São Paulo, domingo, 11 de agosto de 2002

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O PESO DA CENA LOCAL


O historiador Stuart Schwartz, que está lançando livro no Brasil, relativiza a pressão do sistema mercantil para a colonização da América Latina e diz que as reivindicações dos comerciantes e fazendeiros foram fundamentais


Sylvia Colombo
editora-adjunta da Ilustrada

Quase 20 anos depois de publicado originalmente nos EUA, "A América Latina na Época Colonial", dos historiadores norte-americanos Stuart Schwartz e James Lokhart, sai agora no Brasil, em edição em português (ed. Civilização Brasileira, 560 págs., R$ 50,00).
Lançada em 1983, a obra tinha por objetivo apresentar uma abordagem inovadora em relação à literatura existente em inglês sobre a América Latina, pelo menos sob dois aspectos. O primeiro deles era que o livro tratava de analisar as colonizações portuguesa e espanhola de forma ampla, ressaltando que, no fundo, não existiam tantas diferenças culturais, sociais ou econômicas nas duas formas de expansão ibérica que chegaram à América. O segundo aspecto foi o fato de o estudo privilegiar a importância que ações, reações e decisões registradas na América -por colonizadores, índios e escravos- tiveram para a definição dos rumos da colonização.
O ensaio inicia com uma análise abrangente da bagagem cultural ibérica, mostrando que, à época dos Descobrimentos, a península havia tempos já não vivia em isolamento, tendo adquirido um perfil multiculturalista que predominaria nos primeiros tempos da colonização. Esta, a princípio, poderia ser compreendida como uma expansão da estratégia de Castela, então a região mais próspera da Espanha, que tratava seus domínios colonizando-os metodicamente, cobrando tributos, incorporando e alterando cultura e religião.
No que diz respeito às independências latino-americanas, o livro apresenta uma crítica à historiografia que separava em fases estanques o período colonial da época pós-independência. Com uma abordagem socioeconômica ampla, os historiadores tentam demonstrar que a continuidade predominou no período (de forma "óbvia e esmagadora").
Finalmente os historiadores direcionam o ensaio no sentido de mostrar que, devido ao tamanho, a população e a intensidade da colonização ibero-americana, sua herança estendeu-se longamente no período pós-independência, fortemente até o final do século 19 e, de alguma maneira, até hoje.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista que o brasilianista Stuart Schwartz, professor da Universidade Yale e autor de "Escravos, Roceiros e Rebeldes" (Edusc), concedeu ao Mais!, por telefone.

