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O professor aloprado
Autor do best-seller "O Nome da Rosa", Umberto Eco ataca o papa Bento 16 e Silvio Berlusconi
e alerta que o excesso de informações está matando a memória
Alguém que
é feliz a vida toda é um cretino; por isso, antes de ser feliz, prefiro
ser inquieto
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Jordi Socías
| O crítico, lingüista e romancista italiano Umberto Eco, que se aposentou da Universidade de Bolonha no ano passado |
JUAN CRUZ
Umberto Eco é um
homem quase feliz.
Um professor
que desfruta a
companhia de seus
alunos e que agora, aos 76 anos,
aposentado de suas múltiplas
ocupações acadêmicas [desde
2007, na Universidade de Bolonha], continua a trabalhar
"ainda mais do que antes", dando aulas doutorais, escrevendo
livros ("nem meia palavra sobre o livro que estou escrevendo agora!", exclamou, colocando o dedo sobre os lábios), participando de congressos, lendo
histórias em quadrinhos ("hoje
são intelectuais demais") e rindo como um garoto.
Quando o fotógrafo lhe pediu
que posasse com um "borsalino", o tipo de chapéu que tornou mundialmente conhecida
sua cidade natal, Alexandria,
Eco se divertiu como se tivesse
voltado ao quintal da casa de
sua família, ao lugar que está
cada vez mais próximo de sua
memória, como se a idade o fizesse recuperar os sabores perdidos da adolescência.
Vive numa casa belíssima,
repleta de livros e exemplares
antigos, muitos dos quais consegue numa livraria perto dali,
na via Rovello, em Milão.
Todas as tardes, quando está
na cidade e não viajando, esse
homem, que já se queixa de que
tiram o sal de sua comida e afugenta os doces como se fossem
uma tentação maldita, vai até
essa livraria e sebo para vasculhar catálogos e procedências,
antes de ir tomar seu aperitivo
num café onde é conhecido como "il professore".
Perto da livraria fica a barbearia de Antonio, que colocou
um retrato de Eco com seu borsalino na porta de vidro; assim,
Eco se vê retratado enquanto
Antonio lhe faz a barba. Barba
que já tem os fios brancos de
um homem que se diz velho,
mas que conserva o ritmo de
vida que o tornou legendário
entre os acadêmicos de todo o
mundo, por sua atividade e a
diversidade de gostos.
Umberto Eco continua sendo esse homem feliz ("quase feliz -quem se diz totalmente feliz é um cretino!") que canta, recita, conhece citações inteiras de memória, que se interessou antes dos outros pelas novas tecnologias, que as utilizou
em seus trabalhos -o mais recente é "Quase a Mesma Coisa", sobre tradução-, embora
mantenha o celular quase sempre desligado.
No entanto usa o e-mail obsessivamente, como se fosse
um prolongamento natural das
conversas.
Quando bate papo, ainda é
aquele homem tímido que teme cometer alguma gafe -"se
falo demais, é para preencher
os momentos de silêncio"-,
mas, quando surge um assunto
que o diverte, sua gargalhada
enche o cenário.
Escreveu "O Nome da Rosa",
sucesso mundial absoluto, e
abriu as portas da fama como
ensaísta com "Apocalípticos e
Integrados", mas continua a
acreditar que a comunicação só
é digerida se aquele que a emite
é capaz de colocar-se na altura
daquele que o ouve.
Por isso, tanto ao conversar
quanto em seus livros sempre
entremeia suas reflexões ou
apologias com piadas.
Eco continua a estudar;
quando o deixamos, ele ia para
sua casa, talvez para ocupar-se
de Carlos Magno ("Diga Carlos
Magno, assim vão pensar que
escreverei sobre ele em meu
próximo livro, e começará o
boca-a-boca"). Sempre divertido e sempre quase feliz.
