São Paulo, domingo, 11 de julho de 2004

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VÍTIMA ATÉ DE BOMBARDEIO AÉREO, SÃO PAULO FOI PALCO DE TORTURAS E EXECUÇÕES SUMÁRIAS DURANTE OS 23 DIAS DA REVOLUÇÃO, QUE DEIXOU PELO MENOS 500 MORTOS; PRESERVAÇÃO DE DEPOIMENTOS E DOCUMENTOS SOBRE O EPISÓDIO AINDA É PRECÁRIA

1924 o silêncio

José de Souza Martins

Na madrugada de 5 de julho de 1924, tropas rebeladas do Exército se deslocaram dos quartéis de Quitaúna, em Osasco, e de Santana em direção ao quartel da Força Pública no bairro da Luz, que foi ocupado. Ali os rebeldes instalaram o Estado-Maior das forças sob comando do general Isidoro Dias Lopes, que incluíam oficiais e soldados da Força Pública de São Paulo. Começava naquela manhã de um dia de trabalho a Revolução de 1924, sangrento episódio das revoltas tenentistas que culminariam com a Revolução de Outubro de 1930, chefiada por Getúlio Vargas.
Ato contínuo, a estação da Luz foi tomada. O diretor inglês foi colocado sob ordens e notificado de que nenhuma composição ferroviária se moveria sem motivo e autorização militares. Pediu licença, retirou-se por instantes, recolheu-se a um cômodo secreto da estação construída em 1900 e dali, por telefone, chamou o chefe da estação de Santos, que já se encontrava sob controle das tropas federais. Comunicou-lhe que, quando desligasse o telefone, já não seria o diretor da ferrovia, pois estava preso. Mesmo que voltasse a lhe telefonar, não deveria ser obedecido. Dali em diante o chefe da estação de Santos seria o diretor.
Cabia-lhe comunicar o fato à empresa em Londres, pelo telégrafo submarino. A ferrovia já não podia operar normalmente. Em poucas horas, a São Paulo Railway apresentava ao governo brasileiro um pedido de compensação pelos danos e pela cessação de lucros. Quando construíram a estação, os ingleses já previram que um dia estes nativos ainda iam aprontar alguma coisa que não coincidia com os interesses deles. É fascinante que no pacote de implantação de uma empresa estrangeira já viesse embutido o contraveneno para as agitações sociais e políticas.
Em poucas horas, tropas federais deslocadas de navio para o porto de Santos tomaram a estrada de ferro, a antiga São Paulo Railway, e conseguiram chegar até a estação de São Caetano, pequena localidade de população predominantemente de origem italiana. De noite, um primeiro entrevero entre rebeldes e legalistas ocorreu na estação do Ipiranga. Combates ocorriam em vários pontos da cidade entre rebeldes e forças leais ao governo federal. O próprio Palácio dos Campos Elíseos, sede do governo do Estado, cujo presidente era Carlos de Campos, foi objeto de disputa armada. Era um alvo político e simbólico.
Durante 23 dias de um inverno particularmente duro, a cidade de São Paulo e o seu subúrbio sofreriam a tragédia da guerra civil. De uma população de uns 700 mil habitantes, 200 mil fugiram para o interior de São Paulo, lotando os escassos trens disponíveis. Os que não puderam escapar, ou porque não tinham meios ou porque não tinham parentes no interior ou porque não tiveram tempo, tentaram alcançar o subúrbio controlado pelas tropas legalistas do Exército e da Marinha. A Cruz Vermelha organizou um grande campo de refugiados na zona leste, não longe da estação de Santo André, abrigando um enorme número de famílias em barracas de lona, oferecendo-lhes a precária alimentação disponível. Numerosos moradores da cidade, impossibilitados de alcançar a estação da Luz, tentavam escapar para as saídas da cidade. A prefeitura chegou a distribuir quase 35 mil refeições diárias para os que ficaram. Em pouco tempo, a população em pânico e faminta começou a saquear armazéns de empresas. Mais de cem empresas foram saqueadas. Cinqüenta anos depois da revolução, o balanço anual do grupo Matarazzo ainda registrava um haver pelos danos sofridos, especialmente nos saques de farinha de trigo no moinho do Brás. O presidente de São Paulo, que seria hoje o governador, Carlos de Campos, com os secretários de Estado, aos quatro dias da revolta abandonou o Palácio dos Campos Elíseos e fugiu da cidade. Foi para a estação de Guaiaúna, nos lados da Penha, na Estrada de Ferro Central do Brasil. Instalou o governo num carro ferroviário na perspectiva de ter que se refugiar na capital federal. Dali, as tropas federais do general Eduardo Sócrates bombardeavam o centro da cidade e especialmente os bairros operários, como o Brás, a Mooca, o Belenzinho, o Cambuci, o Ipiranga. Bombas caíram em edifícios governamentais do Pátio do Colégio. Aquarteladas em São Caetano, as tropas do general Carlos Arlindo lutavam no