São Paulo, domingo, 12 de fevereiro de 2006

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MENOS É MAIS

Pervez Masih - 5.fev.2006/Associated Press
Integrantes de grupo religioso paquistanês queimam bandeira da Dinamarca em Hyderabad; abaixo, uma das 12 charges publicadas pelo jornal "Jyllands-Posten"


LÍDERES MUNDIAIS INTENSIFICAM O IMPACTO DAS MINORIAS RADICAIS DENTRO DAS RELIGIÕES

DA REDAÇÃO

Enquanto um dos lados do atual conflito se enxerga como civilização, o outro se vê como religião, o que dificulta a definição do tipo de choque vivido atualmente. Apenas minorias islâmicas e ocidentais são hostis umas às outras, mas a ação dessas minorias se radicaliza, levando a pensar num conflito muito maior, envolvendo toda a sociedade de cada um dos lados envolvidos. Isso é o que defende o escritor norte-americano Jack Miles, ganhador do Prêmio Pulitzer em 1996 por "Deus - Uma Biografia" e autor também de "Cristo" (ambos pela Cia. das Letras).


Aqueles que lideram esses protestos desejam ativamente definir seus inimigos como cristãos e judeus


Em entrevista à Folha por e-mail, Miles apontou um fortalecimento do fundamentalismo nas diferentes religiões devido ao sofrimento de muitas pessoas no mundo contemporâneo. Seja no islã, no catolicismo -como visto na primeira encíclica de Bento 16, "Deus É Amor"-, no protestantismo do governo puritano de George W. Bush ou outros credos, diz Miles.
"Fellow" da MacArthur Foundation, Miles é um ex-seminarista formado na Pontifícia Universidade Gregoriana (Itália) e na Universidade Hebraica de Jerusalém, com doutorado em idiomas do Oriente Médio em Harvard. Para ele, o excesso de religiões é uma das causas de muitos dos conflitos gerados em todo o mundo, embora as considere fundamentais para a sobrevivência da humanidade. "Temos que conviver com a permanência das religiões em vez de sonhar o sonho tolo de deixá-las completamente para trás." (DANIEL BUARQUE)
 

Folha - O sr. acha que os protestos e mortes contra a publicação das charges do profeta Muhammad configuram um choque de civilizações?
Jack Miles -
Um choque de algum tipo está claramente a caminho. Mas um dos lados desse conflito se enxerga como civilização, enquanto o outro se vê como religião. Então sua pergunta suscita imediatamente uma outra: Estamos vivenciando um choque de religiões ou um choque de civilizações? Os protestos violentos em várias partes da "ummah", a comunidade islâmica no mundo, incluíram o incêndio de igrejas, o canto de hinos anti-semitas e anticristãos e demonstrações caóticas em bairros cristãos.
Aqueles que lideram esses protestos desejam ativamente definir seus inimigos como cristãos, primeiramente, e judeus, em segundo lugar. A interpretação deles é sem dúvida ajudada pelo fato coincidente de haver uma cruz na bandeira da Dinamarca, que eles estão queimando. Mas o premiê dinamarquês, hoje, não defende sua nação como cristã, mas como pluralista, tolerante e nem um pouco oposta ao islã ou a qualquer outra religião.
Implicitamente, ele quer definir seu inimigo como integralista, intolerante e oposto a todas as religiões que não a dele.
Quão grande é esse choque, independentemente dos diferentes conceitos que pode vir a ter? Muitos na "ummah" querem para si e desejam estender a outros as liberdades civis institucionalizadas pelo Ocidente; somente uma minoria deseja ativamente o oposto.
Muitos no Ocidente praticam uma religião ou, se não o fazem, dificilmente ironizam os que o fazem; só uma minoria é ativamente hostil a religiões, seja ao islã ou a qualquer outra. Mas as minorias importam. E determinadas ações de líderes mundiais podem ter o efeito de intensificar o impacto delas.

