São Paulo, domingo, 11 de novembro de 2007

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Ponto de fuga

O culpado não é o mordomo


Talvez não seja mesmo muito simples ser filho de multimilio-nário, ainda mais quando à riqueza se acrescentam encanto pessoal, inteligência, sensibilidade e talento; são dádivas demais


JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Há mais de uma década, João Moreira Salles filmou Santiago, mordomo de sua família durante 30 anos. Projetava então um um documentário que não completou. Retomou agora esse material, e o resultado é admirável. Nele se entrançam a memória do mordomo, a memória do diretor em outros tempos e sua memória de agora. Santiago, que já estava aposentado, morreu em 1994, dois anos depois dessas filmagens. É um personagem magnífico, melhor compreendido hoje pelo cineasta maduro.
Ouve-se o jovem João Moreira Salles comandando as cenas com voz aguda, timbre de adolescente, tom autoritário. O mordomo obedece, mas sua personalidade, tão rica, escapa às ordens e manipulações do diretor. É forçado a dizer várias vezes a mesma coisa, como faz o ator num filme de ficção. Mas resiste e se impõe.
O documentário incorporou as tomadas repetidas: uma alegria ver a impaciência progressiva de Santiago. A impressão mais forte, mais inesquecível, do filme "Santiago" é a de beleza. Ela flui graças às sombras untuosas que modelam o personagem e os objetos. Torna-se vertiginosa nas mãos que, em close, dançam, volteiam no ar. Faz-se meditativa e imóvel, enquadrando as pilhas de papéis amarrados com fitas de seda, que se perfilam, impecáveis, sobre as prateleiras.

Sarcófago
Os papéis bem arrumados contêm anotações feitas pelo mordomo: listas infindáveis de reis, chefes, dinastias, astros de cinema, famílias poderosas do mundo inteiro. O filme explora essas anotações um pouco ao acaso, buscando nomes sonoros, esdrúxulos, raros. Neles perpassa algo presente em todo o filme, que é a obsessão da permanência. O rol de nomes vem de um empenho imenso: enumerar todos os poderosos em todos os lugares.
Desde a Antigüidade mais recuada, a escrita serviu para marcar na pedra a linhagem de soberanos: esforço inútil e desesperado de perenidade para escapar à trituração do tempo. Na natureza do cinema encontra-se também, de modo intencional ou não, essa ilusão do tempo vencido. André Bazin, teórico da cinematografia, falava da "boa múmia": a câmera traz de volta momentos que morreram e que ressuscitam na tela de modo fictício. O mordomo Santiago diz, com razão, que aquelas filmagens o estão mumificando.

Supérfluo
"Santiago" traz uma simbiose entre o personagem e o diretor. Eles se fundem na nostalgia da memória, na fantasmagoria do passado. No final, porém, João Moreira Salles expõe sua sensação de culpa por ter se comportado, no momento das filmagens, mais como patrão do que como diretor. Essa conclusão tem por efeito desfazer a simbiose equilibrada. Os anos se foram, o diretor amadureceu, mas o patrão permanece. Reserva-se a última palavra. Afasta o mordomo. Sozinho, encena seu arrependimento e sua confissão.

Domésticos
Talvez não seja mesmo muito simples ser filho de multimilionário. Ainda mais quando à riqueza se acrescentam encanto pessoal, inteligência, sensibilidade e talento. São dádivas demais. Diante do mortal comum, compreende-se que esses dons provoquem remorsos em quem os possui.
Num episódio do filme "Paris, Te Amo", a câmera delicada e sentimental de Walter Moreira Salles mostra uma latino-americana vivendo nos subúrbios de Paris. Ela abandona com tristeza seu bebê numa creche, atravessa longamente a cidade em transportes públicos, para ir cuidar de uma criança rica no bairro mais chique e caro da cidade.


jorgecoli@uol.com.br


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