FOLHA - Há uma cena em sua vida,
quando toca trompete para os "partigiani" [movimento antifascista],
aos 13 anos, na praça de Alexandria,
que transmite felicidade... O sr. sempre parece estar tão feliz!
UMBERTO ECO - Aqui há duas coisas: aquele garoto e a felicidade.
São diferentes, não podem
coincidir. Não acredito na felicidade -estou lhe dizendo a
verdade. Acredito apenas na inquietude. Ou seja, nunca estou
feliz por completo -sempre
preciso fazer outra coisa.
Mas admito que na vida existem felicidades que duram dez
segundos ou meia hora, como
quando nasceu meu primeiro
filho -naquele instante, eu estava feliz. Mas são momentos
muito breves. Alguém que é feliz a vida toda é um cretino. Por
isso, antes de ser feliz, prefiro
ser inquieto.
Aquele menino é o que irá
aparecer em "O Pêndulo de
Foucault", e aquele foi um momento feliz, sem dúvida, mas
não estou certo se o foi realmente naquele momento ou no
momento em que o estava narrando. Existem momentos de
felicidade quando você consegue expressar alguma coisa que
o deixa contente.
Além disso, enquanto contava sobre aquele menino, eu estava feliz porque -sei bem que
é uma afirmação muito reacionária- acredito que a vida serve apenas para recordar nossa
própria infância.
PERGUNTA - Aí entra a literatura.
ECO - É o que dizem. Cada momento em que consigo me recordar bem de um instante de
minha infância é um momento
de felicidade, mas isso não quer
dizer que os momentos de minha infância tenham sido momentos de felicidade.
A infância e a adolescência
são períodos muito tristes. As
crianças são seres muito infelizes. Talvez eu, enquanto tocava
trompete, com medo de que
fosse a última vez em que tocaria aquele instrumento, tenha
sido um menino infeliz.
Sinto-me feliz agora, ao lembrar disso, e talvez seja essa a
razão pela qual escrevo, para
encontrar esses momentos
muito breves de felicidade que
consistem em relembrar momentos da própria infância.
Sim, é por isso que escrevo.
PERGUNTA - E é para isso que se envelhece...
ECO - Algo de muito bonito que
ocorre ao envelhecermos é que
nos recordamos de uma multidão de coisas da infância que tinham sido esquecidas.
Noutro dia me veio à mente o
nome de meu dentista de quando eu tinha oito ou nove anos.
Não apenas me lembrei do dentista, mas também do técnico
que o ajudava. Eram o doutor
Correggia e o senhor Romagnoli. Não sei, mas estava contentíssimo em voltar a pensar em
meu dentista, de quem tinha
me esquecido completamente.
Por isso, vou ao encontro de
minha velhice com muito otimismo, porque, quanto mais
envelheço, mais recordações
tenho de minha infância.
Foi minha avó materna
que me iniciou na literatura; era uma mulher sem cultura,
mas tinha paixão pela leitura
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PERGUNTA - E a cada dia o sr. chega
mais perto de Alexandria, daquela
sua família?
ECO - Meu pai era o mais velho
de 13 irmãos. Era uma família
enorme. Houve um primo que
morreu aos 20 anos e que não
conheci. Faça o cálculo: se cada
irmão teve dois filhos, eram 26
primos, de modo que era difícil
ter uma relação com todos.
Minha relação mais estreita
foi com minha avó materna,
que foi quem me iniciou na literatura. Era uma mulher sem
cultura nenhuma -acho que
fez apenas os cinco anos da escola primária-, mas tinha paixão pela leitura.
Ela era cadastrada numa biblioteca, de modo que trazia
um montão de livros para casa.
Lia de forma desordenada. Um
dia podia ler Balzac e, logo depois, um romance de quatro
vinténs, e gostava dos dois.
E assim fez comigo: ela me
dava, aos 12 anos de idade, um
romance de Balzac e uma história de amor de qualidade ínfima. Mas me transmitiu o gosto
pela leitura.
