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+Sociedade
Vozes indígenas
PELA PRIMEIRA VEZ, IBGE FARÁ O LEVANTAMENTO DE TODAS
AS LÍNGUAS FALADAS NO PAÍS; PARA CIENTISTAS SOCIAIS, PERGUNTA SOBRE O IDIOMA DOS ENTREVISTADOS NO CENSO DE 2010 REFLETE MUDANÇAS NA SOCIEDADE BRASILEIRA
E EM SUA IDENTIDADE, CADA VEZ MENOS "MONOGLOTA, CATÓLICA, MESTIÇA, HETEROSSEXUAL E CORDIAL"
JOÃO PAULO GONDIM
JOSÉ ORENSTEIN
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Em 2010, o Brasil saberá pela primeira vez
na sua história o número oficial de línguas indígenas faladas
em seu território. No Censo a
ser realizado no ano que vem
pelo IBGE (Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística), um
quesito específico vai levantar
essa informação.
Estima-se que no país sejam
faladas cerca de 220 línguas
além do português. Dessas,
cerca de 190 são indígenas e as
demais vieram com imigrantes
ao longo dos séculos 19 e 20.
Duas pesquisas piloto já foram feitas entre julho e novembro de 2008, e em setembro
deste ano um Censo experimental ocorrerá em Rio Claro
(SP) para testar, entre outras
coisas, o novo quesito linguístico. Quando o entrevistado pelo
Censo do próximo ano declarar-se indígena, serão feitas
perguntas sobre sua língua.
É um passo importante para
acompanhar o processo de
afirmação da diversidade brasileira, na avaliação do antropólogo Otávio Velho, da UFRJ
(Universidade Federal do Rio
de Janeiro). "Trata-se de aceitar cada vez mais o Brasil como
um país plural formado por
muitos grupos que possuem
sua própria identidade; é um
país onde a interpluralidade
predomina."
A última vez em que foram
produzidos dados oficiais sobre os idiomas no país foi em
1950. O objetivo daquela pesquisa era ter um controle sobre
os imigrantes que viviam no
Brasil, em razão da Segunda
Guerra Mundial (1939-45).
Na época, não se falava em
pluralismo ou multiculturalismo, tampouco se valorizavam
línguas diferentes do português. Pensava-se num país monoglota, católico, mestiço, heterossexual e cordial.
Agora, a situação é diferente.
Segundo o professor de história na UFRJ Manolo Florentino, a redemocratização pós-ditadura (1964-85) e o novo arcabouço político-jurídico implantado com a Constituição
de 1988 criaram "instrumentos
que oferecem vantagens efetivas àqueles que se autodefinem
como indígenas: o acesso à terra, por exemplo".
Um dispositivo constitucional, porém, "não é nada se você
não tem uma luta social para
implementá-lo", argumenta o
professor de filosofia na Unicamp (Universidade Estadual
de Campinas) e colunista da
Folha Marcos Nobre.
Os conflitos recentes na demarcação das terras de Raposa/Serra do Sol, em Roraima,
são exemplos de que os índios,
com suas terras, costumes e
cultura, "ainda são vistos como
um risco à integridade da nação
por muita gente".
O processo de autoafirmação
indígena se segue a movimentos de afirmação racial, ao crescimento no número e na visibilidade de evangélicos e à organização dos homossexuais na
luta por seus direitos. Nesse período, os indígenas foram ganhando espaço e se fizeram ouvir em suas reivindicações.
"Seria muito estranho imaginar um Brasil imóvel e hermético, sobretudo num mundo
globalizado", diz Florentino.
Para Marcos Nobre, trata-se
de um processo de democratização geral da sociedade. "Há
uma aliança de movimentos
sociais distintos, mas com objetivos muito parecidos. Da mesma forma que os homossexuais, as populações indígenas
querem ter reconhecida como
digna sua forma de vida."
Finalmente "há um reconhecimento por parte do Estado da
diversidade linguística e cultural, mas que é fruto de uma conquista, de pelo menos 20 anos
de lutas", analisa a linguista
Bruna Franchetto, do Museu
Nacional da UFRJ.
O levantamento dos idiomas
pelo IBGE foi sugestão do Grupo de Trabalho sobre Diversidade Linguística, liderado pelo
Iphan (Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional).
Após reuniões em 2006 e 2007,
o grupo de trabalho propôs
uma série de ações para a valorização das línguas no Brasil.
Com a realização do inventário
nacional, espera-se transformar os idiomas em patrimônio
imaterial.
"Com a perda da diversidade
linguística, perde-se a diversidade cultural e, consequentemente, perde-se muito da criatividade humana", afirma o linguista da UnB (Universidade de
Brasília) Aryon Rodrigues, que
é um dos pioneiros da pesquisa
de línguas indígenas no Brasil e
participou do grupo de trabalho do Iphan.
Outras fontes
Linguistas e missionários
vêm mapeando a situação das
línguas no Brasil, no vácuo das
informações oficiais sobre o assunto. Além da lista elaborada
pelo linguista Aryon Rodrigues,
há duas outras fontes para o
quadro geral linguístico do
país.
Em fevereiro deste ano, a
Unesco lançou um atlas de línguas ameaçadas de extinção em
todo o mundo. Só no Brasil foram contabilizados 190 idiomas, com graus variados de risco de desaparecimento. Os dados foram reunidos a partir de
uma compilação de pesquisas
anteriores feitas por diversos
linguistas, e que por isso muitas
vezes são irregulares.
Bruna Franchetto e Denny
Moore, linguista do Museu Paraense Emilio Goeldi, lideraram a compilação no Brasil,
que classificou 45 línguas como
em risco crítico de extinção.
Também neste ano, em junho, foi lançada a pesquisa Ethnologue, feita pelo SIL (Summer Institute of Linguistics)
-uma organização cristã que
mapeia línguas pelo mundo visando à tradução da Bíblia. O
Brasil é um dos principais focos
de atuação dos missionários,
que, em muitos casos, são também linguistas.
Muitos acadêmicos, no entanto, criticam os métodos do
SIL por interferirem diretamente na cultura original dos
índios.
Colaboraram FLÁVIA MARTIN, LUIZA BANDEIRA e VITOR MORENO.
Os autores participaram da 47ª turma do programa de treinamento da Folha, que teve patrocínio de Philip Morris Brasil, Odebrecht e Oi.
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