São Paulo, domingo, 12 de março de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

No centenário do seu nascimento, o sociólogo que formulou uma das mais vigorosas interpretações do Brasil permanece um problema para os pesquisadores devido a sua atitude política conservadora, que o levou a colaborar com o regime militar de 64
Céu & inferno de Gilberto Freyre

Fundação Gilberto Freyre
O sociólogo Gilberto Freyre (1900-1987), que faria cem anos na próxima quarta-feira, em Caió, na Guiné


por Mario Cesar Carvalho

Esta é uma história de intolerância do homem que criou a mais mitológica imagem de um Brasil tolerante. Três meses depois do movimento militar de 1964, Luiz Costa Lima, professor de literatura brasileira da então Universidade do Recife, foi preso e levado ao quartel-general do Exército na cidade. Para que o interrogatório a que foi submetido fosse transcrito de maneira precisa, Costa Lima sentou-se ao lado do sargento que datilografava as respostas para corrigir eventuais imprecisões. Numa dessas correções, diz ter ouvido do major Manoel Moreira Paes um pito que só decidiu revelar agora, 35 anos depois: "Não tem nada de ficar corrigindo o que está sendo escrito porque o seu caso já está resolvido: você foi denunciado como marxista por Gilberto Freyre e será aposentado", teria dito o major, segundo as recordações de Costa Lima, hoje professor-visitante da Universidade Johns Hopkins, nos EUA, ao ser indagado pela Folha a respeito do episódio. Costa Lima ficou preso por dois meses, foi aposentado e não pôde sair do país até a Lei da Anistia, em 1979. O major Paes, que passou para a reserva em 1974 como coronel, diz que o diálogo "jamais aconteceu": "O Gilberto tinha muito contato com os militares, mas só com a cúpula. Nunca colhi nenhum resíduo de informação com ele". Fato ou ficção, não seria a primeira delação de Gilberto Freyre. Em 3 de maio de 1964, ele iniciou uma série de oito artigos no "Jornal do Commercio" e no "Diário de Pernambuco", nos quais acusa o reitor da Universidade do Recife, João Alfredo da Costa Lima (sem parentesco com o crítico Luiz Costa Lima) de ser conivente com a "gritante propaganda de caráter, senão comunista, paracomunista". Da opinião, Freyre salta na jugular: "Não se pretende que lhe sejam cassados direitos políticos; nem que sua Magnificiência seja detido, mesmo em sua casa; e sim convidado -apenas isto- a afastar-se do cargo que continua a ocupar", escreve em 3 de maio daquele ano. Freyre pediu a cabeça do reitor da Universidade de Recife, depois rebatizada Universidade Federal de Pernambuco, por achar que "comunistas" ou "paracomunistas" haviam tomado conta da rádio universitária, do serviço de extensão e das campanhas de alfabetização, encabeçadas por Paulo Freire. Em 1963, ele já havia pedido o afastamento de supostos comunistas da Sudene (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste).

