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São Paulo, domingo, 11 de maio de 2003

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Ponto de fuga

O massacre da serra elétrica

Divulgação
Cena de "O Massacre da Serra Elétrica", de Tobe Hooper


Jorge Coli
especial para a Folha

O título assusta qualquer um. Não se pode esperar que alguém razoável entre no cinema para ver um filme anunciado desse jeito tão forte. Parece dizer tudo, resumir a violência mais sanguinolenta. A publicidade também insiste na hemoglobina. Mas é uma pista falsa. As imagens não mostram muito sangue; quando ele surge, em pequenas doses, possui antes um sentido ritual ou cabalístico. Alguns críticos já assinalaram: os horrores insustentáveis, desesperantes, no filme, brotam de uma imagem que desvenda pouco. Ela pulsa no ritmo da montagem viva e precisa, distende-se na câmera ágil, que se precipita sem perder o controle.
Há também o som, o mítico som de "The Texas Chainsaw Massacre", o som aterrador, como escreveu um crítico do jornal "Le Monde", sem equivalente na história do cinema. Um olho feminino é captado bem de perto, como em "Um Cão Andaluz" [1929, de Luis Buñuel], porém de vários modos e ângulos, com montagem agitada e insistente. A célebre navalha de Buñuel se amplia, num paroxismo, transformando-se em serra elétrica ou, antes, no ruído da serra elétrica.
Ossos, caveiras humanas e bovinas compõem móbiles ou estranhas esculturas, nos cenários das casas em abandono. Evocam, ou prenunciam, certos caminhos da arte contemporânea, certas instalações que nos anos de 1970 ou 1980 pareciam ousadas em museus ou galerias. É um mundo em putrefação. Da tela como que emana um cheiro podre de matadouro.

Grandpa - Tobe Hooper começava sua carreira quando filmou "O Massacre da Serra Elétrica", com baixo orçamento. Foi em 1974, período rico de efervescências contestadoras. Seu autor lembrou em entrevista que o filme recria uma situação genérica ou mítica, semelhante à dos contos infantis, de João e Maria.
Instaura um simulacro de família, sinistro, ameaçador: os mais velhos se mumificaram e mesmo o cachorro doméstico é empalhado. Como se a relação entre mãe e filho, em "Psicose" [1960, de Hitchcock", tivesse se ampliado, e o vínculo binário se ramificasse.
O sentimento dos valores familiares em crise era forte naqueles tempos. Mas há outra coisa, no filme, e mais profunda: a recusa de um retorno à natureza, a algum paraíso primordial, como em oposição ao "flower power", que explodira alguns anos antes. "O Massacre da Serra Elétrica" assinala o fundo de violência originário que existe nas fronteiras da sociedade organizada. Ele se passa numa fímbria, onde o campo vai retomando seus direitos, onde não se está ligado à rede elétrica, onde não existe telefone e onde a gasolina falta. A salvação se revela com o retorno à estrada e seus enormes caminhões. O civilizado é bom, a natureza o corrompe, para inverter o dito de Rousseau.
Nesse sentido, ecoa no filme algo do "Deliverance", de John Boorman (1972). Há ligações, porém, entre os dois termos: na demência "natural" daquela família assassina desponta uma essência maligna sob a civilização. Como se essa mesma civilização repousasse em fundamentos selvagens, descontrolados e homicidas.
Escala - O preconceito contra a produção cinematográfica norte-americana, sobretudo aquela destinada ao grande público, não atinge a todos, felizmente. "O Massacre da Serra Elétrica" foi proibido em alguns países, entre eles a França e a Inglaterra. Decerto o título assustou os censores, mais que o próprio filme. Mas "The Texas Chainsaw Massacre" entrou para a história do cinema e ganhou lugar permanente no acervo do MoMa. Ele pode ser agora visto facilmente no Brasil: a revista "DVD News" lançou, no mês de abril, "O Massacre da Serra Elétrica", nas bancas, por R$ 17,90. A imagem do DVD é passável, e o som, excelente.

Obra - O resto da produção de Tobe Hooper costuma ser desdenhada. É injusto: sem contar "Poltergeist" (1982), entre outros, vários, "The Fun House" ("Pague para Entrar, Reze para Sair", 1981), tão desprezado por especialistas, encontra uma poesia assustadora, ao explorar o mundo um pouco à parte, e tão fascinante, dos parques de diversão.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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