Ipiranga, Cambuci e Vila Mariana. Foram muitos os mortos, não só do Exército, da Marinha e da Força Pública, mas também da população civil. No balanço final da situação da cidade após a revolta, o prefeito Firminiano Pinto menciona 500 mortos nos bombardeios, que ocorriam sobretudo à noite. Mas Everardo Dias, o cronista da história operária de São Paulo, exagera e menciona também centenas de trabalhadores executados pelas forças militares em confronto, condenados em decisão sumária. Estava em vigência a lei marcial. Suspeita era toda a população civil. Operários do que é hoje o ABC percorriam a pé, à noite, os trilhos da São Paulo Railway na desesperada tentativa de chegar a seus locais de trabalho na capital, atravessando a linha de frente no Ipiranga. Esforço inútil, porque as fábricas já não funcionavam. Não raro eram surpreendidos por uma das forças militares em confronto, presos, muitas vezes torturados para confessar que estavam espionando e a serviço do inimigo. Encontrei no arquivo de uma congregação católica, em Roma, documento do vigário de São Caetano, localidade que ficara em território legalista, narrando sua visita ao general Eduardo Sócrates para apelar pela vida de operários, seus paroquianos, que iam ser executados pelo fútil motivo de tentar sobreviver. Fala-se, também, nos militares capturados pelas forças legalistas e fuzilados. Em 1974, fiz uma pesquisa nos bairros do Brás, da Mooca e do Belenzinho com moradores que, já adolescentes ou adultos, viveram e sofreram diretamente as conseqüências da revolução. São detalhadas as narrativas dolorosas dos sofrimentos e da tragédia. No Brás, casas explodiam com famílias inteiras lá dentro, destroçadas pelas bombas que caíam. Naquela época, muitas casas dos bairros operários tinham porões altos, que foram utilizados como refúgio pelos moradores e vizinhos. O refúgio não bastava. Era preciso conseguir comida e água, expor-se ao risco de um balaço dos atiradores que estavam por toda parte. E não foram poucos os pais de família que morreram rastejando até um poço ou até o que restava de uma despensa. Mortos foram sepultados, em situação de grave risco para os sobreviventes, nos terrenos baldios das áreas atacadas. Exumar os mortos Um verdadeiro cemitério existiu nos terrenos vazios do Ipiranga que ficavam atrás do museu. Mortos nos ataques e nos combates do Cambuci, do Ipiranga. Era impossível levar os mortos até o cemitério da Vila Mariana. Depois da guerra, grupos perambulavam por esses cemitérios improvisados para exumar os mortos em decomposição e levá-los para sepulturas definitivas nos cemitérios da cidade. Em não poucas casas, em que parte da família foi morta, crianças ficaram órfãs. Há alguns anos ainda se encontravam vítimas mutiladas pelas bombas e tiros. Em São Caetano, uma família guardou enormes cápsulas dos morteiros que foram encontradas nos morros do Sacomã, zona de combate e frente de batalha. Durante muito tempo, a escola Matoso, na Mooca, ostentava a fachada picotada de tiros.
No dia 22, a menos de uma semana do fim da ocupação da cidade pelas tropas revoltosas, aviões bombardearam a cidade. São Paulo é, provavelmente, a única cidade brasileira que tenha sofrido bombardeio aéreo. O intuito das forças federais era claro e já havia sido indicado em manifestação do Ministério da Guerra uma semana depois do início da revolução: a destruição da cidade, se preciso, para desalojar e derrotar os rebeldes. A riqueza de São Paulo e o povo laborioso se encarregariam de reconstruí-la, foi o argumento. Panfletos foram lançados de avião conclamando os moradores a deixarem a cidade para que a aniquilação das forças rebeladas pudesse ser consumada com facilidade. Mesmo sem a desocupação da cidade (pouco mais da metade da população nela permaneceu), os ataques foram praticados como se a cidade estivesse vazia.
Hospitais e enfermarias foram improvisados, do lado rebelde no Mosteiro de São Bento, do lado legalista no Cinema Central, de São Caetano. Outros vários se espalharam pela cidade.
O abandono da capital pelo governo do Estado deixou a cidade no desamparo. Foi preciso improvisar uma polícia, de que se encarregou Paulo Duarte, reunindo estudantes, especialmente da Faculdade de Direito. Mas foi preciso também improvisar governo, embora existisse um prefeito que permaneceu na função. O presidente da Associação Comercial, que naquela época reunia industriais e comerciantes, teve que assumir funções governativas, determinar ordens, comandar decisões, tentar o armistício, propor negociações entre as partes, tentar evitar o caos. Seria processado depois por isso.