Proscrito pela esquerda
Que Gilberto Freyre era conservador já se sabia desde os anos 60. Naquela década e na seguinte, "Casa-Grande & Senzala" foi praticamente proscrito por setores da esquerda e por sociólogos da Universidade de São Paulo porque teria uma visão idílica do passado colonial e da escravatura, que culminaria com a idéia de que o Brasil vive uma "democracia racial", sem conflitos entre negros e brancos. A novidade é o porte do conservadorismo, a intolerância, os interesses comezinhos -atacava o reitor porque ele se recusava a nomear um indicado seu para a direção de um instituto. Reabilitado nos anos 80, Freyre, cujo centenário de nascimento será comemorado no próximo dia 15, continua um enigma político. Como o "soviético" dos anos 30 e 40, a forma como os usineiros nordestinos usavam para chamá-lo de comunista, vira o arquiconservador dos anos 60? Como um reacionário produz a mais desconcertante interpretação do Brasil, distribuída na trilogia "Casa-Grande & Senzala" (1933), "Sobrados e Mucambos" (1936) e "Ordem e Progresso" (1959)? É esse cipoal de contradições que engendrou o enigma. "A trajetória política do meu avô é a parte mais obscura de sua vida", diz Gilberto Freyre Neto, superintendente-geral da Fundação Gilberto Freyre. O enigma resulta do modo festivo como Freyre foi reabilitado, segundo Enrique Larreta, professor da Universidade Cândido Mendes que está escrevendo uma biografia em três volumes sobre Freyre com Guilhermo Giucci, ambos uruguaios -o primeiro volume será lançado neste mês. "Gilberto Freyre está sendo reabilitado de forma acrítica porque não existe pesquisa documental sobre ele, só interpretações de sua obra. O que os intelectuais escrevem é derivado do que o próprio Gilberto escreveu. Isso resulta numa visão monumental. É preciso desmonumentalizar Gilberto Freyre", propõe Larreta. Se houvesse mais pesquisas, se descobriria que a fúria de Gilberto Freyre contra comunistas em 1964 não era desinteressada. Amigo do marechal Castelo Branco (1886-1967), que ocupou a Presidência de 1964 a 1967, Freyre queria ser governador de Pernambuco. Nilo Coelho foi o escolhido em eleição indireta -os militares consideravam Freyre excessivamente vaidoso e politicamente inábil, segundo um general que prefere não ter a sua identidade revelada.

Convites políticos
Castelo Branco, que frequentou os seminários de tropicologia coordenados por Freyre no início dos anos 60, convidou o sociólogo para ser seu ministro da Educação -e aí foi Freyre quem recusou. Não foi a primeira vez que se recusou a ocupar um ministério. Antes, já havia dito não a convites feitos por Getúlio Vargas em 1954, pouco antes do suicídio, para ocupar o Ministério da Reforma Agrária, e de Jânio Quadros, em quem Freyre votara para a Presidência. A participação de Freyre no regime militar não foi como mero espectador. Em 1972, ele chegou a escrever uma sugestão de programa para a Arena (Aliança Renovadora Nacional), o partido de apoio aos militares. Encomendado pelo então deputado Marco Maciel, hoje vice-presidente da República, o documento aprofunda os paradoxos de Freyre. Estão lá a sua desconfiança com a democracia clássica ("não são mais as eleições a forma definitiva de fazer valer o sistema democrático"), a sua pregação de que o país precisa de "soluções brasileiras para situações brasileiras", mas há pelo menos dois pontos desconcertantes para quem veste o figurino de conservador acabado em Freyre: ele defende uma melhor distribuição de renda e a reforma agrária. Freyre tornou-se também uma espécie de ideólogo informal do regime pós-64, segundo Elide Rugai Bastos, professora da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e autora de duas teses sobre Freyre, de doutorado e de livre docência. "O pensamento de Gilberto Freyre, a idéia de que o Brasil tem uma história em que os conflitos se harmonizam, vira cultura política e transforma-se em senso comum", diz Elide. O exemplo mais extremo dessa absorção acontece com a defesa que Freyre fazia da "democracia racial" brasileira. "Com o oba-oba na recuperação de Gilberto Freyre, perde-se a dimensão política da obra", acredita Elide. Freyre nem sempre foi conservador, segundo o usineiro Odilon Ribeiro Coutinho, 76, amigo do sociólogo de 1944 até a sua morte, em 1987. Ribeiro Coutinho integrou com Freyre a ala estudantil da UDN (União Democrática Nacional). "Gilberto era de uma facção chamada Esquerda Democrática, composta por socialistas. O maior pecado de Gilberto foi ter agido de maneira implacável em 1964. Ele pediu a cabeça de pessoas que considerava nocivas ao processo político", diz o amigo. Foi pela UDN que Gilberto seria eleito deputado para a Constituinte de 1946. Sua votação foi impulsionada por um ato de coragem. Em 1945, numa manifestação contra a ditadura de Vargas, o estudante de direito Demócrito de Souza Filho foi assassinado por pistoleiros contratados por políticos, e Freyre não se calou diante da brutalidade -assumiu a liderança da passeata. "Os usineiros diziam que nós tínhamos escolhido um soviético para disputar a eleição: era Gilberto", diz Ribeiro Coutinho.

