São Paulo, domingo, 11 de novembro de 2007

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"Eu sou Deus"

Sai na Inglaterra o 3º volume da monumental biografia de Picasso escrita por John Richardson, que cobre de 1917 a 1932

Associated Press/Dora Maar/Museu Picasso
Foto no Museu Picasso, em Paris, mostra o artista espanhol em praia não identificada, em 1937

TOM ROSENTHAL

A monumental biografia de Picasso [1881-1973] escrita por John Richardson torna pequenos em tamanho -e, possivelmente, no tempo dedicado à preparação- alguns trabalhos biográficos clássicos, como o "Marcel Proust" de George Painter, o "Berlioz" de David Cairns e o "Matisse" de Hilary Spurling.
Richardson, como os demais biógrafos mencionados, é inglês, e comprova a impressão de que os britânicos em geral superam os demais europeus -e especialmente os franceses- no que tange à produção de trabalhos detalhados sobre a vida e a obra dos gênios.
O primeiro volume da biografia de Picasso por Richardson foi publicado em 1990, e o segundo em 1997. "A Life of Picasso - The Triumphant Years, 1917-32" [Uma Vida de Picasso - Os Anos de Triunfo, 1917-32, Knopf, 512 págs., US$ 40, R$ 70], o terceiro dos quatro tomos projetados para série, levou mais uma década para ser publicado.

Vida social intensa
O terceiro volume começa com a viagem de Picasso e Jean Cocteau a Roma, em 1917, para trabalhar nos cenários de "Parade", um balé de Serguei Diaghilev, e com o encontro entre Picasso e uma das principais bailarinas dos Ballets Russes, Olga Khokhlova.
Ela foi provavelmente a primeira mulher bonita a resistir aos avanços do pintor e se manteve resoluta em sua defensiva até que tivesse garantia de que se tornaria a primeira senhora Picasso. O livro se encerra com as primeiras grandes retrospectivas do trabalho do pintor, em Paris e depois em Zurique, em 1932, quando ele já havia completado 50 anos.
Além de Cocteau e do principal bailarino e coreógrafo do grupo de Diaghilev, Léonid Massine -que, quando não estava satisfazendo os desejos de Diaghilev, era, como Picasso, um casanova compulsivo-, o grupo incluía Igor Stravinsky e sua ocasional amante Coco Chanel e, talvez para surpresa de alguns, o café society dos anos 1920.
Parece difícil acreditar que um gênio como Picasso dedicasse tanto tempo à princesa de Polignac (herdeira da fortuna das máquinas de costura Singer) e a diversas duquesas e condessas, seus maridos e seus dolorosamente detalhados bailes de máscaras e almoços intermináveis. É impossível não imaginar como é que Picasso conseguia, além disso, manter uma produção tão imensa e tão variada, sustentar casos amorosos com tantas mulheres e ainda recorrer a bordéis para satisfazer suas necessidades ocasionais de variação.
Enquanto Picasso se manteve apaixonado por Olga, ela serviu de modelo para muitos de seus quadros e continuou a fazê-lo mesmo depois que o pintor se entediou com o comportamento cada vez mais pretensioso de sua mulher. Picasso, com ironia mortal, fingiu assumir o papel de chefe de família burguês enquanto se deixava rejuvenescer pela descoberta de Marie-Thérèse Walter, que tinha então 17 anos. Marie-Thérèse era a personificação do ideal curvilíneo dos prazeres do pintor e uma amante ideal ou até perfeita, já que não aspirava de forma alguma a se tornar a segunda senhora Picasso.

Giacometti e Moore
Foi em seus anos de obsessão por Marie-Thérèse que Picasso primeiro arriscou -e depois aprendeu a dominar- as técnicas de escultura, em seu estúdio no castelo de Boisgeloup. Como diz o autor, ele antecipou tanto os contornos adelgaçados de Giacometti quanto as formas divididas e monumentais de Henry Moore.
Embora seja evidente que Richardson idolatra Picasso, seu trabalho não é uma hagiografia. O biógrafo trata com franqueza os altos e baixos nos relacionamentos entre o artista e seus rivais, especialmente Braque, Matisse e Brancusi. Deixa claro que o pintor, priápico quase a ponto da satiríase, tratava de maneira sádica as suas mulheres e os homens homossexuais que se apaixonavam desesperadamente por ele, como [o pintor e poeta francês] Max Jacob e Jean Cocteau.
Revela, também, a natureza profundamente supersticiosa do artista, sua religiosidade, sua generosidade para com as pessoas que enfrentavam dificuldades e seu medo de doenças e da morte.

Sol e praia
O Picasso que Richardson retrata cultua o sol, e em nenhum outro lugar se sente mais feliz do que nas praias mediterrâneas que costumava visitar e incluir em seus quadros.
Página após página, há exemplos da intransigência de Picasso, nascida primordialmente de sua imensa inteligência, que propiciava a ele não só um diferencial criativo mas também sabedoria mundana e política consideráveis, o que sempre permitiu que saísse em vantagem de seus relacionamentos com marchands, editores e companheiros -que, para a surpresa de ninguém, pretendiam se aproveitar seu talento.
O charme do pintor é revelado de maneira quase palpável, bem como seu encanto hipnótico. Richardson não hesita em corrigir erros e teimosias do trabalho alheio -e parece ter lido tudo que já foi escrito sobre Picasso. Quando o faz, age com habilidade, de forma breve e sempre sardônica.
O biógrafo é especialmente mordaz quanto à monstruosamente solipsista [escritora norte-americana] Gertrude Stein e deixa claro que não foi Gertrude, mas seu irmão Leo, que aderiu primeiro ao clã dos entusiastas do pintor. Os julgamentos e análises de Richardson me parecem sempre precisos e são expressos com uma refrescante ausência de jargão artístico.
Talvez o epílogo seja o capítulo mais intrigante, pois oferece um retrato verbal em miniatura do primo de Picasso, o general Juan Picasso González, genuíno herói militar e moral. O trecho precede um resumo magistral das origens da Guerra Civil Espanhola e mostra como os direitistas da Falange tentaram atrair o apoio de Federico García Lorca e de Picasso. O poeta, como sabemos, foi executado pelos fascistas. Em seguida, tentaram seduzir Picasso, mas fracassaram horrivelmente ao afirmar, em público, que o artista, essencialmente apolítico, apoiava sua causa.
Essa insensatez fez de Picasso um partidário instantâneo da causa republicana, o que ajudou a preparar o terreno para "Guernica" e forneceu a Richardson a amostra apetitosa sobre o relato quanto às origens da obra-prima que com certeza abrirá o próximo volume.
As palavras finais do livro são uma citação de uma conversa de Picasso com um amigo espanhol: "Deus, na verdade, é outro artista... Como eu... Eu sou Deus, eu sou Deus, eu sou Deus".


Este artigo foi publicado no "Independent". Tradução de Paulo Migliacci.


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