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Solução parcial
Historiografia ainda se debruça sobre múltiplas hipóteses para tentar explicar o que deu origem ao nazismo
BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA
Em pleno século 21,
apesar dos novos problemas, os fantasmas
do século 20 continuam presentes.
Dentre eles, o do regime nazista e seu cortejo de horrores,
em que o Holocausto figura
com destaque. A propósito desse meteórico genocídio que, em
poucos anos, produziu mais de
5 milhões de mortos, uma
questão central permanece em
aberto: o Holocausto era evitável ou estaria inscrito na história da Alemanha, como o ovo
da serpente que iria quebrar a
casca, surgindo por inteiro,
mais cedo ou mais tarde?
A meu ver, a interpretação
mais sensata é a que lança um
foco de luz mais intenso na história alemã posterior à Primeira Guerra Mundial (1914-18),
sem abandonar elementos do
passado mais distante.
Essa posição é fundamentada, com muita clareza, pelo jornalista e autor israelense Amos
Elon, num livro com o expressivo título de "The Pity of It All
- A Portrait of the German-Jewish Epoch (1743-1933)" (ed.
Picador, 464 págs., US$ 16, R$
28), de 2003, cuja melhor tradução seria "O Pior de Tudo
-Um Retrato da Época Germano-Judaica".
Conjuntura recente
Depois de analisar a história
dessas relações, recuando, por
vezes, ao início do Sacro Império Germânico (meados do século 15) até chegar à ascensão
de Hitler ao poder, Elon afirma
que há poucas razões para mergulhar na história alemã, retrocedendo até Lutero -notório
anti-semita- para explicar o
êxito de Hitler.
Seu êxito foi possível pelo
caos e a desintegração do governo que se seguiram à crise
econômica de 1929 e como resultado da complacência política de conservadores e comunistas para com o "fenômeno
grotesco e transitório" do nazismo. Em outras palavras, a
conjuntura econômica e decisões políticas desastrosas abriram caminho para a implantação do Terceiro Reich e a perpetração do genocídio que o regime trazia em germe.
Mas o nazismo foi também
um produto do passado, ainda
que não um inevitável produto,
pela conjunção de uma série de
fatores de natureza diversa: entre eles o autoritarismo, o militarismo, o racismo, o fracasso
da revolução democrática de
1848, a derrota na Primeira
Guerra Mundial, a hiperinflação dos primeiros anos 1920, a
já referida crise econômica
aberta em 1929.
Esses traços socioculturais e
o rumo dos acontecimentos potenciaram o impacto das teorias conspirativas da história,
em que os "grandes conspiradores", na realidade, foram os
bodes expiatórios das vicissitudes de um país.
Tragédia inevitável
Ressalve-se, porém, que os
fatores negativos não foram os
únicos constitutivos da história
alemã, a ponto de podermos falar em duas trilhas paralelas
que às vezes se aproximaram, a
do Iluminismo e a do racismo
militarista e autoritário.
Foi a cultura alemã iluminista -que deu origem a figuras
como Kant, Lessing, Goethe e
tantos outros- um elemento
essencial da identificação dos
judeus alemães com o país onde nasceram, não obstante o
desprezo e a discriminação de
que foram vítimas ao longo dos
séculos.
Seguindo adiante, não é demais indagar se a ascensão de
Hitler ao poder trazia em seu
bojo, inevitavelmente, a "solução final" para a chamada questão judaica. A resposta é afirmativa. Já em 1919, Hitler demonstrava sua obsessão com o
problema, como lembra o historiador inglês Ian Kershaw em
"Hitler - 1889-1936 - Hubris",
(W.W. Norton, 1.210 págs., US$
25, R$ 44), de 1999.
Numa carta de setembro daquele ano, quando já era visto
como um especialista no assunto, o futuro führer dizia que
o "anti-semitismo racional", de
qualidade superior ao "anti-semitismo emotivo", levaria à sistemática supressão dos direitos
dos judeus, tendo como inabalável objetivo final sua eliminação.
Durante a década de 1920, os
judeus foram responsabilizados pela derrota na Primeira
Guerra Mundial, pela crise econômica de 1922-1923 e pela implantação da brilhante, mas politicamente frágil, República de
Weimar (1919-1933).
Ao chegarem ao poder, Hitler
e seus acólitos trataram de levar à prática seu propósito de
"remoção" do problema judaico, que se encaixava numa estratégia política correspondente aos sentimentos de frustração, ressentimento e racismo,
característicos de ponderável
parcela da população alemã no
pós-guerra.
Mas a inevitável "solução final" não foi um artefato pronto
e acabado desde a instalação do
regime nazista.
Nos primeiros tempos, mais
presente na cabeça de figuras
como Himmler -chefe da Gestapo- e Heydrich -o "protetor" da Boêmia e da Morávia
(Tchecoslováquia)-, seguiu
um curso de radicalização que
passou das propostas de expulsão dos judeus para Madagáscar ou para o Leste Europeu à
política dos "guetos" e, por fim,
à liqüidação em massa nos
campos de extermínio.
As questões aqui discutidas
são hoje de natureza historiográfica, embora venham acompanhadas de não poucas emoções. Para os judeus da Europa
e para os judeus alemães em
particular, a decisão do que fazer diante do ascenso do nazismo teve um conteúdo vital, na
estrita acepção da palavra.
Os destinos dessa gente variaram: os mais ricos, os mais
intelectualizados, os que tinham melhores conexões no
exterior partiram para o exílio;
os mais pobres, os mais velhos,
os que não quiseram acreditar
na dimensão do horror ficaram
na Europa e tiveram o fim trágico bem conhecido.
BORIS FAUSTO é historiador e preside o conselho acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura
Internacional), da USP. É autor de "A Revolução de 1930" (Companhia das Letras). Escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais! .
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