"Socialista experimental"
Não era a primeira vez que Freyre era chamado de "soviético". Em 1935, quando fazia as pesquisas para escrever o livro "Nordeste", propôs aos usineiros de Pernambuco uma pesquisa sociológica para investigar as condições de vida dos trabalhadores nas usinas de cana. Também foi tachado de comunista e preso pela polícia de Vargas. Em 1942, seria detido novamente por apontar o que considerava atividades "nazistas" de um padre alemão no Recife. O próprio Freyre definiu-se como "socialista experimental" em discurso que fez na Câmara dos Deputados em 1950.
O ziguezague do conservadorismo à generosidade não foi exclusivo ao período pré-64, segundo sua filha, Sonia Maria Freyre Pimentel, presidente da Fundação Gilberto Freyre: "Ele soltou muita gente da cadeia após 64. Ia lá e dizia que o sujeito era comunista, mas não era perigoso. Ele nunca perseguiu ninguém por motivos ideológicos".
O desconcertante em Freyre é que o conservador político não soterra o inovador teórico, principalmente nos métodos de pesquisa pouco ortodoxos, segundo Elide Rugai Bastos, da Unicamp.
Para entender essa inovação, é melhor deixar em suspenso as loas dos reabilitadores de Freyre, segundo as quais ele seria um dos criadores da história do cotidiano, um dos precursores da história das mentalidades, um dos primeiros sociólogos a usar o conceito de pós-modernidade e pioneiro em valorizar a infância como chave para se entender o adulto. Loas servem para envaidecer, mas ofuscam a compreensão. A visão tradicional sobre Freyre aponta a passagem do sociólogo pelos Estados Unidos -onde estudou entre 1917 e 1922, primeiro na Universidade Baylor (Texas) e depois na Columbia (Nova York)- como a chave para se entender essas inovações. É uma meia verdade, diz Elide. Na década de 20, a sociologia brasileira alimentava-se de autores franceses, principalmente. Freyre abriu uma frente nova -a sociologia norte-americana, ou de europeus radicados nos EUA. Na Universidade Columbia, ele foi aluno do antropólogo de origem alemã Franz Boas (1858-1942), um dos pioneiros a rechaçar o conceito de que a raça determinaria comportamentos, idéia do século 19 que atravessou o início do século 20. Boas substituiu o conceito de raça pelo de cultura.

Valorização da mistura
Até 1933, ano de publicação de "Casa-Grande & Senzala" e da chegada de Hitler ao poder na Alemanha, era senso comum dizer que o Brasil estava condenado ao atraso por causa da mistura de brancos, negros e índios. Freyre inverte essa noção, ao valorizar a mistura de etnias. Era uma inovação no Brasil, mas não nos EUA, segundo Enrique Larreta. Lá, Randoph Pourne, um ensaísta do círculo da Columbia, havia escrito em 1919 "Transnacional America", no qual defende que os EUA são superiores à Europa por causa da mistura cultural. Freyre chegou a um dos conceitos mais polêmicos de "Casa-Grande & Senzala", o de que os negros acabaram impondo sua cultura aos brancos, por meio de técnicas da história do cotidiano e das mentalidades. Ele vasculha o dia-a-dia do período colonial para mostrar como os negros influenciaram os brancos na comida, na educação informal e até na malemolência da fala.