Ao avaliar a conquista como expansão da tradição ibérica de dominação, o livro quis questionar uma historiografia que reduzia as explicações do processo de colonização a uma causa econômica, no caso o desenvolvimento do mercantilismo na Europa?
Sim. A historiografia daquele momento era influenciada pelo pensamento de homens como Immanuel Wallerstein ("The Modern World System") -no Brasil, o grande representante dessa linha foi o historiador Fernando Novais ("Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial", ed. Hucitec). Nós queríamos uma nova visão, que desse mais ênfase às decisões locais.
Quais as novidades da edição em português?
'5Atualizamos a bibliografia e fizemos uma pequena introdução. Decidimos deixar o livro como era em termos de conteúdo, porque achamos que representa um momento específico da produção historiográfica do início dos anos 80. Se eu tivesse a oportunidade de escrevê-lo de novo, sei que o faria de outra maneira. Daria mais ênfase à história cultural, às mentalidades, e me deixaria influenciar, por exemplo, pelos trabalhos de Ronaldo Vainfas ou de Laura de Mello e Souza, que ofereceram novas dimensões à historiografia brasileira. Mas o livro ainda é um trabalho valioso e atual.
Qual era o seu objetivo ao privilegiar um ponto de vista não-europeu?
O desenvolvimento do capitalismo levou a historiografia a se concentrar na maneira como o sistema mercantil se construiu e se fortificou durante toda a colonização. Nossa idéia era justamente mostrar que as decisões de comerciantes locais, de fazendeiros etc. influenciaram a administração portuguesa. Ou seja, que esta não se transformava apenas por causa dos interesses de mercadores de Portugal, Inglaterra ou Holanda, mas também devido aos interesses dos que estavam nas colônias.
Nossa historiografia cometeu muitos erros?
Sim, em muitos momentos. Por exemplo, acho que foi um equívoco, no passado, a idéia de comparar o Brasil com o Peru ou o México -e isso foi muito recorrente. Os índios daquelas regiões eram muito diferentes dos da costa brasileira. Se, de outra maneira, tivesse sido feita uma comparação entre o Brasil e a Venezuela ou entre o Brasil e o Caribe pouco antes da chegada dos colonizadores e durante os primeiros tempos da instalação dos europeus então se poderia notar que o processo colonial nessas regiões não foi tão diferente.
O que os aproximava?
Essa semelhança foi determinada não pela natureza de portugueses ou espanhóis, que de um modo geral agiram de maneira homogênea nos primeiros séculos da colônia, mas por especificidades da própria América, da configuração dos povos indígenas que habitavam essas regiões e de suas possibilidades ecológicas e econômicas.
O livro faz distinções e comparações entre diversas áreas de povoamento. Quais delas o sr. acha que deveriam ser ressaltadas?
Fizemos uma diferenciação entre os centros da colonização, como Lima, Salvador, Cidade do México e as zonas interiores, como os sertões, a Amazônia, o Paraguai, São Paulo. Sei que meus amigos paulistas podem não gostar de ouvir isso, mas, de muitas maneiras, a São Paulo colonial parecia muito o Paraguai. Em ambos as pessoas falavam tupi, viviam sem muitos recursos, houve mistura de cultura indígena e cultura européia. Eram lugares em que o índio tinha um papel importantíssimo na vida e na cultura. Só no século 18 isso mudou, no caso de São Paulo. Esse é um exemplo do tipo de comparação que propusemos no livro, uma comparação que não confronta apenas portugueses e espanhóis, mas que coloca lado a lado situações que se produziram dentro do contexto latino-americano.
No capítulo sobre os "modos ibéricos" vocês apontam para o fato de que estes eram tão etnocêntricos quanto os outros europeus, mas haviam tido uma profunda e inédita experiência com outros povos em seu território (judeus, árabes). De que maneira essa bagagem cultural ambígua deixou traços na América Latina colonial?
Essa é uma questão muito complexa, e é claro que seu resultado é também ambíguo. Houve muita discriminação em geral, e a Inquisição foi uma forte barreira à convivência. Mas, ao mesmo tempo, essa tradição de convivência que vinha de Portugal e da Espanha continuava no processo de colonização. Havia muita gente em Portugal e na Espanha que acreditava que, não importava a religião a que pertencesse um indivíduo, todos os bons iriam para o Céu e os maus, para o Inferno. Acho que isso está diretamente relacionado à mistura que foi possível no México, no Peru, no Brasil etc., onde os colonizadores, que podiam ser bons católicos, não descartavam a idéia de que talvez pudesse haver outras maneiras de chegar a Deus. Isso era resultado da longa experiência de convivência multicultural vinda da península.
Desde o período pós-independência até meados do século 20, o propósito dos intelectuais que estudaram a história política do continente era basicamente construir projetos de governo que inserissem a América Latina na geopolítica mundial, às vezes justificando o liberalismo, às vezes pregando abertamente a revolução socialista. Acha que isso ainda vigora?
Essa especificidade do pensamento latino-americano está muito relacionada com o momento de formação do Estado nacional. A historiografia na América espanhola e no Brasil não pôde se desvincular dessa questão no século 19. Se hoje lermos Varnhagen, veremos que a preocupação era justificar a integração do país e legitimar um caráter nacional. No seu caso específico, ele o fez imbuído de um nacionalismo conservador. Mas esse foi o projeto geral, no Chile, no Peru etc.; não houve lugar para os que não queriam se integrar ao processo nacional. Agora estamos vivendo um outro momento, e muito da historiografia de hoje se dedica a desfazer essa imagem de integração e mostrar que a nação é resultado de vários processos, que não houve uma história integradora, mas sim várias histórias, às vezes contraditórias.


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