São Paulo, domingo, 11 de outubro de 1998

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O historiador Eric Hobsbawm analisa os significados do renascimento da já quase centenária música
Jazz - A era da improvisação


O jazz tem demonstrado um extraordinário poder de sobrevivência dentro de uma sociedade que não merece essa música


ERIC HOBSBAWM
especial para o "Clarín"

O jazz tem hoje quase um século de vida. Já é aceito como parte do mundo da cultura ocidental (ou ocidentalizada), ainda que uma parte modesta: a julgar pelas vendas de discos, o público de jazz continua sendo bem menor do que o da música clássica. Por outro lado, após um breve período de bonança nos anos 30 e 40, o gênero sofreu a deserção do grande público jovem, atraído sobretudo pelo rock. Além disso, muitos dos mais talentosos músicos de jazz adotaram estilos de vanguarda particularmente hostis a seus consumidores. A partir de 1960, passaram-se cerca de 20 anos em que o jazz ao vivo quase não teve mercado em seu país de origem.
Desde então, deu-se um grande renascimento. De início, os maiores beneficiários dessa retomada, nos Estados Unidos, foram aqueles talentosos intérpretes de vanguarda que militaram nos obscuros anos 60 e 70, reconduzidos à corrente dominante do jazz graças ao reaparecimento de um público entusiasta. Esses músicos já não eram jovens. Depois entraram em cena músicos realmente jovens e talentosos. Entretanto há algo de estranho nesse renascimento, embora essa estranheza o torne mais familiar aos velhos amantes do jazz como eu: o jazz dos anos 90 olha para trás.
Aliás, nos festivais de jazz, os maiores chamarizes de público são os sobreviventes dos anos anteriores a 1960 e os talentos de meia-idade surgidos nos 60 e 70. Igualmente significativo é o que eles tocam. A base do que se executa hoje em dia é, essencialmente, o bebop dos anos 40 e 50. Todos são boppers (amantes desse tipo de jazz). Não que nada de novo tenha surgido desde então; o que acontece é que as inovações das décadas passadas, do free jazz ao fusion, foram silenciosamente marginalizadas. Até os mais entusiastas obituários de Miles Davis, figura-chave no desenvolvimento do jazz desde o começo dos anos 50, resvalaram em uma curiosa ambiguidade ao falar de seus últimos 20 anos e preferiram guardar silêncio em relação à última década.
Isso não teria nada de mais entre pessoas de idade avançada, para as quais é difícil esquecer as maravilhas de seu primeiro Quinteto, do "Miles Ahead" e do "Kind of Blue", mas das gerações mais recentes esperava-se outra atitude, mas a brecha entre as gerações não deveria ser tão estreita. Agora a palavra-chave é "tradição", um termo outrora muito mais ouvido entre os jazzmaníacos que lamentavam o fim da música de Nova Orleans do que entre músicos. Mas eis as palavras de um saxofonista de 20 e poucos anos (descrito como "tributário de Parker e Adderley"): "Se Bird é minha principal influência, é porque suas execuções cobrem muitas eras e estilos. Ele se manteve fiel à tradição. Acho que, se estudasse Bird o bastante, eu conseguiria apreendê-la". Será que, aos 25 anos, Bird pensava isso de si próprio?
Mas a moda "retrô" remonta a muito além dos pioneiros do bebop. Houve um retorno às baladas tradicionais, por mais que agora sejam interpretadas com floreios de vanguarda por aqueles músicos que, depois de terem tocado as fronteiras mais inacessíveis da experimentação, foram reintegrados à corrente dominante, como ocorreu, por exemplo, com Archie Sheep, "o terror dos anos 60". Houve até um resgate da tradição original de Nova Orleans por parte de afro-americanos, depois de muitas décadas em que o gênero atendeu a um gosto exclusivamente branco. Houve, acima de tudo, um extraordinário retorno ao blues; algo que, só pela reedição de Robert Johnson, rendeu meio milhão de dólares.
Tudo isso pode ser reconfortante e familiar, embora seja impossível voltar a sentir, como em 1939-42 e (mais uma vez) no final dos anos 50, que estamos vivendo uma era dourada do jazz. Há, sim, muito jazz para se ouvir, não faltando músicos ousados "aventureiros" e, ao mesmo tempo, acessíveis. Mas tudo isso é também um sinal de perigo.
O jazz não pode sobreviver como a música barroca, como uma forma de pastiche ou arqueologia musical para um público culto, mesmo que de negros. Mas é exatamente esse o risco que ele corre. Hoje, os jovens negros não cantam blues. No melhor dos casos, o blues é executado por velhos artistas para um público também idoso, de bairro; no pior dos casos (como ocorre em boa parte dos salões de blues de Chicago), pelos mesmos homens de idade, mas em bairros "brancos", para estudantes brancos. Os jovens negros já não sonham em tocar trompete, mas em formar parte dos grandes grupos de rap. Esta forma de arte, a meu ver, é desinteressante do ponto de vista musical e tosca em suas letras. O oposto da arte grandiosa e profunda do blues. Há fortes razões por trás dessa opção, mas o fato é que assim são cortadas as raízes do jazz.
O meio artístico e os círculos negros florescentes -o que poderíamos chamar "território Spike Lee"- estão impregnados de jazz. O mesmo ocorre, obviamente, com os músicos, negros e brancos, e não só nos Estados Unidos. Mas o jazz sempre viveu, não de sua popularidade, mas daquilo que Cornel West chama "rede de aprendizes", da "transmissão de habilidades e sensibilidades aos novos músicos". As cordas dessa rede estão se desfiando. Algumas já se partiram.
Será que, à margem de qualquer redenção, o jazz está se transformando em outra versão da música clássica, em um tesouro cultural aceito, formado por um repertório de estilos majoritariamente mortos, executado ao vivo para um público de meia-idade e classe média, financeiramente acomodado, branco e negro, ao qual vêm se somar as fiéis multidões de japoneses amantes do jazz? Voltará a ser acessível a seu público natural, a juventude pobre, principalmente por meio do rádio e das gravações, como o foi para minha geração européia há meio século?
Estaria o jazz se fossilizando de maneira terminal? Não é algo impossível. Se for esse o seu destino, não servirá de grande consolo o fato de que, hoje, em todos os cabeleireiros e salões de beleza, se escutem gravações de Billie Holiday. Mas o jazz tem demonstrado um extraordinário poder de sobrevivência e renovação dentro de uma sociedade que não está preparada para essa música, que não a merece. Ainda é muito cedo para concluir que seu potencial se esgotou.
De mais a mais, o que há de errado em continuar escutando a música e deixar que o futuro cuide de si mesmo?


Eric Hobsbawm é historiador inglês; professor aposentado da Universidade de Londres, leciona atualmente na New School of Social Research, em Nova York (EUA). Autor, entre outros, de "A Era das Revoluções" e "A Era dos Extremos" (Companhia das Letras).
Tradução de Sérgio Molina.



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