PERGUNTA - Além de sua avó,
quem foram seus outros mestres?
ECO - O professor da escola
primária aparece em meu romance "A Misteriosa Chama da
Rainha Loana". Era um fascista
que batia em seus alunos mais
pobres. E, embora sempre tenha se comportado bem comigo, não era uma boa pessoa.
Em contrapartida, tive uma
educadora fabulosa, embora
por apenas um ano.
Era a senhorita Bellini, que
ainda vive. Tem 91 anos, e, cada
vez que sai um livro meu, envio
um exemplar a ela. Era uma
grande educadora, nos estimulava a escrever, a contar, a sermos espontâneos, e foi uma das
pessoas que mais exerceram
influência sobre minha vida.
PERGUNTA - Raramente se fala do
sr. como professor. O que aprendeu
para ensinar?
ECO - Antes de mais nada, continuo a aprender. O primeiro
curso que dei como professor
foi sobre a poética de James
Joyce, que aparece em "Obra
Aberta". Eu conhecia o argumento, mas, ao começar a dar
aula, me dei conta de que não
sabia nada sobre o tema.
Aprendi e continuo aprendendo. Quando se escreve um
livro, pode-se dar a impressão
de saber muito, mas em sala de
aula é diferente. O que fiz desde
aquela primeira experiência foi
falar a partir dos livros que iria
escrever, não dos que já havia
escrito. Quero dizer que minha
relação com os alunos sempre
foi uma relação de aprendizagem, porque, ensinando, eu
também aprendia.
PERGUNTA - Uma relação de ida e
volta.
ECO - Uma relação erótica,
porque a relação de um professor com um aluno é como a relação de um ator com seu público: quando você aparece em cena, é como se o estivesse fazendo pela primeira vez, e você tem
a sensação de que, se não tiver
conquistado o público nos primeiros cinco minutos, o terá
perdido. É isso o que eu chamo
de uma relação erótica, no sentido platônico do termo.
Além disso, há uma relação
canibal: você come as carnes jovens deles, e eles comem sua
experiência.
Há pessoas infelizes que passam os primeiros anos de sua
vida com pessoas mais jovens,
para poder dominá-las, e,
quando envelhecem, estão com
pessoas mais velhas.
Comigo aconteceu o contrário: quando eu era jovem, estava com pessoas mais velhas que
eu, para aprender, e agora, tendo alunos, estou com jovens, o
que é uma maneira de manter-se jovem. É uma relação de canibalismo; comemos um ao outro. Por isso não deixei de ter
relação com a universidade,
apesar de ter me aposentado.
PERGUNTA - E o sr. mordeu quem?
ECO - A pessoa que orientou
minha tese, Luigi Paris, também Norberto Bobbio... Tenho
uma boa lembrança de meus
professores. Meu professor de
filosofia no instituto era um daqueles que podiam interromper a aula para fazer você ouvir
Wagner ou, se você perguntava
sobre Freud, deixava de falar de
Platão e lhe falava de Freud.
Era realmente um grande
professor. Tudo isso está em
meus romances, onde sempre
há uma relação entre um jovem
e um mestre mais velho.
PERGUNTA - Tantos alunos... Quem
sabe, ao recordá-los, o sr. encontre
uma história da evolução da juventude no último meio século.
ECO - Não se pode dar uma resposta porque o diálogo com os
estudantes muda ao longo dos
anos. A diferença ideal de idade
entre professor e alunos é de 15
anos. Você tem trinta e poucos
anos, e o aluno, 20.
Foi precisamente nesse período que tive uma relação mais
intensa com meus alunos. Porque, se os alunos são mais jovens que isso, não existe relação, e, se a diferença for maior,
já não poderemos ser amigos.
Com os alunos dos anos
1960, saíamos para jantar, dançar. Com os de agora, isso não
seria possível. Sentiriam vergonha de sair com você. Em 1968
foi interessante: eu não podia
ser como eles, mas não me viam
como inimigo. Por isso, havia
uma relação às vezes polêmica,
às vezes amistosa e contínua.
