São Paulo, domingo, 11 de outubro de 2009

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Ponto de Fuga

Espelho sem aço


Nos séculos 17 e 18, havia um gênero de pintura que figurava grandes coleções de obras de arte, imagens de museus particulares; Pazé tomou um desses, mas trocou a coleção


JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Talvez alguém se lembre da expressão antiga. Espelho sem aço refere-se a alguma coisa que não reflete, que bloqueia a vista. "Saia da frente, espelho sem aço", costumava-se dizer para alguém atrapalhando o olhar. Sabe-se lá por que aço. Talvez alguma palavra técnica.
Ela vem à mente diante do cenário que Pazé imaginou, fabricou e instalou na galeria Triângulo, em São Paulo. Pazé inventou falsos reflexos. Criou uma vertigem semelhante àquelas provocadas pelas decorações barrocas em "trompe-l'oeil". Tão sensível e tão inteligente ao mesmo tempo.
Nos séculos 17 e 18, havia um gênero de pintura que figurava grandes coleções de obras de arte. Embora pequenas, eram telas atordoantes. Representavam dezenas de quadros e esculturas, recobrindo as paredes e o solo, propriedades de amadores ricos. Imagens de museus particulares, naqueles tempos em que museus públicos não havia.
Pazé tomou um desses, dos vários que Teniers, o Jovem [1610-90], pintou para o arquiduque Leopoldo Guilherme, governador dos Países Baixos espanhóis, cuja formidável coleção formou o núcleo primeiro do Museu de História da Arte de Viena. Pazé o reproduziu em telas imensas que, dispostas frente a frente, invertem-se como se refletidas em espelho. Mas trocou a coleção do arquiduque, visível na tela, por uma outra, de sua imaginação. Um museu imaginário.
Substituiu também as pinturas que aparecem dentro dos quadros presentes (o quadro dentro do quadro dentro do quadro), o que leva a uma fascinação infinita de descobertas. Escolheu obras com presenças humanas. Elas espreitam o espectador, como que aprisionado dentro de uma ratoeira de mil saídas impossíveis.

Vibrátil
Engana-se quem supuser que a obra de Pazé, intitulada "A Coleção", é uma brincadeira. Há sempre, no "trompe-l'oeil", o maravilhamento de um jogo: a porta que parece de verdade é falsa, o espaço que se prolonga barra o espectador por uma parede invisível. Isso existe na concepção de Pazé, mas logo as regras do jogo que impôs a si mesmo conduzem a percepções complexas.
Uma delas liga-se à natureza da reprodução das obras de arte. Tema enorme, ele foi reduzido a pó de traque desde os românticos, que acreditavam numa aura misteriosa, própria aos originais. Foi aproveitado pelo mercado das artes, tão maroto, que viu no autêntico um critério objetivo para o aumento dos preços.
Poucos espíritos, como o de Proust, pensaram a reprodução da obra não como um substituto enfraquecido do original, um "ersatz", mas como fazendo parte do próprio original. Aby Warburg [1866-1929] intuiu esse mesmo princípio em seu "Atlas de Imagem Mnemosyne" (Mnemósine, divindade da memória, também tão cara a Proust). Warburg recortava e colava, em painéis escuros, imagens de origens diversas, cuja proximidade fazia estalar fulgurâncias.

Mergulho
A invenção de Pazé na galeria Triângulo põe em xeque uma certa modernidade envelhecida, que comandava aos museus e galerias isolar as obras em paredes vazias. Acreditava-se, assim, conduzir o espectador a uma comunhão religiosa, singular e veneranda, com a arte. Na verdade, tal visão compassada impede que as obras entrem em vibração pela proximidade que cria vasos comunicantes e estala no espectador os melhores "insights". Emanoel Araujo, no Brasil, sabe os segredos dessa vizinhança fecunda.

Rápido
Algum museu teria por obrigação adquirir a obra de Pazé. A mostra, em todo caso, acaba logo. Quem não viu, corra.

jorgecoli@uol.com.br


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