São Paulo, domingo, 11 de dezembro de 2005

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Um dos mais importantes romances latino-americanos do século 20 e precursor do realismo mágico, "Os Rios Profundos", de José María Arguedas, narra a tensão entre nativos e colonizadores no Peru da época colonial

A hierarquia das pedras

LUIZ COSTA LIMA
COLUNISTA DA FOLHA

Desconheço algum romance que, sem resvalar para o documento, revele melhor que "Os Rios Profundos" a superposição de uma sociedade vencedora sobre a vencida. O peruano José María Arguedas [1911-69] já o mostra por seu capítulo de abertura. As casas dos descendentes dos colonizadores acrescentam um andar de estilo espanhol à base inca.
A catedral de Cuzco é toda ela de caráter cristão, mas edificada com pedras lapidadas pelos antigos incas. E o sino, cujas badaladas são ouvidas nos povoados vizinhos, é fundido com o ouro que os espanhóis haviam surrupiado. E aqui aponta o núcleo de todo o relato: seu som propaga a fé comum a todos os descendentes dos conquistadores, brancos "hacendados", índios, que vivem como se as "encomiendas" se mantivessem, e "cholos" (mestiços).


Um destaca-mento do Exército prende, espanca e mata as insurrectas


O catolicismo, em que se infiltravam as crenças mágicas, é o tecido simbólico que une uma sociedade decomposta. Isso não significa que os sacerdotes sejam verdadeiros mediadores. Pois sua postura é bastante clara: seus sermões favorecem a manutenção da ordem, isto é, a submissão ao poder dos brancos, e seus colégios infundem a preservação dos mesmos valores. Distinguem-se apenas dos que de fato servem por haverem sido treinados para a "compreensão". Aquele que se poderia tomar como mediador é Ernesto, o narrador.
Mas ele o é sob sua condição de menino, filho de um advogado errante, que o levara a entrar em contato com os usos e valores dos descendentes dos índios, que domina o quéchua e o castelhano e é internado em um colégio de padres. Mediador "sui generis", pois, por um lado, não tem idade para rejeitar o que não aceita, sobretudo se envolto na retórica brando-autoritária em que é mestre o padre diretor, mas tampouco para esconder sua flagrante preferência pelos espoliados. A sua é uma mediação por absorção e não-interventora, que só poderia ser eficaz em um campo de efeitos lentos: o campo do romance. Não por acaso "Os Rios Profundos" é considerada a obra que melhor capta a sensibilidade dos povos pré-colombianos. E isso nos leva a assinalar a posição do livro na tradição latino-americana.
É sabido que tanto na América hispânica como no Brasil a literatura tivera um caráter documental. Para que o escritor se distinguisse de seus pares europeus, deveria ter uma matéria própria. Esta era a natureza exuberante, à que se acrescentava a descrição da sociedade (como o nosso Machado escapou dessa camisa-de-força é um enigma maior que o de Capitu).
A grandeza do romance de Arguedas se inicia em haver ele também escapado do literária e politicamente correto e de, indiretamente, mostrar que o que se chamará de "realismo mágico" mergulhava nos restos da concepção de mundo das destroçadas sociedades nativas.
Um exemplo do capítulo de abertura serve de indicação: lembrando-se das letras em quéchua de canções incas, Ernesto se pergunta se seria gramaticalmente possível falar-se em "pedra de sangue" ou "pedra de sangue fervente". As metáforas deixam de ser artifícios literários para formularem o que descritivamente seria pouco ou nada eficaz. A pedra, índice da construção nativa, se embebe do sangue dos descendentes dos que a trabalhavam. O que equivale a dizer: a crueldade é o que não se vê na luz irradiante que transpassa o percurso do menino narrador.
A crueldade impera tanto no mundo externo quanto no interno ao colégio; tanto entre senhores, índios e colonos como entre os colegas de Ernesto. No colégio, educa-se para a preservação da ordem. Embora a grande maioria dos alunos seja de filhos dos senhores, nestes se distinguem os tímidos, os medrosos e os brutamontes. Há, por cima, os mais sensíveis aos valores religiosos, que levam um dos alunos mais velhos à autoflagelação expiatória, e, sobretudo, o tabu do sexo; crueldade e tabu que provocam a violentação coletiva de uma demente auxiliar nas tarefas mais modestas do colégio.
A seu lado, o mesmo tabu conduz às explosões de lirismo, expressas nas cartas amorosas dirigidas às moças dos sobrados. Por sua capacidade de lidar com as palavras, Ernesto se torna amigo de um dos filhos dos fazendeiros, dirigindo em seu nome cartas enamoradas. Enquanto as forja, Ernesto pensa que não poderia escrever para as suas próprias eleitas, porque elas não saberiam lê-las.
Mas a amizade com Antero terá um nítido limite. Em um instante de tensão, Antero lhe declara que, "se os índios se rebelassem, eu iria matando um a um". Se Ernesto se espanta, é simplesmente "porque não é dono". A cena referida já supõe o segundo episódio capital do romance. Como o sal era privilégio dos fazendeiros, inesperadamente as mulheres do povoado se revoltam e saqueiam o depósito em que o sal se acumulava. Ernesto está na praça e se incorpora à rebelião. Ela se limita ao saque e à distribuição da substância entre os miseráveis. A resposta da ordem será desproporcional.
Pouco depois, um destacamento do Exército é deslocado para o povoado; prende as insurrectas, espanca-as, humilha-as diante de seus maridos e mata-as. Os populares fogem e não reagem. A chefa da rebelião, contudo, escapa e se converte em mito da insurreição apenas sonhada. Cabe ao padre diretor o exercício de uma retórica que propicia lágrimas e arrependimento entre os humildes.

Mediador impotente
O enfrentamento desigual lembra episódio a tornar-se famoso de "Cem Anos de Solidão" (lembra e mostra como Arguedas ainda prepara a narrativa de horror na ficção latino-americana). O episódio se dilui por si mesmo. A ordem é restabelecida. Ernesto sofre uma reprimenda moderada, ao passo que os colegas se reúnem aos oficiais e aos filhos do comandante que flertam com as senhoritas do povoado. Ernesto é o mediador impotente, o que não encontra apoio em lugar nenhum. Impotente, mas alerta, é ele que propaga a notícia, a princípio negada, de que o tifo grassa nas fazendas e povoados vizinhos. Quando isso lhe é informado, o diretor desmente.
Quando não mais o pode, avisa aos pais, que retiram os filhos do colégio. Nele, ficarão apenas os alunos pobres. A tropa remanescente não consegue mais deter as levas dos contaminados, que ameaçam invadir o povoado. Os padres os esperam, para abençoá-los antes de morrer.
Mas, embora autorizado a partir, Ernesto não teme a morte, se não que, inconscientemente, a procura. Sai dos muros do colégio para saber o que se passa. Conversa com os soldados e tem confirmada a informação de que os contaminados se aproximam e que ele tem a autorização para escapar. Mas não o faz. Não é bem a vida que o cativa, se não que acumular material para a narrativa que, sem saber, nele se prepara.
Publicado em 1958, a partir de experiências que se pode supor semi-autobiográficas, "Os Rios Profundos" antecipam em 11 anos o suicídio de Arguedas.

Luiz Costa Lima é crítico e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Pontifícia Universidade Católica (RJ).

Os Rios Profundos
320 págs., R$ 46,50
de José María Arguedas. Tradução de Josely Vianna Baptista. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 32, CEP 04532-002, SP, tel. 0/xx/ 11/3707-3500).



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