São Paulo, domingo, 12 de março de 2000


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Freyre põe os marginais da história no centro de sua construção da formação nacional
Os descendentes de Prometeu

por Elide Rugai Bastos

Na peça intitulada "As Criaturas de Prometeu", pertencente à primeira fase de sua produção, Beethoven apresenta temas que figuram em suas sinfonias escritas posteriormente. Não se trata de repetição, e sim de invenções melódicas e harmônicas que indicam a presença de uma obra plena de organicidade. A genialidade desse desdobramento é inegável. Essa marca vem à mente quando reflito sobre a unidade da obra de Gilberto Freyre. Embora não definido previamente, o autor estabeleceu um conjunto intitulado "Introdução à História da Sociedade Patriarcal no Brasil", formado pelos livros "Casa-Grande & Senzala" (1933), "Sobrados e Mucambos" (1936), "Ordem & Progresso" (1959) e o prometido, mas não terminado, "Jazigos e Covas Rasas". Podemos considerar nesse bloco, embora estivesse fora da intenção do autor, o livro "Nordeste", publicado em 1937. A articulação entre patriarcalismo, interpenetração de etnias/culturas e trópico constitui-se na unidade explicativa do pensamento freyriano. Essa configuração analítica aparece desde o início, em "Casa-Grande & Senzala". No entanto, a tese ganha desdobramentos particulares não apenas nos trabalhos citados, mas também em escritos posteriores. É como se Gilberto tivesse desenhado uma sinfonia constituída de várias peças interligadas.

O papel do escravo
Nos diferentes textos pode-se perceber a ênfase dada a cada um desses pontos: em "Casa-Grande & Senzala" ele afirma a importância da relação entre etnias e culturas, resgatando o papel do escravo negro como civilizador na sociedade brasileira, operando simultaneamente no processo de mestiçagem e no de difusão e incorporação do aparato cultural africano, isto é, há uma absorção de seus usos e costumes pelos brancos, que reconhecem a adaptabilidade dos mesmos à realidade tropical; em "Sobrados e Mucambos", ressalta o papel do patriarcado na ordenação da sociedade nacional, operando durante séculos como garantia de sua organicidade; em "Nordeste", mostra como as regiões tropicais abrigam formas sociais harmônicas, indagando, ao mesmo tempo, sobre o grau de modernidade a que nelas se pode aspirar. Gilberto, ao analisar esses três pilares de nossa formação, quer mostrar que existe uma especial combinação no Brasil, talvez um de seus mais importantes traços: aqui os extremos tendem a conciliar-se. Os títulos dos dois primeiros livros são ilustrativos dessa intenção: casa-grande e sobrado simbolizam dominação; senzala e mucambo, subordinação, submissão. O "&" entre as duas palavras significa interpenetração. É exatamente a especificidade da articulação entre patriarcalismo, etnias/culturas e trópico que permite que aquelas situações típicas não levem a uma ruptura no seio da sociedade. Aqui se combinam tradição e modernidade, rural e urbano, sagrado e profano, o velho e o novo. Articulam-se tempos distintos. Por isso a importância, em suas pesquisas, do tema transição: a passagem do trabalho escravo ao trabalho livre, da monarquia à república, do campo à cidade. Esse é o eixo central de "Ordem & Progresso".