PERGUNTA - Como está a Itália?
ECO - Está vivendo um dos piores momentos de sua história,
com uma classe política velha e
que não se renova. Houve um
equilíbrio estranho entre a Democracia Cristã e os partidos
de esquerda, que durou 50
anos. Agora ele se quebrou.
Cinqüenta por cento dos italianos votam em Silvio Berlusconi [líder da coalizão que venceu as eleições parlamentares do mês passado], o que é indicativo de uma profunda imaturidade política. É um momento
extremamente triste, em que
os elementos de esperança e
entusiasmo são muito poucos.
Cada vez mais vem à tona a
maldição eterna dos italianos.
PERGUNTA - Qual é essa maldição?
ECO - Uma vez eu estava num
táxi em Nova York, e o chofer,
que era paquistanês ou indiano,
me perguntou de onde eu era.
Respondi que era da Itália, e ele
quis saber onde ficava esse país.
Eu me dei conta de que ele tinha idéias muito vagas, como se
eu estivesse falando de Suriname a um italiano, e continuou a
perguntar: "Que idioma o sr. fala?" "O italiano", eu disse, e ele
me perguntou: "E qual é seu
inimigo?".
Perguntei o que queria dizer,
e ele me respondeu que cada
país tem um inimigo contra o
qual luta há séculos. Respondi
que não tínhamos. E ele me
olhou com cara feia, porque um
povo sem inimigo é pouco viril.
Mas, então, refleti: nosso inimigo é interno. Ao longo de toda nossa história, nos massacramos uns aos outros, e é também essa a nossa maneira de
entender a política.
Nossa fragmentação é em
200 mil partidos diferentes, o
governo de Romano Prodi [que,
sem o apoio do Senado, entregou o cargo de primeiro-ministro em janeiro] caiu pela mão
de seus próprios aliados, não
pela ação da oposição. Nunca a
Itália caiu tanto em sua inimizade interna quanto hoje.
PERGUNTA - E de onde vem isso?
ECO - A Itália se tornou um Estado unitário há 150 anos -antes, não o era. Já a Espanha o é
pelo menos desde 1300 -desde
El Cid Campeador!-, e França
e Inglaterra têm sido unitárias.
A Itália, antes da chegada dos
romanos, era uma pluralidade
de tribos que falavam línguas
diferentes. A Espanha tem os
bascos, os catalães e os galegos,
mas nós éramos 400. A cada
cinco quilômetros havia uma
diferença como a que existe entre a Catalunha e a Galícia.
O Império Romano unificou,
mas não o suficiente. Além disso, se não tivesse existido a
igreja, talvez as cidades italianos tivessem encontrado uma
forma de Estado unitário pela
qual se regerem.
O único Estado que restou foi
a igreja, e o resto foi uma fragmentação de cidades, o que fez
com que a Itália não existisse,
no sentido de um Estado. Por
isso existe a corrupção: porque
as pessoas não pagam impostos, porque não existe o sentido
de Estado.
PERGUNTA - E por que Berlusconi
ganhou?
ECO - Porque ele diz que não
será preciso pagar impostos!
Ele fomenta a falta de sentido
de Estado, porque ele próprio
não o possui.
PERGUNTA - O sr. falou de um taxista. Menciono outro, o que me trouxe do aeroporto. Ele disse: "Como se pode eleger para presidente um homem que tem tantos processos pendentes contra ele?".
ECO - Ele dá por efeito aquilo
que é a causa. Berlusconi conseguiu instaurar um tipo de poder fundamentado na desconfiança da magistratura e da Justiça, razão pela qual pode governar, apesar de ter processos
pendentes.
