São Paulo, domingo, 11 de novembro de 2007

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Solução parcial

Historiografia ainda se debruça sobre múltiplas hipóteses para tentar explicar o que deu origem ao nazismo

BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA

Em pleno século 21, apesar dos novos problemas, os fantasmas do século 20 continuam presentes. Dentre eles, o do regime nazista e seu cortejo de horrores, em que o Holocausto figura com destaque. A propósito desse meteórico genocídio que, em poucos anos, produziu mais de 5 milhões de mortos, uma questão central permanece em aberto: o Holocausto era evitável ou estaria inscrito na história da Alemanha, como o ovo da serpente que iria quebrar a casca, surgindo por inteiro, mais cedo ou mais tarde?
A meu ver, a interpretação mais sensata é a que lança um foco de luz mais intenso na história alemã posterior à Primeira Guerra Mundial (1914-18), sem abandonar elementos do passado mais distante.
Essa posição é fundamentada, com muita clareza, pelo jornalista e autor israelense Amos Elon, num livro com o expressivo título de "The Pity of It All - A Portrait of the German-Jewish Epoch (1743-1933)" (ed. Picador, 464 págs., US$ 16, R$ 28), de 2003, cuja melhor tradução seria "O Pior de Tudo -Um Retrato da Época Germano-Judaica".

Conjuntura recente
Depois de analisar a história dessas relações, recuando, por vezes, ao início do Sacro Império Germânico (meados do século 15) até chegar à ascensão de Hitler ao poder, Elon afirma que há poucas razões para mergulhar na história alemã, retrocedendo até Lutero -notório anti-semita- para explicar o êxito de Hitler.
Seu êxito foi possível pelo caos e a desintegração do governo que se seguiram à crise econômica de 1929 e como resultado da complacência política de conservadores e comunistas para com o "fenômeno grotesco e transitório" do nazismo. Em outras palavras, a conjuntura econômica e decisões políticas desastrosas abriram caminho para a implantação do Terceiro Reich e a perpetração do genocídio que o regime trazia em germe.
Mas o nazismo foi também um produto do passado, ainda que não um inevitável produto, pela conjunção de uma série de fatores de natureza diversa: entre eles o autoritarismo, o militarismo, o racismo, o fracasso da revolução democrática de 1848, a derrota na Primeira Guerra Mundial, a hiperinflação dos primeiros anos 1920, a já referida crise econômica aberta em 1929.
Esses traços socioculturais e o rumo dos acontecimentos potenciaram o impacto das teorias conspirativas da história, em que os "grandes conspiradores", na realidade, foram os bodes expiatórios das vicissitudes de um país.

Tragédia inevitável
Ressalve-se, porém, que os fatores negativos não foram os únicos constitutivos da história alemã, a ponto de podermos falar em duas trilhas paralelas que às vezes se aproximaram, a do Iluminismo e a do racismo militarista e autoritário.
Foi a cultura alemã iluminista -que deu origem a figuras como Kant, Lessing, Goethe e tantos outros- um elemento essencial da identificação dos judeus alemães com o país onde nasceram, não obstante o desprezo e a discriminação de que foram vítimas ao longo dos séculos.
Seguindo adiante, não é demais indagar se a ascensão de Hitler ao poder trazia em seu bojo, inevitavelmente, a "solução final" para a chamada questão judaica. A resposta é afirmativa. Já em 1919, Hitler demonstrava sua obsessão com o problema, como lembra o historiador inglês Ian Kershaw em "Hitler - 1889-1936 - Hubris", (W.W. Norton, 1.210 págs., US$ 25, R$ 44), de 1999.
Numa carta de setembro daquele ano, quando já era visto como um especialista no assunto, o futuro führer dizia que o "anti-semitismo racional", de qualidade superior ao "anti-semitismo emotivo", levaria à sistemática supressão dos direitos dos judeus, tendo como inabalável objetivo final sua eliminação. Durante a década de 1920, os judeus foram responsabilizados pela derrota na Primeira Guerra Mundial, pela crise econômica de 1922-1923 e pela implantação da brilhante, mas politicamente frágil, República de Weimar (1919-1933).
Ao chegarem ao poder, Hitler e seus acólitos trataram de levar à prática seu propósito de "remoção" do problema judaico, que se encaixava numa estratégia política correspondente aos sentimentos de frustração, ressentimento e racismo, característicos de ponderável parcela da população alemã no pós-guerra.
Mas a inevitável "solução final" não foi um artefato pronto e acabado desde a instalação do regime nazista. Nos primeiros tempos, mais presente na cabeça de figuras como Himmler -chefe da Gestapo- e Heydrich -o "protetor" da Boêmia e da Morávia (Tchecoslováquia)-, seguiu um curso de radicalização que passou das propostas de expulsão dos judeus para Madagáscar ou para o Leste Europeu à política dos "guetos" e, por fim, à liqüidação em massa nos campos de extermínio.
As questões aqui discutidas são hoje de natureza historiográfica, embora venham acompanhadas de não poucas emoções. Para os judeus da Europa e para os judeus alemães em particular, a decisão do que fazer diante do ascenso do nazismo teve um conteúdo vital, na estrita acepção da palavra.
Os destinos dessa gente variaram: os mais ricos, os mais intelectualizados, os que tinham melhores conexões no exterior partiram para o exílio; os mais pobres, os mais velhos, os que não quiseram acreditar na dimensão do horror ficaram na Europa e tiveram o fim trágico bem conhecido.


BORIS FAUSTO é historiador e preside o conselho acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional), da USP. É autor de "A Revolução de 1930" (Companhia das Letras). Escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais! .


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