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Ponto de fuga
O culpado não é o mordomo
Talvez não seja mesmo muito simples ser filho de multimilio-nário, ainda mais quando à riqueza se acrescentam encanto pessoal, inteligência, sensibilidade e talento; são dádivas demais
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JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Há mais de uma década,
João Moreira Salles filmou Santiago, mordomo de sua família durante 30
anos. Projetava então um um
documentário que não completou. Retomou agora esse material, e o resultado é admirável.
Nele se entrançam a memória do mordomo, a memória do
diretor em outros tempos e sua
memória de agora. Santiago,
que já estava aposentado, morreu em 1994, dois anos depois
dessas filmagens. É um personagem magnífico, melhor compreendido hoje pelo cineasta
maduro.
Ouve-se o jovem João Moreira Salles comandando as cenas com voz aguda, timbre de
adolescente, tom autoritário. O
mordomo obedece, mas sua
personalidade, tão rica, escapa
às ordens e manipulações do
diretor. É forçado a dizer várias
vezes a mesma coisa, como faz
o ator num filme de ficção. Mas
resiste e se impõe.
O documentário incorporou
as tomadas repetidas: uma alegria ver a impaciência progressiva de Santiago.
A impressão mais forte, mais
inesquecível, do filme "Santiago" é a de beleza.
Ela flui graças às sombras
untuosas que modelam o personagem e os objetos. Torna-se
vertiginosa nas mãos que, em
close, dançam, volteiam no ar.
Faz-se meditativa e imóvel, enquadrando as pilhas de papéis
amarrados com fitas de seda,
que se perfilam, impecáveis,
sobre as prateleiras.
Sarcófago
Os papéis bem arrumados
contêm anotações feitas pelo
mordomo: listas infindáveis de
reis, chefes, dinastias, astros de
cinema, famílias poderosas do
mundo inteiro. O filme explora
essas anotações um pouco ao
acaso, buscando nomes sonoros, esdrúxulos, raros. Neles
perpassa algo presente em todo
o filme, que é a obsessão da permanência. O rol de nomes vem
de um empenho imenso: enumerar todos os poderosos em
todos os lugares.
Desde a Antigüidade mais recuada, a escrita serviu para
marcar na pedra a linhagem de
soberanos: esforço inútil e desesperado de perenidade para
escapar à trituração do tempo.
Na natureza do cinema encontra-se também, de modo intencional ou não, essa ilusão do
tempo vencido. André Bazin,
teórico da cinematografia, falava da "boa múmia": a câmera
traz de volta momentos que
morreram e que ressuscitam
na tela de modo fictício. O mordomo Santiago diz, com razão,
que aquelas filmagens o estão
mumificando.
Supérfluo
"Santiago" traz uma simbiose entre o personagem e o diretor. Eles se fundem na nostalgia
da memória, na fantasmagoria
do passado. No final, porém,
João Moreira Salles expõe sua
sensação de culpa por ter se
comportado, no momento das
filmagens, mais como patrão
do que como diretor.
Essa conclusão tem por efeito desfazer a simbiose equilibrada. Os anos se foram, o diretor amadureceu, mas o patrão
permanece. Reserva-se a última palavra. Afasta o mordomo.
Sozinho, encena seu arrependimento e sua confissão.
Domésticos
Talvez não seja mesmo muito simples ser filho de multimilionário. Ainda mais quando à
riqueza se acrescentam encanto pessoal, inteligência, sensibilidade e talento. São dádivas
demais. Diante do mortal comum, compreende-se que esses dons provoquem remorsos
em quem os possui.
Num episódio do filme "Paris, Te Amo", a câmera delicada
e sentimental de Walter Moreira Salles mostra uma latino-americana vivendo nos subúrbios de Paris. Ela abandona
com tristeza seu bebê numa
creche, atravessa longamente a
cidade em transportes públicos, para ir cuidar de uma
criança rica no bairro mais chique e caro da cidade.
jorgecoli@uol.com.br
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