A mitificação de esquerda da história operária omite a existência de ativas organizações de direita, que também começavam a surgir

Nesse tempo, os operários estavam mal e precariamente organizados. Hoje se mitificam as lutas operárias da cidade, se exagera na eficácia de suas organizações de esquerda. Em 1917, a greve espontânea e espetacular só não foi um desastre porque o minúsculo grupo de anarquistas acabou atuando como canal de organização e expressão. Mas os trabalhadores da cidade não eram anarquistas, senão em pequeno número. Alguns outros eram socialistas e em 1924 uns poucos comunistas ainda não tinham nenhuma presença significativa no meio operário. Os dirigentes desses grupos eram na prática uma elite obreira, esclarecida e lutadora, mas sem massa para dirigir. Além disso, a população operária se dividia indistintamente entre esquerda e direita. A mitificação de esquerda da história operária omite a existência de ativas organizações de direita, que também começavam a surgir, como os núcleos do Fascio e as Societá Dopo Lavoro, sem contar as organizações católicas. Na precária organização do povo, pesava muito mais do que a política a origem nacional e a religião. Nessa época, convém não esquecer, no Brás, no Belenzinho, na Mooca, em São Caetano, no Cambuci, falava-se cotidianamente italiano, na verdade dialetos, como o vêneto e o napolitano. Eventualmente, em alguns cantos da Mooca, o espanhol. A maioria da população da cidade não falava português no dia-a-dia. Essas eram as línguas das fábricas. Era por aí que as identificações e as solidariedades eram estabelecidas. Messianismo Os poucos grupos operários que foram procurar o general Isidoro no quartel da Luz para aderirem à revolução nem sequer foram por ele recebidos, embora o general recebesse facilmente os representantes da Associação Comercial. No entanto, nos bairros operários, nos primeiros dias da revolução, trabalhadores esperançosos gritavam da janela de suas casas para seus vizinhos, naqueles tempos em que o principal rádio era o berro: "Isidoro é arrivato!", como ouvi de um velho morador da Vila Alpina que me narrava a história. Inútil esperança messiânica que se materializaria somente com Getúlio, seis anos depois. Numa rua do Brás ainda existe, em alto relevo na fachada de um bar, o simbólico nome do estabelecimento: "Padaria Estado Novo".
Na estrutura de classes da sociedade brasileira de então, a opção dos revolucionários era clara. Não se tratava de nenhuma "revolução russa" nem havia sovietes para exigir ou impor coisa nenhuma. A classe operária mal entendeu o que estava acontecendo. Apenas sofreu as cruentas conseqüências de uma revolução que não era a sua. Tampouco os militares sabiam exatamente o que queriam. Sabiam apenas, como também a elite dirigente, que não queriam a bolchevização da revolução.
Só depois de vários dias conseguiram produzir um tosco documento em que anunciavam o objetivo de sua luta: renúncia do presidente Artur Bernardes, sua substituição por um governo provisório, convocação de uma Constituinte, redução do número de Estados, voto secreto, separação de Estado e Igreja (o que já estava na Constituição republicana), mas reconhecimento dos católicos como maioria, princípios que indicavam a objeção militar ao federalismo, o que se consumará depois no Estado Novo, de 1937. Não havia nada que dissesse respeito à condição operária, a algumas reivindicações básicas, como o salário e a jornada de trabalho, os chamados direitos sociais.
