São Paulo, domingo, 11 de junho de 2006

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Ponto de fuga

A idade das trevas

Marketing e cultura são excludentes; o marketing esvazia qualquer manifestação artística ou cultural a ele submetida: faz com que ela perca sua natureza, transforma-a em pretexto

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Os jornais trouxeram a notícia recente da prisão de Edemar Cid Ferreira. Fato triste, como foi triste o apagão do Masp. Há casos célebres de grandes coleções formadas por falcatruas; é conhecido o do marquês Campana, milionário italiano que, no século 19, foi diretor da Casa de Penhor, em Roma. A paixão que nutria pela arte levou-o a esgotar sua fortuna pessoal e meter a mão nos cofres públicos. Teve os bens confiscados. As numerosas obras que juntou terminaram vendidas ao governo francês. O Louvre ficou com boa parte, outras foram enviadas a cidades de Província. Sobrou ainda um conjunto fabuloso apresentado hoje num museu inaugurado em 1976: o Petit Palais de Avignon. Também no Brasil, Assis Chateubriand reuniu o atual acervo do Masp com financiamentos nada ortodoxos.

Fantasmas
Apesar das fraudes, em modos diferentes, eram as obras que contavam para Campana e Chateaubriand. O Masp nasceu como uma coleção, o Masp não é um prédio. A Brazil Connects, ao contrário, inventada por Edemar Cid Ferreira, nem acervo nem prédio, era uma empresa de marketing cultural. Aqui está a diferença: marketing e cultura são excludentes; o marketing esvazia qualquer manifestação artística ou cultural a ele submetida. Faz com que perca sua natureza, transforma-a em pretexto. Nesses casos, a obra, mesmo de corpo presente, some. Visível, mas invisível, aquilo que contém de essencial e profundo fica escamoteado. Nas exposições "Brasil 500 Anos", a arte cedia o passo a encenações: num mar de flores artificiais amarelas, esculturas verdadeiras ou falsas podiam se confundir facilmente; se fossem reproduções de gesso ou anões de jardim, teriam o mesmo efeito. Quando a Brazil Connects organizou em Nova York outra mostra, a "Brazil Body and Soul", era impressionante ver um enorme altar barroco pendurado no vazio, sob violenta iluminação. Tudo o que faz desse altar uma obra de arte se encontrava extinto. A tal ponto que ele, autêntico, parecia feito de plástico nos seus brilhos.

Interruptor
Nesses casos passa-se da obra, da arte, para uma mise-en-scène da cultura, para uma exibição social que reduz tudo ao simulacro. Assim, nas telas ou esculturas de sua propriedade, o colecionador encontra uma garantia de sua alta importância. Como o ricaço de Roald Dahl, dono de fabulosa adega e incapaz de distinguir um vinho do outro, do melhor ao pior. Coincidências são significativas: Julio Neves, o presidente da diretoria do Masp, é o arquiteto da Daslu, lugar onde a elegância genuína vem substituída pelo preço, termômetro objetivo de superioridade humana, atestado de vaidade que repousa sobre o nada. A luz cortada no Masp, o patético "gato" fazem parte de uma pequena crise muito comentada. São, na verdade, sintomas de uma doença grave e crônica, de um antigo desarranjo que flutua entre displicência, incompetência, indiferença. Revelam a miséria, menos financeira que mental, presidindo o destino dos Rafael, Velásquez, Van Gogh, Cézanne, Renoir, Monet, Picasso, entre tantos. Obras que seriam a menina dos olhos de qualquer célebre museu do planeta. O que permanece como atividade inteligente no Masp emana de uma equipe de funcionários, apaixonada, devotada pelo acervo.


JORGE COLI é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br


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