Berlusconi não é o efeito nesse caso, e sim a causa. Criou algumas leis precisamente para
permitir que pessoas que tenham pendências com a Justiça possam chegar ao Parlamento e ataca a magistratura continuamente. Berlusconi conseguiu chegar ao governo atacando as forças da ordem, estimulando os instintos mais baixos
do italiano médio.
A relação de
um professor com os alunos é canibal: você come as carnes jovens deles, e eles comem sua experiência
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PERGUNTA - Quer dizer que o futuro italiano...
ECO - Vai depender de que
morram algumas dezenas de
pessoas que já são muito velhas. É um dado biológico. E,
então, teria que surgir uma nova classe política. Somos o país
cuja classe política é a mais velha do mundo.
PERGUNTA - E Veltroni [Walter Veltroni, 52, líder de centro-esquerda]?
ECO - Sim, Veltroni é jovem.
Tem 50 anos, mas os demais
são muito velhos. Berlusconi
tem mais de 70 anos. Na Itália,
mesmo que alguém perca as
eleições, volta a se candidatar.
É como se Al Gore voltasse a
ser candidato [à Presidência
dos EUA] ou se Lionel Jospin
se candidatasse novamente à
Presidência da França. Na Itália, contudo, sempre volta
aquele de antes. É o sintoma de
uma classe política que não
quer renunciar ao poder.
Talvez isso contribua para
que as pessoas sempre critiquem a política, para que os jovens a vejam como algo que
lhes é alheio.
Os jovens de todas as épocas
e de todos os países sempre se
entusiasmaram com as grandes
idéias de transformação, eram
revolucionários, mas se mantinham dentro do famoso esquema "todos nascemos incendiários e morremos bombeiros".
Agora, com a globalização e o
fim das ideologias, já não se
apresentam tantas possibilidades de transformação, pois esta
é planetária, e é preciso esperar
as grandes tragédias ecológicas,
a morte da Terra.
O grande erro das Brigadas
Vermelhas [grupo terrorista de
extrema esquerda, que assassinou Aldo Moro, então ex-premiê italiano] foi terem a idéia
justa -embora muitos pensassem que fosse delirante- de
atacar as multinacionais de todo o mundo.
Outra idéia equivocada foi a
de que era preciso fazer terrorismo para criar uma revolução
na Itália. Se existe o governo
das multinacionais, você não
vai mudar isso fazendo a revolução na Itália. O projeto comunista estava condenado ao fracasso. Já havia globalização naquela época, embora não tão intensa quanto hoje.
Agora já não existe possibilidade de transformação planejável, a não ser que ocorra como
na época da queda do Império
Romano, com o nascimento
das ordens monásticas: você se
encerrava na montanha, num
convento, e tentava salvar o
pouco de espiritualidade e de
conhecimento enquanto o
mundo desmoronava.
Hoje, pode haver jovens que
vão ao deserto colocar em prática uma vida ecológica. É o máximo que se pode fazer: não
mudar o mundo, mas retirar-se
do mundo. Por isso ocorre o desinteresse pela política.
PERGUNTA - O terrorismo acabou
na Itália, na Alemanha e na Irlanda,
mas permanece na Espanha, além
de surgirem outros. Qual é sua opinião sobre os terrorismos que surgiram nos anos 1990?
ECO - O desejo de "revolução",
entre aspas, permanece sempre. Inclusive ali onde não se
pode fazê-la, tenta-se...
Em países onde existem grupos étnicos e há território suficiente para que se produzam
insurreições. Na Itália, esses
enfrentamentos se converteram em embates futebolísticos.
E em outros territórios acontecem violência, fanatismo, superstição. Quando isso é levado
ao terreno da política, já se sabe
como vai terminar.
PERGUNTA - O terrorismo da Al
Qaeda é a celebração do mal?
ECO - É preciso diferenciar os
terrorismos. O fato de que se
utilizem métodos semelhantes
não os torna iguais. Os terrorismos internos não empregam
formas suicidas.