Folha - As grandes religiões estão se voltando para seus fundamentos?
Miles-
Não acho que o papa Bento 16 e o presidente Bush devam ser mencionados numa mesma frase. João Paulo 2º foi contrário à invasão do Iraque, e duvido que Bento 16 a apóie. Sua primeira encíclica é compatível com suas lamentáveis opiniões sobre o amor homossexual, controle artificial de natalidade e coisas do tipo.
Mas essas questões não estão diretamente mencionadas na encíclica, que, principalmente, tenta ligar a ética pessoal do amor à ética social do amor -um esforço que acredito louvável. Em contraste, as políticas de George W. Bush são agressivas no exterior e avaras em casa.

Folha - Existe a possibilidade de evoluirmos para um conflito generalizado motivado pela religião?
Miles -
Apesar daquilo que acabei de dizer, eu concordo que dentro do catolicismo, do protestantismo, do judaísmo e do hinduísmo, assim como no islã, existe um amplo movimento que busca privilegiar um suposto fundamentalismo. A forma antiga é julgada pura; a posterior é vista como corrupta. O impulso de julgar o presente momento como um declínio de algum estado anterior mais feliz é universal.
Por que deveria ser particularmente intenso agora? Talvez porque um moderno e secularizado impulso tenha acompanhado (é difícil afirmar que tenha "produzido") um mundo em que tantas pessoas sofrem de forma tão severa.

Folha - As religiões continuarão a ser uma parte importante da vida das pessoas? Como irão evoluir?
Miles -
As tensões mais severas impostas em nosso mundo -a globalização econômica e a destruição ambiental- não se reduziriam em nenhum grau se todas as religiões desaparecessem da noite para o dia e mundo fosse completamente secularizado. Imagino essa possibilidade como forma de apontar que a evolução da sociedade a que você se refere parece, por si mesma, ser capaz de levar a humanidade a sua própria extinção.
O desafio à religião não pode ser, então, apenas acompanhar a evolução até a extinção. Ele precisa se encaminhar para a correção do sentido da evolução até a preservação da humanidade.
Ninguém pode prever se a religião fará isso assim como ninguém pode prever se a sociedade, empregando meio diferentes da religião, fará a tempo as correções necessárias.

Folha - Como a busca pela pureza nas religiões se reflete nas pessoas?
Miles -
Já se considerou por muito tempo que o desaparecimento das religiões era uma mera questão de tempo. A psicologia evolucionária, de forma mais neutra e genuína, sugere que de algum modo essa forma de comportamento humano extremamente durável serviu, até o momento, à sobrevivência da espécie. Um gosto por alimentos doces teve o mesmo papel por milênios, quando as comidas doces eram escassas. Agora que ela é abundante, temos um problema mundial de obesidade. Ocorre algo parecido na religião.
Ela também pode um dia ter preservado o que hoje ameaça destruir. Mas podemos pensar que -assim como controlar a quantidade de doces que comemos não precisa necessariamente negar seu apelo- temos que conviver com a permanência das religiões em vez de sonhar o sonho tolo de deixá-las completamente para trás.

Folha - O puritanismo na política norte-americana está sendo imposto pelo governo ou é um reflexo da sociedade? Ele afeta a democracia? Afeta as relações internacionais?
Miles -
Precisamos lembrar que George W. Bush ficou em segundo lugar, e não primeiro, na eleição de 2000. Seu oponente, Al Gore, teve mais votos que ele. Os EUA são um país altamente dividido. Bush conseguiu um importante apoio dos conservadores cristãos, mas até agora teve pouco impacto sobre as opiniões religiosas dos americanos. Mesmo suas indicações para a Suprema Corte não provocaram até agora nenhuma revisão real do lugar da religião na vida nacional do país.
As relações internacionais, infelizmente, são outra questão. Suas freqüentes referências a Deus -e de membros de seu governo- e a Jesus tiveram o efeito, entre os muçulmanos, de fazer com que aquilo que o presidente chama de "guerra ao terror" pareça "guerra ao islã".


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