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Ponto de fuga
A idade das trevas
Marketing e cultura são excludentes; o marketing esvazia qualquer manifestação artística ou cultural a ele submetida: faz com que ela perca sua natureza, transforma-a em pretexto
JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Os jornais trouxeram a
notícia recente da prisão de Edemar Cid Ferreira. Fato triste, como foi triste o apagão do Masp.
Há casos célebres de grandes
coleções formadas por falcatruas; é conhecido o do marquês Campana, milionário italiano que, no século 19, foi diretor da Casa de Penhor, em Roma. A paixão que nutria pela
arte levou-o a esgotar sua fortuna pessoal e meter a mão nos
cofres públicos. Teve os bens
confiscados. As numerosas
obras que juntou terminaram
vendidas ao governo francês. O
Louvre ficou com boa parte,
outras foram enviadas a cidades de Província. Sobrou ainda
um conjunto fabuloso apresentado hoje num museu inaugurado em 1976: o Petit Palais de
Avignon. Também no Brasil,
Assis Chateubriand reuniu o
atual acervo do Masp com financiamentos nada ortodoxos.
Fantasmas
Apesar das fraudes, em modos diferentes, eram as obras
que contavam para Campana e
Chateaubriand. O Masp nasceu
como uma coleção, o Masp não
é um prédio. A Brazil Connects,
ao contrário, inventada por
Edemar Cid Ferreira, nem
acervo nem prédio, era uma
empresa de marketing cultural.
Aqui está a diferença: marketing e cultura são excludentes;
o marketing esvazia qualquer
manifestação artística ou cultural a ele submetida. Faz com
que perca sua natureza, transforma-a em pretexto. Nesses
casos, a obra, mesmo de corpo
presente, some. Visível, mas invisível, aquilo que contém de
essencial e profundo fica escamoteado.
Nas exposições "Brasil 500
Anos", a arte cedia o passo a encenações: num mar de flores
artificiais amarelas, esculturas
verdadeiras ou falsas podiam se
confundir facilmente; se fossem reproduções de gesso ou
anões de jardim, teriam o mesmo efeito.
Quando a Brazil Connects
organizou em Nova York outra
mostra, a "Brazil Body and
Soul", era impressionante ver
um enorme altar barroco pendurado no vazio, sob violenta
iluminação. Tudo o que faz
desse altar uma obra de arte se
encontrava extinto. A tal ponto
que ele, autêntico, parecia feito
de plástico nos seus brilhos.
Interruptor
Nesses casos passa-se da
obra, da arte, para uma mise-en-scène da cultura, para uma
exibição social que reduz tudo
ao simulacro. Assim, nas telas
ou esculturas de sua propriedade, o colecionador encontra
uma garantia de sua alta importância. Como o ricaço de Roald
Dahl, dono de fabulosa adega e
incapaz de distinguir um vinho
do outro, do melhor ao pior.
Coincidências são significativas: Julio Neves, o presidente
da diretoria do Masp, é o arquiteto da Daslu, lugar onde a elegância genuína vem substituída
pelo preço, termômetro objetivo de superioridade humana,
atestado de vaidade que repousa sobre o nada. A luz cortada
no Masp, o patético "gato" fazem parte de uma pequena crise muito comentada.
São, na verdade, sintomas de
uma doença grave e crônica, de
um antigo desarranjo que flutua entre displicência, incompetência, indiferença. Revelam
a miséria, menos financeira
que mental, presidindo o destino dos Rafael, Velásquez, Van
Gogh, Cézanne, Renoir, Monet,
Picasso, entre tantos. Obras
que seriam a menina dos olhos
de qualquer célebre museu do
planeta. O que permanece como atividade inteligente no
Masp emana de uma equipe de
funcionários, apaixonada, devotada pelo acervo.
JORGE COLI é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br
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