São Paulo, domingo, 12 de abril de 1998

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Um sistema autoregulador


A Internet tem sido capaz de criar mecanismos próprios de controle das informações
PIERRE LÉVY
especial para a Folha

Já que todos podem alimentar a rede sem nenhum intermediário ou censura, já que nenhum governo, nenhuma instituição e nenhuma autoridade moral garante o valor dos dados disponíveis, que confiança se pode depositar nas informações encontradas no ciberespaço? Como nenhuma seleção e hierarquia oficial serve de guia no dilúvio de informações do ciberespaço, não seríamos testemunhas de uma simples dissolução cultural, e não de um progresso, dissolução esta que só seria útil àqueles que já possuem pontos de referência, isto é, às pessoas privilegiadas por sua educação, seu meio, seus círculos intelectuais privados?
À primeira vista, essas interrogações parecem legítimas. Elas repousam, no entanto, sobre premissas falsas.
É certo que nenhuma autoridade central garante o valor das informações disponíveis no conjunto da rede. Porém, os sites Web são produzidos e frequentados por pessoas ou instituições que assinam as suas contribuições e defendem sua validade perante a comunidade dos internautas. Para dar um exemplo evidente: o conteúdo de um site universitário é garantido pela universidade que o acolhe. Como ocorre na informação impressa, as revistas e jornais on line encontram-se sob a responsabilidade de seu conselho editorial. As informações provenientes de uma empresa são garantidas pela respectiva organização, que põe em jogo a sua reputação no Web do mesmo modo (se não mais) que em outras formas de comunicação. As informações governamentais, é evidente, são controladas pelos governos etc.
As comunidades virtuais, fóruns eletrônicos ou "newsgroups" são muitas vezes moderados por responsáveis que filtram as contribuições em função de sua qualidade ou de sua pertinência.
Não é raro que os sistemas operadores que administram os servidores informáticos sejam empregados por organismos públicos (universidades, museus, ministérios etc.) ou por instituições cujo interesse é manter sua reputação. Tais sistemas operadores, que dispõem de um grande poder "regional" no ciberespaço, podem eliminar os servidores sob a sua responsabilidade ou os grupos de discussão contrários à ética da rede - a famosa "netiqueta": calúnias, racismo, incitação direta à violência, proxenetismo, uso sistemático de informações não-pertinentes etc. Isso explica, aliás, que haja tão poucas informações ou práticas desse gênero na rede.
De resto, uma espécie de opinião pública funciona na Internet. Os melhores sites, muitas vezes, são citados ou exibidos como exemplo em revistas, catálogos ou índices (impressos ou on line). Vários links de hipertextos conduzem a esses "bons" serviços. Em contrapartida, são raros os links que drenam os internautas para os sites cujo valor informativo é fraco ou empobrecedor.
O funcionamento da rede, portanto, faz apelo à responsabilidade dos fornecedores e dos usuários da informação num espaço público. Ele recusa um controle hierárquico -portanto opaco-, global e a priori, o que seria uma definição possível do sistema da censura ou de uma gestão totalitária da informação ou da comunicação.
Não podemos ter, ao mesmo tempo, a liberdade de expressão e também a seleção a priori das informações por uma instância que, supostamente, sabe o que é verdadeiro e bom para todos, seja ela uma instância jornalística, científica, política ou religiosa.
Mas o que dizer do caos, da confusão, do caráter diluviano da informação, da comunicação, no ciberespaço? Eles não prejudicariam os que não possuem rígidos pontos de referência pessoal ou social? Esse temor só é parcialmente justificado. De fato, a profusão do fluxo de informações e a ausência de uma ordem global a priori não impedem que a coletividade ou as pessoas orientem-se por sua própria conta e construam hierarquias, seleções, estruturas. Desapareceram definitivamente as seleções, hierarquias e estruturas de conhecimento pretensamente válidas para todos e a qualquer tempo, ou seja, o universal totalizante.
Para construir uma ordem local e provisória no interior da desordem global, os "temas de pesquisa", os índices on line, os instrumentos de navegação cada vez mais aperfeiçoados se oferecem ao uso do internauta. Além disso, não é preciso imaginar o ciberespaço povoado de indivíduos isolados e perdidos entre uma enormidade de informações. A rede é, antes de tudo, um instrumento de comunicação entre pessoas, um laço virtual em que as comunidades auxiliam seus membros a aprender o que querem saber. Os dados não representam senão a matéria-prima de um processo intelectual e social vivo, altamente elaborado. Enfim, toda inteligência coletiva do mundo jamais dispensará a inteligência pessoal, o esforço individual e o tempo necessário para aprender, pesquisar, avaliar e integrar-se a diversas comunidades, sejam elas virtuais ou não. A rede jamais pensará em seu lugar, fique tranquilo.


Pierre Lévy é sociólogo e historiador da ciência, professor do departamento de hipermídia da Universidade de Paris 8, autor de "As Tecnologias da Inteligência" e "O Que É o Virtual" (Ed. 34). Ele escreve mensalmente.
Tradução de José Marcos Macedo.



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