faça ouvir bem alto sua voz
discordante.
Não há como
transigir quando se trata de
uma questão que diz respeito
ao funcionamento da própria
democracia, do direito de as
minorias se manifestarem e lutarem por seus ideais.
Sabemos que não é o que está
acontecendo em Cuba, na China e em outros lugares.
Minha geração foi tomada de
entusiasmo pela Revolução
Cubana. Era um raio de sol na
América Latina, quando predominavam as contrarrevoluções
autoritárias. Entendemos a necessidade de Fidel se aproximar da União Soviética, diante
da pressão americana, principalmente depois do embargo
decretado.
Aceitamos, embora com relutância, o "paredón", o fuzilamento dos inimigos do regime.
Há momentos em que a violência política se torna inevitável.
Mas aos poucos fomos percebendo que a Revolução Cubana
estava se degenerando.
Caricatura
Jean-Paul Sartre [1905-80]
foi o primeiro intelectual conhecido a romper com Fidel.
Depois se avolumaram as evidências de que o regime se tornava cada vez mais autoritário,
reprimindo sem piedade qualquer manifestação oposicionista. Hoje a República cubana é
uma caricatura do socialismo.
E o embargo americano que
impede Cuba de se desenvolver? E as conquistas sociais,
principalmente no campo da
saúde, da educação e do esporte, que colocaram Cuba na modernidade?
Tudo isso continua sendo
muito pertinente, mas não retira dos cubanos o direito de divergirem das políticas oficiais.
Mais ainda, não abole a distinção entre o preso político,
aquele que sofre punição por
sua militância política, e o preso comum, que simplesmente
transgride em prol de si mesmo
ou de sua gangue.
As manifestações contra o
regime cubano crescem dia a
dia. Tudo indica que a repressão aumentará. Não podemos
aceitar que os manifestantes
sejam tratados como presos comuns. Mas, como sempre, o governo Lula dá uma no prego e
outra na ferradura.
Desta vez, porém, a pancada
na ferradura foi muito maior,
porque ferrou qualquer adversário, negando seu estatuto de
político, mesmo quando faz
greve de fome para ser reconhecido como tal.
Cabe então a nós, intelectuais brasileiros, denunciar essa violência, defender o direito
e o espaço das oposições.
No entanto, muitos de nós
simplesmente estão se furtando a tomar firme posição contra esse escândalo. Estão casados com os grupos de esquerda
em que militam e comprometidos com a política do atual governo, mesmo quando ela nega
princípios gerais que comandam os ideais democráticos.
Até o Cebrap
O maior argumento é que
agora qualquer manifestação
teria efeitos eleitorais. Mas o silêncio não tem o mesmo efeito?
Interessante é que até mesmo o Cebrap, uma instituição
que, durante a ditadura, não
deixou de denunciar as violações dos direitos democráticos,
hoje simplesmente está calado.
E, naqueles tempos, o efeito
não era eleitoral, mas a porrada
dos gendarmes do governo.
Cabe refletir sobre o que está
atualmente acontecendo no
Brasil. Em particular a vida pública está perdendo qualquer
dimensão normativa. Vale o
pragmatismo mais estreito.
Importa ganhar as eleições,
fazer um governo popular, não
perturbar a onda de felicidade
que nos cobre mansamente.
Ainda que sejam adiadas decisões importantes que não
caiam no gosto do público, que
as próximas gerações paguem o
preço de nossas conveniências.
Resulta daí que cada vez mais
tendemos a nos tornar uma sociedade média, média, micha.
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI é professor emérito
da USP e pesquisador do Centro Brasileiro de
Análise e Planejamento. Escreve na seção "Autores", do Mais! .
jagiannotti@uol.com.br
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