Diante do morticínio, da fome, do grande número de feridos, dos mortos insepultos ou sepultados às pressas, uma proposta de armistício foi levada por Paulo Duarte, no dia 27, ao general Eduardo Sócrates em Guaiaúna, comandante-em-chefe das forças federais, com quem se encontrava o governador Carlos de Campos. Foi recusada, com desdém. Só aceitavam uma rendição incondicional. No dia 28 de julho a cidade amanheceu finalmente desocupada pelas forças rebeldes. Isidoro e os oficiais que o acompanhavam entenderam que a cidade seria destruída se não o fizessem. Os revolucionários deslocaram-se com tropas e equipamentos, por ferrovia, para o interior e para o sul. Encontrariam os rebeldes gaúchos, de que resultaria a Coluna Prestes.
São Paulo estava arruinada. Mais de 300 trincheiras haviam sido abertas nas ruas da cidade, mediante descalçamento e amontoamento de macadames. Um grande número de fábricas havia sido incendiado nos bombardeios. Casas haviam sido destruídas nos bairros pobres. Famílias estavam dispersas e separadas. Era necessário reuni-las novamente, abrigá-las, retomar o trabalho.
Em poucos dias a repressão injusta se abateria sobre a cidade. Seus moradores foram considerados suspeitos de colaboração com o inimigo. Afinal, inimigo de quem? De operários ao presidente da Associação Comercial, um sem-número de pessoas foi submetido ao inquérito policial militar. No silêncio de uma prateleira, os 170 volumes do inquérito guardam as vozes do passado, os depoimentos e documentos capturados com os presos ou nas casas que ocupavam, incluindo manuscritos e notas dos próprios oficiais revoltosos. Documentação que quase se perdeu quando o arquivo do Tribunal de Justiça na Vila Leopoldina foi invadido pelas águas podres do rio Pinheiros, numa de suas inundações.
Todos os volumes ficaram submersos. Dentre eles, um grosso volume de fotografias invocadas como provas: ficaram coladas uma nas outras. Esperam o milagre de uma tecnologia que permita separá-las e recuperá-las. Veremos, então, uma São Paulo diversa de todas as que conhecemos, destruída, as faces do pesadelo e do terror, a expressão do pouco-caso pela vida e pela pessoa.
Um pastor presbiteriano, Paulo Lício Rizzo, escreveria no início dos anos 40 um dos raros romances operários de São Paulo, "Pedro Maneta", e provavelmente o único a resgatar numa obra de ficção o drama de um mutilado do Brás e da Mooca da revolução. Nesta cidade sem memória ficou apenas um monumento para nos lembrar daqueles dias de sofrimento, dor e morte, construído involuntariamente por um balaço: uma marca de bala na chaminé que resta do que foi uma usina elétrica, perto da estação da Luz, ao lado do quartel da Rota. É o único e desconhecido monumento dessa tragédia, o monumento da nossa desmemória.


José de Souza Martins é professor titular de sociologia (aposentado) da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Sobre a Revolução de 1924, publicou um capítulo em "Subúrbio" (editora Hucitec).


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