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Poder e prazer
EM ENTREVISTA À FOLHA, A AUTORA DE "DÁDIVAS SAGRADAS,
PRAZERES PROFANOS" DEFENDE QUE O TABACO E O CHOCOLATE INVERTERAM O SENTIDO DA COLONIZAÇÃO
AO IMPOR AO OCIDENTE ELEMENTOS DA CULTURA DA AMÉRICA
O chocolate era algo associado à elite; já o tabaco permeava todas as classes e gêneros: homens e mulheres da cidade e do campo, pobres e ricos o consumiam
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ERNANE GUIMARÃES NETO
DA REDAÇÃO
A forma tradicional
de receber uma visita é com uma xícara -de chocolate.
Foi assim quando
Montezuma recebeu os espanhóis que colonizaram seu império mesoamericano. Dessa
relação se disseminaram novos
hábitos sociais, comportamentais e de paladar hoje difundidos em todo o mundo, argumenta a historiadora norte-americana Marcy Norton, 39.
A própria palavra xícara, de
origem náuatle, presta reverência indireta às diversas variedades de bebidas feitas com
cacau. Decorado com pinturas,
o recipiente fazia jus ao luxo
representado pela fruição dos
líquidos quentes ou frios, doces
ou apimentados, sempre dissoluções de uma pasta que seria
conhecida pelos colonizadores
como "chocolate".
A imagem de ritual das elites
-vinda de uma cultura em que
grãos de cacau eram moeda
corrente e a fruta era exigida
como tributo-, marcaria assim
o alimento muito antes de existirem os processos industriais
que o transformariam em pó e
barra no século 19.
O processo de assimilação ou
"somatização" -nas palavras
da professora de história da
Universidade George Washington (EUA)- do chocolate
é contrastado com o do tabaco
em seu recém-lançado "Sacred
Gifts, Profane Pleasures" [Dádivas Sagradas, Prazeres Profanos, Cornell University Press,
334 págs., US$ 35, R$ 77].
Em entrevista à Folha, a autora defende que os dois produtos inverteram a relação imperialista: por meio deles, os
costumes dos colonizados foram expandidos mundialmente, em vez de desaparecerem.
"A visão comum de que o
consumo de café levou ao consumo de chocolate está invertida. Na verdade, o chocolate parece ter ajudado a pavimentar
o caminho para o café ao criar o
anseio nos consumidores por
bebidas escuras, amargas, adocicadas, quentes e estimulantes", afirma a pesquisadora.
FOLHA - Por que apresentar chocolate e tabaco juntos num livro?
MARCY NORTON - Ambos são
produtos nativos da América
que se tornaram muito populares na sociedade europeia e nas
sociedades europeizadas da
América.
Sua importância para a Europa surgiu na mesma época.
Têm coisas relevantes em comum, geraram debates semelhantes, e foram muito diferentes na maneira de cruzar as culturas. Isso me atraiu.
FOLHA - Um se tornou um bem comum e outro viveu a glória social, a
glamourização no cinema e a posterior demonização, o tabaco...
NORTON - O que você está chamando de comum, o chocolate?
No período que estudo, da
chegada dos europeus [século
15] até o século 18, era o oposto.
Há repetidos relatos afirmando que o tabaco permeava
todas as classes e gêneros: homens e mulheres da cidade e do
campo, pobres e ricos o consumiam, enquanto o chocolate
era algo associado à elite.
Somente a partir do final do
século 17 começa a se espalhar
para outros grupos.
FOLHA - A sra. abre seu livro com as
impressões de um espanhol na corte
de Montezuma, dando grande importância a ambos os produtos -aí
aparece um aspecto da "nobreza"
de seu consumo. Mas também conta que o chocolate não foi um sucesso imediato, que foram necessárias
décadas de aculturação dos migrantes para chegar à Espanha. Que força simbólica prevaleceu: a do luxo
pagão ou o da massificação?
NORTON - Em certa medida, o
sucesso do tabaco e do chocolate foi um "acidente de império".
Os europeus chegaram à América com um conjunto de noções sobre como iriam se beneficiar. Mas, ao longo da experiência colonizatória, o encontro com o tabaco por toda a
América -e o chocolate na Mesoamérica- foi inevitável, e sua
assimilação aconteceu.
No caso do chocolate, a ideia
de "luxo supremo" veio desde o
começo. Uma combinação de
poder e prazer -é isso o que resume o chocolate.
No caso do tabaco, houve
sempre um atrito entre a consciência de que havia algo de religioso, de idolatria em seu uso
e, ao mesmo tempo, um ato sublime de sociabilização.
Um dos temas de meu livro é
a tensão contínua entre essa
imagem de idolatria diabólica
do tabaco e seu uso social.
FOLHA - A palavra "xicálli" (que gerou "xícara") era usada especificamente para o chocolate?
