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São Paulo, domingo, 11 de maio de 2003

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"Sentimentos Econômicos" faz a apologia do livre mercado e reduz a sociologia a uma psicologia

A ciência do bem

Gilberto Felisberto Vasconcellos
especial para a Folha

Para quem não está imerso de corpo e alma na coisificação típica da mercadoria e de seu fetichismo, sentimento e economia são esferas que não se juntam; por exemplo: o amor e a amizade estarão seriamente comprometidos quando entra em cena o interesse da pecúnia. É por isso que o esdrúxulo título deste livro, "Sentimentos Econômicos", não deixa de ser chocante; mas deixa de sê-lo ao nos inteirarmos de que o objeto de seu estudo é o Iluminismo europeu entre 1776 e 1820, tematizando basicamente os autores Adam Smith e Condorcet, os dois ícones da "competição civilizada". Leia-se: a tal da "competitividade" liberal que, nos últimos decênios, virou a palavra de ordem da ideologia dominante no mundo inteiro. A autora mostra que desde a época de Smith, o pai da economia política e do liberalismo econômico, a incerteza era a condição predominante da sociedade fundada no livre comércio, o qual acarreta a desigualdade e a injustiça sociais. A riqueza e a pobreza das nações. A divisão entre o mundo rico e o mundo pobre. É a tal liberdade de comércio para todos. Escreve a autora com a atenção dirigida à escassez, à carestia e à fome: "Os indivíduos se tornam ricos e usam seu dinheiro para comprar poder, para comprar outros indivíduos e para influenciar as maneiras como os outros indivíduos pensam". Isso é de um acacianismo e de uma banalidade a toda prova, e o mais estarrecedor é que a autora, toda bacana, nascida na cidade de Londres em 1948, diretora do Centro de História e Economia da Universidade de Cambridge, vislumbra a possibilidade de vingar ainda um capitalismo justo, moderno, democrático, prazeroso e humanizado.

Tábula rasa de Marx
Evidentemente ela não diz como isso acontecerá; de resto, o problema é que dona Emma Rothschild desdenha inteiramente a crítica empreendida por Karl Marx, durante 40 anos, à economia política.
Ao que parece, a doutora Emma Rothschild, liberal e neo-iluminista, não quer nem ouvir falar do autor do "Manifesto Comunista", publicado em 1848, tanto que, ao longo de seu copioso livro, apenas uma única vez cita Marx e, mesmo assim, de tabela e superficialmente.
Isso compromete o seu estudo, fazendo dele uma vulgar apologética da "economia de mercado", porque faz tábula rasa da denúncia pós-iluminista da economia política como a ciência do mal, isto é, a ciência dos meios de obter riqueza mediante a produção de miséria. É impossível substituir o capitalismo; mas reformá-lo, sim.
É curioso que estejamos diante de uma tardia psicologização das relações sociais. A vida econômica se confunde com uma questão de sentimento. Sabemos, no entanto, que o desenvolvimento da economia política, desde Adam Smith, tem por pressuposto a propriedade privada, ou melhor, a religião da propriedade privada. Mas nisso a autora não toca nem de leve, de modo que o "sentimento" vira uma espécie de retórica entediante de vendedor.
Rothschild poderia ter começado a sua interpretação do Iluminismo europeu, mas não o fez, com a formulação genial de Bayle: "Não é um grande mérito renunciar... ao luxo quando se é pobre".
Ao leitor interessado em conhecer o sentimento do luxo, do desejo, da inquietude, do prazer, mais ou menos durante o período a que se refere a autora inglesa, o melhor é ler e consultar do cultíssimo professor paulista, Luiz Roberto Monzani, que escreve depois de muito refletir, o estupendo livro "Desejo e Prazer na Idade Moderna", editado pela editora da Unicamp em 1995.


Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências sociais na Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "Glauber Pátria Rocha Livre" (ed. Senac), entre outros livros.


Sentimentos Econômicos
378 págs., R$ 45,00 de Emma Rothschild. Tradução de Zaida Maldonado. Ed. Record (r. Argentina, 171, CEP 20921-380, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/xx/21/ 2585-2000).


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