O terrorismo da Al Qaeda é
um fenômeno bélico. Trata-se
de um grupo fundamentalista
que se sente em guerra contra o
mundo ocidental e que, por não
poder usar os instrumentos da
guerra tradicional -não haveria exércitos suficientes-, emprega o terrorismo suicida.
Isso não quer dizer que haja
um enfrentamento entre o
mundo ocidental e o mundo islâmico, mas existe sem dúvida
uma parte do mundo islâmico
que se sente em situação de inferioridade e está em guerra.
A memória é nossa identidade, nossa alma; se você perde a memória hoje, já não existe alma; você é um animal
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PERGUNTA - O 11 de Setembro
mudou o estado de ânimo do mundo. Somos menos felizes hoje.
ECO - O 11 de Setembro criou
um estado de medo, mas antes
já houve atentados, entraram
e saíram assassinos, tivemos
guerras civis.
No caso dos EUA, porém, foi
a primeira vez que o país sentiu um ataque assim em sua
própria carne. Os americanos
não digeriram o que aconteceu e por isso vêm tendo reações irracionais, como a Guerra do Iraque, que gerou mais terrorismo do que havia.
É exatamente a reação de
alguém que não estava acostumado à guerra em seu próprio
território.
PERGUNTA - Existe alguma saída
para esse mal-estar universal?
ECO - No momento, não. E, se
eu tivesse a receita, a venderia
ao presidente dos EUA por alguns bilhões de dólares!
PERGUNTA - Com certeza. E quem
será ele?
ECO - E que sei eu? Os escritores não somos Nostradamus.
PERGUNTA - O que é certo é que
alguns anos atrás o sr. disse que viveríamos de modo rapidíssimo, e
agora vivemos em velocidades supersônicas.
ECO - E tudo o que existe agora será obsoleto dentro de
pouco tempo. Até o e-mail será obsoleto, porque tudo será
feito com o celular.
Talvez as novas gerações se
acostumem a isso, mas existe
uma velocidade do processo
que é de tal calibre que a psicologia humana talvez não
consiga adaptar-se. Estamos
em velocidade tão grande que
não existe nenhuma bibliografia científica americana
que cite livros de mais de cinco anos atrás.
O que foi escrito antes já
não conta, e isso é uma perda
também quanto à relação com
o passado.
PERGUNTA - A fé cega na internet,
por outro lado, cria monstros.
ECO - Sim, parece que tudo é
certo, que você dispõe de toda
a informação, mas não sabe
qual é confiável e qual é equivocada. Essa velocidade vai
provocar a perda de memória.
E isso já acontece com as gerações jovens, que já não recordam nem quem foram
Franco ou Mussolini! A abundância de informações sobre o
presente não lhe permite refletir sobre o passado.
Quando eu era criança, chegavam à livraria talvez três livros novos por mês; hoje chegam mil. E você já não sabe que livro importante foi publicado há seis meses. Isso também é uma perda de memória.
A abundância de informações sobre o presente é uma
perda, e não um ganho.
PERGUNTA - A memória é o esquecimento, como diria [o escritor
uruguaio] Mario Benedetti.
ECO - É a história de "Funes, o
Memorioso", de Borges: aquele que tem toda a memória é
um estúpido.
PERGUNTA - Tanta informação faz
com que os jornais pareçam irrelevantes.
ECO - Esse é um de nossos
problemas contemporâneos.
A abundância de informação
irrelevante, a dificuldade em
selecioná-la e a perda de memória do passado -e não digo
nem sequer da memória histórica. A memória é nossa
identidade, nossa alma. Se você perde a memória hoje, já
não existe alma; você é um
animal.
Se você bate a cabeça em algum lugar e perde a memória,
converte-se num vegetal. Se a
memória é a alma, diminuir
muito a memória é diminuir
muito a alma.
PERGUNTA - Qual seria hoje o papel da informação?
