São Paulo, domingo, 12 de janeiro de 2003

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+ cinema

Diretores excêntricos, o francês Jacques Tati e o português Manoel de Oliveira criaram, com estilos bem diferentes, filmografias das mais expressivas do século 20

Entre o satírico e o meditativo

Divulgação
Cena do filme "Playtime", de Jacques Tati


Walnice Nogueira Galvão
especial para a Folha

Na avalanche de lixo com que a indústria cultural nos soterra, fulguram as pepitas de dois cineastas excêntricos, ultimamente revalorizados: Jacques Tati (1909-1982) e Manoel de Oliveira (1908). Cada um a seu modo, ambos destoam das correntes dominantes. Quando Jacques Tati surgiu, e mesmo em seus anos de fastígio, foi tido por nostálgico, até passadista. Em parte, devido aos recursos de cinema mudo de que se valeu, como a mímica pletórica contrapondo-se à ausência da fala, sobre fundo de um excesso de ruídos. É ver como a contemporaneidade pode ser míope. Hoje, assistindo-se a seus escassos seis filmes de uma vez só, inclusive os curtas-metragens, é que se pode constatar seu cunho profético. Devemos o prazer à fundação "Les Films de Mon Oncle", que os resgatou e restaurou, quando estavam às vésperas de verem caducar os direitos de exibição. Em nova roupagem, estrearam no Festival de Cannes de 2002, honrando os 20 anos de morte do autor.

Pragas apocalípticas
A integral dos filmes compõe uma sátira da modernidade, é claro; mas cada um deles se concentra numa das pragas apocalípticas do período. Em "Carrossel da Esperança" (1949) é a velocidade, ideal de que o carteiro ciclista provinciano se impregna, ao ver documentários vindos dos Estados Unidos. Passará a repetir como um mantra a palavra-talismã: "Rapidité, rapidité!", enquanto se atira numa fieira de desastres. Em "As Férias de M. Hulot" (1953) é o turismo, ainda numa zombaria mansa, pois o chumbo grosso virá em "Playtime" (1967), que tampouco poupa o urbanismo ou a arquitetura metropolitana, impessoal e asséptica, onde não se distingue um hospital de um aeroporto. Em "Traffic" (1970) -nem é preciso dizer- o alvo é o flagelo em que se tornou o automóvel e seu cortejo de calamidades. No conjunto de películas, a americanização de nossos horizontes, com seu intuito descaracterizador, encontra-se anotada com detalhes, nada ficando a dever aos diagnósticos de Pierre Bourdieu. Raros filmes, afora "Tempos Modernos", de Charles Chaplin (1936), ofereceram uma tal análise, de dar frio na espinha, dos rumos para os quais o século 20 nos levaria. Há pouco foi exibida aqui a cópia restaurada de "Meu Tio" (1958), no qual o protagonista, vindo de um universo alternativo, fornece contraste para a enfadonha vida que o sobrinho leva, ao lado de pais que chafurdam em conforto burguês. Simboliza esse ideal a casa modernista onde vivem, em que tudo é automático e esterilizado. Mesmo os sons da casa são desalmados, indo desde o crepitar de saltos femininos até o gargarejar do repuxo em forma de peixe, só ligado quando alguma visita se anuncia e logo desligado se ela não for de cerimônia. Já o tio é marginal e inadaptado, negociando numa carrocinha puxada a cavalo roupas velhas, sobras e detritos da sociedade de consumo. Transita por espaços também à margem -os terrenos baldios, as beiradas e várzeas, o lado de lá das cercas-, os quais percorre acolitado pela criançada e pela cachorrada, todos felicíssimos.