NORTON - Não. No contexto
original, "xicálli" era para qualquer coisa. Mas, para os espanhóis, no início a palavra era associada prioritariamente ao
chocolate.
FOLHA - Onde havia chocolate antes da chegada dos europeus?
NORTON - Quando os espanhóis
chegaram, o limite sul aonde
chegava o chocolate -não o cacau- era a região onde fica a
Costa Rica. Aparentemente outras culturas tinham o cacau,
mas não faziam o chocolate.
Em direção ao norte, o chocolate havia chegado pelo menos até a região do cânion Chaco, onde hoje é o Estado do Novo México. Mas não que o comércio do chocolate chegasse
lá no século 15.
FOLHA - O tabaco era mais difundido do que o chocolate?
NORTON - Sim, pois suas diferentes variedades podem crescer em qualquer lugar do Alasca à Argentina. E tinha muita
importância social, com o uso
medicinal ou espiritual, em
grupos sociais que nada tinham
a ver uns com os outros.
FOLHA - O rapé já era um hábito
forte dos nativos americanos?
NORTON - No período pré-colombiano, era uma hábito sul-americano -pelo que já se pesquisou até agora, era comum
nos Andes e na costa onde hoje
estão Venezuela e Colômbia.
A palavra "rapé" é francesa,
referindo-se à criação dos franceses no século 18, algo diferente, mais fino -e o que hoje se
chama de rapé na América é
provavelmente diferente de
ambas as formas.
Os espanhóis adotaram os
hábitos das regiões por onde
passaram -"humo", "polvo" e
"hoja" [fumaça, pó e folha].
O pó [rapé] foi a forma que
pegou com a elite no início, mas
isso mudou rapidamente,
quando os charutos se tornaram populares.
Mas desde o início houve o
desenvolvimento de um mercado complexo e segmentado
-inclusive contrabando de tabaco brasileiro para a Espanha
no século 18, apesar do bloqueio imposto pelo sistema colonial. O tabaco do Brasil, como
era mais barato, era contrabandeado de Lisboa para a Península Ibérica.
FOLHA - Quanto ao chocolate, a variante mais comum era o "atole"
(versão refrescante da bebida)?
NORTON - Cárdenas [em texto
de 1591] relatou isso, mas não é
possível confirmar. Sabe-se
que havia muitas bebidas com
cacau, e essa mistura era uma
das formas mais comuns.
FOLHA - O sabor da bebida era forte para os espanhóis? Seria forte para o gosto contemporâneo?
NORTON - Existe um empresário em Santa Fe, no Novo México [www.kakawachocolates.com], que tenta reproduzir
o chocolate feito pelas sociedades pré-colombianas e pelos
primeiros europeus.
O problema é que alguns dos
ingredientes são muito restritos. Os pré-colombianos tinham uma constelação de
plantas que não fazem parte da
dieta ocidental -exceto, é claro, a baunilha.
FOLHA - Eles não tomavam simplesmente suco de cacau?
NORTON - Sem dúvida, mas a
polpa fresca só estava disponível onde o cacau era cultivado, e
são áreas restritas, porque o cacau é uma planta frágil.
FOLHA - Mas a pasta de cacau não
era comestível? Por que, afinal, demorou tanto para ser criado o chocolate em barra?
NORTON - Não estudei muito
esse capítulo da história, que se
passa já no século 19. O que
acontece é que as pessoas estavam satisfeitas com o que havia, não precisavam melhorar o
chocolate.
Foi a industrialização que
possibilitou essa mudança.
Em 1828, o holandês Van
Houten percebeu a utilidade de
reconstituir o cacau de modo
mais barato, utilizando outras
gorduras. Desse modo, o cacau
passou a render mais dinheiro.
FOLHA - Então o coração da Europa
-Bélgica e Suíça- assume o papel
de autoridade em chocolate. Isso
não é prova de que o alimento foi recriado pelos europeus, e não "somatizado"?
NORTON - Isso só aconteceu no
século 19. A distância entre o
modo como o chocolate era
consumido na Tenochtitlán
nos Quinhentos e na Madri de
1685 é menor do que entre essa
Madri e qualquer outro lugar
do mundo nos anos 1950.
Mas essa transformação só
aconteceu no século 19. Para o
chocolate atravessar o Atlântico, foi necessário haver essa somatização.
FOLHA - E o costume do chocolate
quente espanhol guarda mais semelhanças com aquela origem?
NORTON - Sim, e há relatos de
tradição centenária na Sicília
(Itália), no México etc.
FOLHA - Agora é moda consumir
chocolate com percentual mais elevado de cacau. Essa onda de chocolateria é um movimento na direção
da estética original do chocolate?
NORTON - Por um lado, nos
aproxima, porque há ênfase no
gosto de cacau, muito mais próximo que um Hershey's Kiss,
por exemplo, que quase não
tem cacau.
Por outro lado, nos leva mais
longe das bebidas, restritas a
grupos étnicos.
