São Paulo, domingo, 12 de julho de 2009

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Coreografia sem lugar


"Arte anterior à arte, ou arte anterior a sua reabsorção em obra", a dança é trivial e transcendental, anjo e besta; ela nos escapa


STÉPHANE LEGRAND

A dança é um objeto rebelde. Ela se desnuda ao pensamento e não se deixa registrar nos arquivos da teoria. No século 18, quando o discurso da estética nasceu na filosofia, a dança não teve lugar no sistema das belas-artes. É esse o ponto de partida de "Le Désoeuvrement Chorégraphique" [A Inatividade Coreográfica, ed. Vrin, 430 págs., 30, R$ 84], de Frédéric Pouillaude.
O autor mostra que a dança, aos olhos dos pensadores que se esforçam para encontrar um estatuto para ela, é ao mesmo tempo mais e menos que arte.
Menos, porque é trivialidade, dissipação mundana. Mais, por manifestar "uma unidade originária do sentir e do mover-se, postulada no fundamento de cada arte" por pensadores como Paul Valéry [1871-1945] e Erwin Straus [1891-1975], ou, mais recentemente, Alain Badiou e Renaud Barbaras.
"Arte anterior à arte, ou arte anterior a sua reabsorção em obra": trivial e transcendental, anjo e besta, ela escapa. É que a dança, como dizia [o filósofo Michel] Foucault a respeito da loucura, é a ausência de obra.
Em primeiro lugar porque ela pertence à ordem da autoafetação: como é, antes de mais nada, escuta íntima do corpo dançante por ele mesmo, as sensações que produz nesse corpo não podem ser compartilhadas pelo espectador -diferentemente dos sons emitidos pelos músicos, das formas representadas pelo pintor etc.
Em segundo lugar, porque é gasto puro, que não deixa nem sequer cinzas em sua esteira: nem partitura, nem livro, nem ruína. A ideia do "gasto" também está no cerne do livro de Pouillaude. Ele busca elementos de reflexão em Georges Bataille, que dizia que o homem é "uma negatividade sem uso".
Na conclusão do trabalho pelo qual configuramos o mundo em vista de nossa utilidade, sobra em nós um poder de negar, destituído de finalidade, "sem uso". A gesticulação dançante é a manifestação disso. Por isso "é preciso levar a sério o que gasto significa aqui (...). Quer dizer o litro de água que se perde ao dançar, o banho que se esparrama ao redor de nós, as gotas esparsas sobre o chão; (...) exibir essa vertigem de esgotamento e enunciar o fundo de pura violência -sem objeto senão ele mesmo- no qual ela deita suas raízes".

A noção de obra
O corpo se atraca consigo mesmo indefinidamente. Por que, se no fim não deixa nada que possa ser compartilhado? O que Pouillaude propõe, então, é tomar o ato coreográfico como inatividade em pleno direito, jogo frágil de nossa "negatividade sem uso" com ela mesma. Ele questiona, em contrapartida, aquilo que a tradição ocidental chama de nossas "obras", pelas quais construímos um mundo comum e, aparentemente, compartilhamos significações e valores.
De um lado, a obra é um objeto público; supõe que um certo dispositivo material permita transformar uma experiência singular, a do artista, em objeto passível de ser compartilhado.
De outro, a obra é um objeto sobrevivente que precisa poder encontrar em um suporte qualquer "uma perenidade capaz de transcender os limites do tempo e das pessoas". Duas características essenciais por que a obra coreográfica -se isso não for um oximoro-, como Pouillade mostra com precisão, provoca inquietação e hesitação. No final da leitura, ficamos imaginando se essa noção tão evidente, a "obra de arte", não passa de uma construção histórica e contingente, um fato revogável. Se bem que nós nos definimos muito menos como construtores de um mundo comum, onde o sentido é compartilhado, que como corpos mudos, corpos que sempre negam.

Este texto saiu no "Le Monde des Livres".
Tradução de Clara Allain.



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