Amaciando a língua
Uma das passagens mais deliciosas de "Casa-Grande & Senzala" é a descrição de como os negros amoleceram a língua portuguesa. O deslocamento da colocação pronominal do modo imperativo ilustra a influência dos negros na cultura e, ao mesmo tempo, a forma como os antagonismos se equilibram no Brasil: "Faça-me, é o senhor falando, o pai, o patriarca; me dê, é o escravo, a mulher, o menino, a mucama".
Aí, suas fontes são mais complexas. História do cotidiano era um método que estava em voga nos anos 10 e 20 entre antropólogos nos EUA, segundo Elide. Um dos marcos dessa onda são os cinco volumes de "The Polish Peasant in Europe and America", de Florian Znaniecki e William Thomas, publicados entre 1918 e 1920, que Freyre estudou e hoje é um clássico sociológico sobre imigração.
Ele, porém, não fica só nas fontes sociológicas e avança na literatura. A idéia de que a verdadeira história é a história da intimidade, o olho clínico para os detalhes, vem de Balzac, de Proust e dos irmãos Goncourt. De Balzac, por exemplo, ele toma emprestado a idéia de que a vida de uma madame importa mais para a história do que uma batalha de Napoleão. "A leitura que Freyre faz da história em "Casa-Grande" é materialista", defende Larreta. Foi por isso, segundo ele, que a esquerda dos anos 30, inclusive o historiador Caio Prado Junior, festejou o lançamento do livro. Nos anos 60, o cenário inverteu-se e "Casa-Grande" foi jogado numa espécie de limbo ideológico e tratado como a história da escravidão vista do alpendre da casa-grande. Três razões explicam o limbo, segundo Larreta: o conservadorismo de Freyre, a interpretação, difundida por sociólogos da USP, de que "Casa-Grande" seria uma visão histórica da elite e a idéia de que o próprio escritor era um aristocrata. Na USP, Florestan Fernandes liderava o grupo que fazia oposição à tese de democracia racial, do qual faziam parte o então sociólogo Fernando Henrique Cardoso e Octavio Ianni.

Legado perverso
"Florestan Fernandes é o maior responsável pela imagem de reacionário de Gilberto. A USP não entendeu que Gilberto era pós-marxista. Ele dizia que Marx ficou datado após a automação", diz Edson Nery da Fonseca, que conheceu Freyre em 1941 e foi seu secretário.
A oposição de Florestan a Freyre tinha razões políticas acadêmicas. As razões políticas são óbvias -o conservadorismo de Freyre. As acadêmicas são mais complexas. Enquanto Freyre via uma herança positiva da escravidão, visão consolidada na tese de que os negros acabaram colonizando os brancos, Florestan preferia frisar o legado perverso: as desigualdades sociais, políticas e econômicas.
As relações entre Freyre e Florestan são mais complexas, porém, do que supõe o esquematismo dual. Nas cartas enviadas por Florestan a Freyre em 1961, nas quais convida o sociólogo pernambucano a integrar a banca de doutoramento de Fernando Henrique Cardoso e Octavio Ianni, o professor da USP derrama-se em elogios: "Não tenho palavras para agradecer à generosa hospitalidade que me dispensou e a grata oportunidade de um franco entendimento", escreve Florestan, referindo-se a sua passagem por Recife no mesmo ano.
Após fazer o convite para a banca, diz: "Acredito não ter razão de ser o isolamento em que se tem mantido em relação aos centros universitários, especialmente o de São Paulo". A impressão é que Florestan estava tentando reatar relações com Freyre. Mesmo com toda os elogios, Freyre recusou o convite.
Florestan nota na carta um detalhe que explica em parte a recepção que a obra de Freyre receberia nos anos 60 e 70. Isolado de um dos principais centros de inteligência do país, a USP, ele só dialogava com aduladores. "Faltou polemizar sobre a obra de Gilberto Freyre porque as discussões até agora envolveram quase sempre posições dogmáticas, seja para elogiá-la ou criticá-la", diz Elide.
No vaivém do pêndulo entre o reacionário político e o escritor desconcertante, parece haver um Gilberto Freyre que só agora começa a ser revelado.



Texto Anterior: + 3 questões Sobre a marginalidade
Próximo Texto: Mario Cesar Carvalho: FHC fala sobre Gilberto Freyre
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.