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Ponto de Fuga
Espelho sem aço
Nos séculos 17 e 18, havia um gênero de pintura que figurava grandes coleções de obras de arte, imagens de museus particulares; Pazé tomou um desses, mas trocou a coleção
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JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Talvez alguém se lembre
da expressão antiga. Espelho sem aço refere-se a
alguma coisa que não reflete,
que bloqueia a vista. "Saia da
frente, espelho sem aço", costumava-se dizer para alguém
atrapalhando o olhar. Sabe-se
lá por que aço. Talvez alguma
palavra técnica.
Ela vem à mente diante do
cenário que Pazé imaginou, fabricou e instalou na galeria
Triângulo, em São Paulo. Pazé
inventou falsos reflexos. Criou
uma vertigem semelhante
àquelas provocadas pelas decorações barrocas em "trompe-l'oeil". Tão sensível e tão inteligente ao mesmo tempo.
Nos séculos 17 e 18, havia um
gênero de pintura que figurava
grandes coleções de obras de
arte. Embora pequenas, eram
telas atordoantes. Representavam dezenas de quadros e esculturas, recobrindo as paredes
e o solo, propriedades de amadores ricos. Imagens de museus particulares, naqueles
tempos em que museus públicos não havia.
Pazé tomou um desses, dos
vários que Teniers, o Jovem
[1610-90], pintou para o arquiduque Leopoldo Guilherme,
governador dos Países Baixos
espanhóis, cuja formidável coleção formou o núcleo primeiro do Museu de História da Arte de Viena.
Pazé o reproduziu em telas
imensas que, dispostas frente a
frente, invertem-se como se refletidas em espelho. Mas trocou a coleção do arquiduque,
visível na tela, por uma outra,
de sua imaginação. Um museu
imaginário.
Substituiu também as pinturas que aparecem dentro dos
quadros presentes (o quadro
dentro do quadro dentro do
quadro), o que leva a uma fascinação infinita de descobertas.
Escolheu obras com presenças
humanas. Elas espreitam o espectador, como que aprisionado dentro de uma ratoeira de
mil saídas impossíveis.
Vibrátil
Engana-se quem supuser
que a obra de Pazé, intitulada
"A Coleção", é uma brincadeira.
Há sempre, no "trompe-l'oeil", o maravilhamento de
um jogo: a porta que parece de
verdade é falsa, o espaço que se
prolonga barra o espectador
por uma parede invisível. Isso
existe na concepção de Pazé,
mas logo as regras do jogo que
impôs a si mesmo conduzem a
percepções complexas.
Uma delas liga-se à natureza
da reprodução das obras de arte. Tema enorme, ele foi reduzido a pó de traque desde os românticos, que acreditavam numa aura misteriosa, própria aos
originais. Foi aproveitado pelo
mercado das artes, tão maroto,
que viu no autêntico um critério objetivo para o aumento dos
preços.
Poucos espíritos, como o de
Proust, pensaram a reprodução
da obra não como um substituto enfraquecido do original, um
"ersatz", mas como fazendo
parte do próprio original.
Aby Warburg [1866-1929] intuiu esse mesmo princípio em
seu "Atlas de Imagem Mnemosyne" (Mnemósine, divindade da memória, também tão
cara a Proust). Warburg recortava e colava, em painéis escuros, imagens de origens diversas, cuja proximidade fazia estalar fulgurâncias.
Mergulho
A invenção de Pazé na galeria
Triângulo põe em xeque uma
certa modernidade envelhecida, que comandava aos museus
e galerias isolar as obras em paredes vazias. Acreditava-se, assim, conduzir o espectador a
uma comunhão religiosa, singular e veneranda, com a arte.
Na verdade, tal visão compassada impede que as obras
entrem em vibração pela proximidade que cria vasos comunicantes e estala no espectador os
melhores "insights". Emanoel
Araujo, no Brasil, sabe os segredos dessa vizinhança fecunda.
Rápido
Algum museu teria por obrigação adquirir a obra de Pazé. A
mostra, em todo caso, acaba logo. Quem não viu, corra.
jorgecoli@uol.com.br
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