Existe uma pessoa, Mark
Christian, que vai colocar no ar
um website [www.c-spot.com, com previsão de lançamento em maio] sobre o "chocolate de ponta".
Nós discutimos recentemente o fato de o chocolate estar vivendo um apogeu -há um movimento por chocolates de alta
qualidade, pelo alto percentual
de cacau, que vê a procedência
do cacau e incorpora o vocabulário dos enólogos.
Diz que agora temos o melhor chocolate do mundo, mas
rebato: não sabemos o que perdemos, mesmo que algumas
tradições tenham sobrevivido.
FOLHA - A sra. escreveu em um estudo que "as políticas coloniais asseguraram a continuidade do cultivo,
do comércio e do consumo do cacau,
pois a possibilidade imediata de os
governantes espanhóis lucrarem
com a conquista dependia de sua
usurpação e manutenção de um sistema organizado pelo governante
asteca". O chocolate desapareceria
se não fosse parte desse sistema?
NORTON - Não. O tabaco não
era parte do sistema de tributos, mas continuou. Meu palpite é o de que o chocolate seria
assimilado do mesmo jeito.
Se bem que, se por alguma razão os colonizadores quisessem utilizar o solo de outra maneira -por exemplo, se resolvessem criar ovelhas-, isso seria uma ameaça à sobrevivência do cacau, que é uma planta
muito frágil.
Aliás, uma das razões para as
plantações migrarem para o sul
foi a ganância dos espanhóis,
que aumentaram os tributos,
causando um desequilíbrio
ecológico.
FOLHA - Em lugar de dizer que o
chocolate abriu caminho para o café
e o chá na cultura ocidental, não seria justo dizer que o mercado de cana-de-açúcar puxou a aceitação de
bebidas amargas?
NORTON - Esse é o argumento
de Sidney Mintz, um dos primeiros a estudar a história de
uma só commodity [em livros
como "O Poder Amargo do
Açúcar", ed. UFPE].
É daquelas coisas impossíveis de provar, mas eu gostaria
de levar a sério a ideia de que
tais bebidas serviram como veículos para o consumo de açúcar. Mintz usa esse argumento
no caso do chá.
Mas, para considerar o chá, é
preciso considerar o chocolate,
que chegou primeiro.
Aliás, o açúcar já estava disponível desde a Idade Média
-a cana era cultivada por portugueses-, e uma razão para o
aumento da popularidade do
açúcar deve ter sido o consumo
dessas bebidas.
FOLHA - O chocolate era bebido por
razões "funcionais" (tinha alta reputação como estimulante entre os
nativos) ou por seu sabor?
NORTON - Não era nem a questão do sabor nem de interesse
pela "cozinha local" -assim como, hoje em dia, procuramos
um restaurante "exótico"-,
mas sim o fato de que os espanhóis se adaptaram ao costume. Ou seja, se estavam numa
relação diplomática, era melhor que bebessem a bebida que
lhes ofereciam.
Os espanhóis começaram
buscando ouro e prata na América. Levaram para lá uma visão
que tinham do Oriente, portanto buscaram também especiarias e remédios.
Acabaram levando para a Europa coisas como salsaparrilha
e tinturas.
O tabaco e o chocolate foram
levados depois, no final do século 16, com espanhóis aculturados -o aspecto social desses
produtos foi levado junto.
O tabaco variou mais. Um
tratado publicado em Córdoba
nos anos 1690 o descrevia ao
mesmo tempo como "uma coisa vil de escravos e marinheiros", dos elementos mais baixos da sociedade, e como objeto
de rituais semelhantes aos de
Tenochtitlán -com o mesmo
prestígio envolvido.
Já o chocolate era, de modo
mais uniforme, uma coisa de
elite. Como veio de uma região
menor, mais unificada culturalmente, sua cultura foi mais
fácil de ser preservada.
FOLHA - O uso do chocolate em
ovos de Páscoa é uma continuação
do imperialismo do século 16, em
que agora as tradições ocidentais
são deixadas para trás em favor de
um festival pagão do chocolate?
NORTON - Nem uma coisa nem
outra. Meu argumento é o de
que o mundo que emergiu das
viagens de Colombo ficou totalmente mudado.
Não dá para entender a sociedade europeia sem levar a sério
essas sociedades.
Quem imaginaria que o tabaco seria a principal fonte de
renda do Estado espanhol no final do século 17? Não dá para
entender a história europeia
isoladamente.
FOLHA - Qual sua opinião sobre o
filme "Chocolate" (baseado no romance de Joanne Harris, com Juliette Binoche)? Ali parece haver uma
certa oposição entre o "estranho" e
a "tradição", como em seu livro.
NORTON - Não gosto dele. Como especialista, não consigo fazer aquela "suspensão do juízo"
que esse tipo de filme requer.
Devo soar como uma rabugenta, mas esse é meu lado de historiadora sensível.
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