ECO - Creio que perdemos
muito tempo nos formulando
essas perguntas, enquanto as
gerações mais jovens simplesmente deixaram de ler jornais
e se comunicam por meio de
mensagens de texto.
Eu não posso me desligar
dos jornais. Para mim, sua leitura é a oração matinal do homem moderno. Não posso tomar o café da manhã se não tiver pelo menos dois jornais
para ler.
Mas talvez sejamos os resquícios de uma civilização,
porque os jornais têm muitas
páginas, mas não muita informação. Sobre o mesmo tema
há quatro artigos que talvez
digam a mesma coisa... Existe
abundância de informação,
mas também abundância da
mesma informação.
Não sei se você se lembra de
minha teoria sobre o "Fiji
Journal". Eu estava em Fiji
coletando informações sobre
os corais para meu livro "A
Ilha do Dia Anterior" [ed. Record], e em meu hotel chegava
todas as manhãs o "Fiji Journal", que tinha oito páginas
-seis de anúncios, uma de notícias locais e outra de notícias
internacionais.
No mês que passei ali, a primeira Guerra do Golfo estava
prestes a estourar, e, na Itália,
o primeiro governo de Berlusconi tinha caído. Inteirei-me
de tudo porque em uma única
página de notícias internacionais, em três ou quatro linhas,
davam-me as notícias mais
importantes.
PERGUNTA - Como a internet.
ECO - Vamos à internet para
tomar conhecimento das notícias mais importantes. A informação dos jornais será cada vez mais irrelevante, mais
diversão que informação. Já
não nos dizem o que decidiu o
governo francês, mas nos dão
quatro páginas de fofocas sobre Carla Bruni e Sarkozy
[atual presidente da França].
Os jornais se parecem cada
vez mais com as revistas que
havia para ler na barbearia ou
na sala de espera do dentista.
PERGUNTA - Voltemos ao princípio, professor. O que o faz feliz?
ECO - Não sei. Eu já disse que
não acredito nisso, mas, enfim, fico feliz quando encontro um livro que estava procurando havia muito tempo.
Quando o compro e o tenho,
olho para ele e me sinto feliz.
Mas a sensação acaba ali.
Enquanto a infelicidade é o
que me provoca o fato de não
ter este ou aquele livro. A verdadeira felicidade é a inquietude. É sair à caça, não matar o
pássaro.
PERGUNTA - É raro: um espanhol e
um italiano, uma hora e meia de
conversa, e a palavra "igreja" só foi
pronunciada três vezes.
ECO - Está ocorrendo um retrocesso ao século 19, quando
havia um confronto entre o
Estado liberal e a igreja. De
quem é a responsabilidade por
isso? Não é por acaso que esse
confronto tenha se acirrado
com a chegada de Ratzinger [o
papa Bento 16]; portanto, talvez se deva à política clerical
do novo pontífice.
Sua luta contra a cultura
moderna, o chamado relativismo, voltou aos grandes temas da igreja do século 19, que
falava contra a revolução e
contra a ciência moderna.
Hoje, emergem muitas posições anticlericais, e muitas
pessoas se declaram atéias.
Ninguém estava pensando
nisso antes. Subiu ao trono
um papa que pensa como um
papa do século 19.
PERGUNTA - O sr. escreveu que
Napoleão viveu apenas a Revolução Francesa...
ECO - ... E eu vivi a Segunda
Guerra Mundial, a queda do
fascismo, a guerra "partigiana", a bomba em Hiroshima, a
queda da União Soviética e a
Guerra Civil Espanhola. Há
uma maldição chinesa que diz:
"Espero que vivas numa época
interessante". Há gerações jovens que viveram apenas épocas tranqüilas, como a da
Guerra Fria.
O que eu disse sobre Napoleão com certeza está errado,
porque ele não apenas viveu a
Revolução Francesa como
também a história de Napoleão. Rarará!
A íntegra desta entrevista saiu no "El País".
Tradução de Clara Allain .
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