A consagração
A publicação de "Casa-Grande & Senzala" consagra Gilberto Freyre como autor, consagração justa por inúmeros motivos já amplamente conhecidos. No entanto, a própria consagração talvez tenha desviado a atenção do público da continuidade e do alcance do debate que se desenvolve nos livros posteriores. Em "Sobrados e Mucambos" as inúmeras inovações apresentadas em 1933 ganham completude e se ampliam. O próprio subtítulo do livro é indicativo da mudança de rota no desenvolvimento da temática inaugurada naquele texto: "Decadência do Patriarcado Rural e Desenvolvimento do Urbano".
Antonio Candido já se confessou intrigado com o fato de, num país novo como o Brasil e num século como o nosso, a maioria das obras de valor produzidas versar sobre o tema da decadência -social, familiar, pessoal. Em Gilberto o tema é nuclear. Para ele, a urbanização afeta o papel tradicionalmente exercido pelo patriarcado na construção da ordem social. Aponta como, nesse processo, a esfera pública avança sobre a esfera privada, ilustrando a situação com as dicotomias casa/rua, engenho/praça. Simbólica dessa preeminência do público sobre o privado é a figura do moleque que mija no sobrado, buscando mostrar que a rua vale mais que a casa.
A decadência significa a perda do poder, este resultado das transformações sociais, econômicas e políticas, mas em especial das culturais. Alteram-se os modos de agir tradicionais e a perda dessas tradições atinge nuclearmente a forma pela qual se organizam as relações sociais no Brasil. Isto é: a mudança, de um lado, traz consigo como traço a impessoalidade que marca o relacionamento social; de outro, resulta na destruição da cultura regional que ancora um específico modo de organização da sociedade.
Em outros termos, a decadência é resultado da quebra da continuidade público/privado, procedimento que altera o modo de organização do poder no país na medida em que foi afetada a própria natureza das relações sociais. Influências individualistas, estatistas e coletivistas se apresentam como desagregadoras do sistema patriarcal. É a família, como grande força permanente na formação nacional, influência conservadora e disseminadora dos valores patriarcais, a grande ameaçada.
Mais ainda, conferiu unidade nacional ao país, pois a forma pela qual se conseguiu a convivência pacífica das culturas foi a existência e permanência do patriarcado. Constitui-se na garantia da interpenetração de valores sociais de caráter diversificado; a síntese não-conflituosa que impediu rupturas.
Assim, a partir desse enfoque, o tema de "Sobrados e Mucambos" é o estudo das mudanças que se dão no seio da família e da casa durante o século 19 e que explicam a migração do poder das oligarquias familistas para o Estado, processo resultante tanto do enfraquecimento da ordem rural e escravocrata quanto da centralização administrativa. As transformações não são abruptas; trata-se de um processo que se estende por todo o século 19. É nesse desenrolar que Gilberto define a singularidade da decadência do patriarcado no Brasil.
Diferentemente do que ocorre nos outros países, é marcada pela acomodação, na qual se alternam perdas e sobrevivências. Nossa marca é a conciliação. Na mudança alteram-se as formas e o acessório, mas o substantivo permanece. A transformação não se processa de forma linear; tem a conformação de um labirinto. Seu trabalho é a reconstrução desses vaivéns sinuosos.
A acomodação é resultado, de um lado, da assimilação pelo conjunto da sociedade dos usos, costumes, valores das diferentes culturas, que se dá no ambiente doméstico pela ação de personagens que agem cotidianamente no sentido de consolidar, em patamar diferente da oposição dominante/dominado, as relações sociais. Assim, "Casa-Grande & Senzala" recupera o papel dos marginais da história: o escravo negro, a mulher, o menino, o amarelinho anti-herói diante do patriarca, o grande herói civilizador.
Nas análises convencionais são considerados fora da lógica explicativa. Gilberto Freyre os coloca no centro de sua construção da formação nacional. O escravo negro, o maior e mais plástico colaborador na construção da civilização nos trópicos, exercendo missão civilizadora junto ao índio e ao branco; dominando a cozinha, a vida sexual, as profissões técnicas, a música, alterando a língua, amante e confidente. A mulher, submissa, vivendo sob a tirania do pai e depois do marido, criada em ambiente rigorosamente patriarcal. O menino, em casa, castigando as negrinhas e os moleques, mas submetido na sociedade dos mais velhos. O amarelinho, menino mimado, franzino, muitas vezes filho ilegítimo, sem gosto pelas lides do engenho, saindo de casa para estudar nos seminários ou nas escolas das capitais do Brasil ou da Europa, voltando imbuído de novas idéias, pronto a lutar contra a dominação.
Ao tomá-los como personagens, Gilberto busca mostrar que não estão de fato fora da história, mas são responsáveis pela construção social e cultural da sociedade brasileira. Eis as criaturas de Prometeu. As quatro figuras foram, no processo de formação social, a garantia de uma harmonia resultante do hibridismo cultural, responsáveis pela adaptação não conflituosa dos diferentes aspectos das culturas portuguesa, africana e indígena. Com elas, o encontro dos elementos sociais e culturais de origem oriental -parte portugueses, parte africanos- e os ocidentais ocorre sem atrito. Mais que isso, respondem pela adaptação ao trópico dos costumes originários da Europa. São ainda a razão principal que explica por que, no Brasil, a família, e não o indivíduo, se tornou a unidade básica da sociedade. Essas criaturas reaparecem em "Sobrados e Mucambos", "Nordeste" e "Ordem e Progresso". No primeiro, Freyre retoma o tema mostrando as transformações decorrentes da urbanização, que afetam as relações entre pai e filho, mulheres e homens, negros e brancos. Os novos ares alteram a acomodação secular. Os conflitos aparecem. Configuram-se novas distâncias sociais.

Mediadores
Com a separação público/privado surge o risco de desaparecerem, pelo menos investidos de seu papel anterior, aqueles personagens que operavam como mediadores do pacto de equilíbrio social: a mulher, garantia da conservação das tradições; o menino, amenizando o despotismo do pai e absorvendo a influência dos costumes negros para transferi-los à sociedade; o escravo, o verdadeiro organizador do ambiente doméstico, garantia da paz na família; o amarelinho, figura ambígua, com compromissos simultaneamente com a família e com a esfera pública, trazendo mudanças no desenho da sociedade, mas protetor contra as rupturas em seu seio.
Lembrar, na década de 30, momento prenhe de mudanças -crescimento da industrialização, urbanização, centralização político-administrativa, para lembrar algumas-, do papel desempenhado pelos setores dirigentes rurais no sentido de manutenção da ordem social e ainda aquele das oligarquias regionais confere um especial lugar à reflexão freyriana. Creio que podemos levantar a hipótese de ter sido sua interpretação um elemento fundamental no equacionamento político daquele período, sem esquecer que esse arranjo acabou por marginalizar vastos setores da população nacional.
Trata-se de uma polêmica a enfrentar. No entanto existe unanimidade quanto à importância de sua reflexão, que colocou em outro patamar o debate sobre a questão social no Brasil. Com Gilberto Freyre, a sociologia ganha definitivamente sua sistematização, alcança um discurso próprio e vai ocupar um lugar especial no desvendamento dos meandros da sociedade brasileira.


Elide Rugai Bastos é professora do departamento de sociologia da Universidade Estadual de Campinas e autora de "Intelectuais e Política".



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