Engenhocas domésticas
O desengonçado Hulot, em seu jeito passivo e inexorável, é subversivo: aonde chega, a catástrofe vem a galope, as mangueiras da fábrica viram invólucros de salsicha, as engenhocas domésticas se revoltam e se precipitam para a pane ou o estilhaçamento. Primam a mímica e a expressão corporal, enfatizando a canhestrice de Hulot, o corpanzil (1,92 m) com uma cabecinha lá em cima, o andar em que cada passo recua antes de ser desferido, os gestos bruscos e retilíneos. Sublinhados pelo chapeuzinho, as calças de pula-brejo, as meias listradas, o guarda-chuva que cutuca e engancha em vez de proteger. Assim postulando o contrário, e ao mesmo tempo a crítica, da eficiência tão estimada no mundo em que vivemos.

Carreira nada ortodoxa
Bem diferente é o portuense Manoel de Oliveira, que ganhou renome retratando os camponeses do torrão natal, às margens do rio Douro. Seu primeiro documentário, "Douro Faina Fluvial" (1931), tornou-se um clássico de cinemateca. Daí em diante, a par com o seu primeiro filme de ficção, "Aniki-Bóbó" (1942), fincaria o padrão de uma carreira que nada teria de ortodoxa. Tudo isso foi relembrado há pouco, quando o cineasta, aos 93 anos, recebeu a Legião de Honra, conferida pelo presidente da República da França, na presença de outro presidente, o de Portugal. A França o homenageou em grande estilo. O Centre Georges Pompidou (Beaubourg) ofereceu durante dois meses a mais completa retrospectiva de sua obra. O curador Jacques Parsi recuperou peças extraviadas, restaurou outras e preparou um catálogo completíssimo, lançado na ocasião. Curiosa pela intransigência é a trajetória deste artista. Sua vocação se manifestou cedo, nos anos 30 e 40. Entretanto, molestado pela censura salazarista, refratária aos projetos que propunha, cedo desistiu de sua arte. Prezado pelos cinéfilos, só três décadas mais tarde, após a Revolução dos Cravos, em 1974, voltaria a filmar, já entrado nos 60 anos. Desde então, foi uma obra-prima atrás da outra, como se tudo aquilo estivesse represado na imaginação criadora. Seus admiradores compreendem o público -exíguo, porém seleto- de festivais e pequenas salas, especialmente na Europa, nos EUA e até no Brasil. Junto de tais fiéis, Manoel de Oliveira rivaliza com os mais requintados realizadores do momento, como iranianos (Makhmalbaf pai e filha, Kiarostami, Majid Majidi) e chineses (Chen Kaige, Zhang Yimou, Ang Lee). Não se prestando a fazer concessões, manteve-se ele mesmo fiel a esse público e, coisa rara, nunca se entregou a um cinema massificado.

Não baratear a arte
Mais raro ainda é que os colegas de profissão o descobrissem, como [o ator" Marcello Mastroianni [1924-96", cuja última aparição se deu numa de suas películas, e sua filha Chiara Mastroianni. Catherine Deneuve atuou em mais de uma, inclusive na nova produção luso-francesa, "Vou para Casa" ("Je Rentre à la Maison", 2001), na qual contracena com John Malkovich e Michel Piccoli. Este, num papel e num desempenho extraordinários, personifica um visível alter ego do diretor. Brinda-nos com uma meditação sobre a velhice e sobre o cair do pano na vida de um artista que se recusa a baratear sua arte. Vemo-lo encenando no teatro "Le Roi Se Meurt", de Ionesco, e "A Tempestade", de Shakespeare, bem como topando fazer uma adaptação para o cinema do "Ulisses", de Joyce, enquanto recusa um papel ridículo numa série de TV.
Na noite de gala no Beaubourg, o cineasta seria saudado pelo papa do documentário francês, Jean Rouch. Completaria a festa a exibição da autobiografia "Porto da Minha Infância", na qual, entre outras molecagens, o diretor põe em cena, numa vinheta, Fernando Pessoa flanando, envergando sua gabardine. Licença poética, porque o vate palmilhava as ruas de Lisboa, e não do Porto.


Walnice Nogueira Galvão é professora titular de literatura na USP e autora de, entre outros, "Guimarães Rosa" (Publifolha) e "No Calor da Hora" (ed. Ática).


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