São Paulo, domingo, 12 de julho de 1998

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MADE IN USA
O vazio da informação



O jornalismo está dominado hoje pela crítica de costumes e deixa em segundo plano a reportagem e a investigação
CONTARDO CALLIGARIS
especial para a Folha

Em um recente artigo do semanal inglês "New Statesman" (22/5/98), Nick Cohen -colunista do "Observer" de Londres- anunciou bombasticamente a "morte das notícias".
Seu diagnóstico, embora se refira à imprensa inglesa, parece valer genericamente para a imprensa européia e americana (norte e sul). Ele afirma e mostra que, desde os anos 50 e 60, as verdadeiras notícias -frutos do trabalho de reportagem e investigação- perderam espaço e valor. Foram e estão sendo substituídas pelas opiniões dos colunistas, pelas indiscrições sobre a vida privada das pessoas célebres e pelo jornalismo de costume. O jornalismo de costume são aquelas matérias, mais ou menos baseadas em questionários ou entrevistas, que anunciam que pegureiros gregos desconhecem enfarte, loiro goza melhor da vida, quem tem dois cachorros casa com dificuldade e por aí vai.
Assim, lembra Cohen, o cotidiano "The Independent", em crise, foi atacado pela concorrência: o ataque consistiu em tentar capturar seus colunistas mais importantes. Ninguém quis roubar Robert Fisk, destacado correspondente do jornal no Oriente Médio. Os leitores da Folha podem tentar a seguinte prova: enumerem os colunistas deste jornal que vocês lembram -passarão facilmente de cinco e provavelmente chegarão perto de dez. Agora façam o mesmo com os grandes repórteres: se passarem de Clóvis Rossi, eu acho (mas a diretoria não está comprometida) que merecem um mês de assinatura grátis.
Ora, nos anos 50, os jornalistas famosos (quanto menos na Europa) eram repórteres. Naquela época, na Itália, eu mal começava a ler o "Corriere della Sera", mas conhecia os nomes venerados dos repórteres Luigi Barzini e Indro Montanelli (este último naturalmente se transformou mais tarde em colunista -o que é normal, pois reportagem não é para aposentadoria).
Por que as coisas mudaram? Há duas ordens de razões classicamente evocadas.
Primeiro -comparadas com as opiniões, as indiscrições sobre as celebridades e as "pesquisas" de costume-, as notícias são evidentemente mais caras.
A esta constatação econômica se acrescenta um fator técnico: aumentou vertiginosamente, sobretudo na última década, a rapidez de circulação das informações. A presença de um repórter não proporciona ao jornal uma vantagem cronológica significativa. E a vantagem qualitativa (o olhar diferenciado do repórter) se torna um luxo perigoso, pois o repórter que se der o tempo da reflexão ou da investigação será batido pelas redações concorrentes, as quais, apesar de não terem repórter, são informadas quase em tempo real pelas agências de imprensa ou pela Internet.
Mas talvez haja uma terceira ordem de razões para esta mudança na imprensa, mais fundamental. O declínio das notícias poderia responder a uma mudança cultural. Os jornais estariam então simplesmente se adequando ao que seus leitores desejam.
Cohen culpa o pós-modernismo. Para o que ele chama de "filosofia cripto-conservadora pós-moderna", tudo aparece como uma construção ideológica. Nisto ele tem razão. Foi assim, aliás, que o pós-modernismo acabou com o cânone literário. Se a "Divina Comédia" é só o desabafo de um exilado político, representante da protoburguesia laica de Florença, ela não tem valor intrínseco e é tão relevante quanto as histórias de Batman.
No nosso caso, para Baudrillard, por exemplo, a guerra do Golfo foi um grande espetáculo televisivo; portanto -ele concluiu literalmente na época-, ela não aconteceu. As notícias seriam todas irrelevantes (espécie de não-eventos) por serem só mensagens ideológicas. Os leitores, em busca de alguma verdade, preferirão as tripas dos colunistas. Pouco importam as explosões das bombas indianas ou paquistanesas, esta notícia é uma construção ideológica racista e antiterceiro-mundista.
Esta explicação proposta por Cohen tem a vantagem de evitar o recurso fácil à presumida "burrice alienada" das massas que preferem opinião, jornalismo de costume, histórias cotidianas e indiscrições. Mas, a meu ver, tampouco a massa dos leitores é permeada pela filosofia pós-moderna.
Tenho uma hipótese um pouco diferente. Em um passado não tão remoto, todas as notícias políticas e sociais deviam ser perfeitamente abstratas (salvo para os governantes). "O exército do Conde d'Eu vai passar por aqui ao caminho do Paraguai!". E nós com isso? Concretamente só restava esconder os filhos machos jovens, mandar as mulheres para a serra com a vaca e as galinhas, enterrar o candelabro de prata e rezar.
Só com a aparição dos ideais democráticos as notícias começam a nos interessar concretamente, justificando, aliás, a existência da imprensa moderna.
Ora, acontece que, mesmo neste regime, em que somos solicitados a expressar uma vontade que se presume esteja no fundamento de todo, a experiência comum é a de nossa quase total distância da tomada de decisões e da ação concreta. Nosso poder permanece abstrato: ninguém consegue se representar o fio que vai das urnas até as escolhas políticas e sociais do governo, do congresso ou da comunidade internacional.
A experiência democrática, em suma, esbarra regularmente em um sentimento (justificado) de impotência e estranhamento. As notícias de cada dia parecem afastadas do alcance de nossa ação, como boletins meteorológicos.
Não é inverossímil, neste contexto, uma reação de desinteresse pelos fatos trazidos pelas notícias, por eles serem abstratos (entende-se, abstratos de nossa vontade política concreta, a qual é solenemente encorajada a se expressar).
Também torna-se compreensível um aumento de interesse (fato ao qual Cohen não dá o devido peso) pelas notícias de crônica local: elas nos envolvem concretamente como possíveis agentes. Mesma coisa para as "pesquisas" de costume. A indignação do colunista levanta a voz de nossa própria raiva. Mais: expondo (um pouquinho) suas tripas enquanto comenta um fato, o colunista opera uma mediação: ele aproxima de nós uma realidade que nas notícias resulta abstrata. As indiscrições sobre personagens famosos ou, melhor ainda, sobre políticos, têm a mesma função. Entende-se assim o mistério pelo qual o dito escândalo na Casa Branca foi a ocasião da subida do presidente americano nas pesquisas de opinião.
Há duas conclusões. Primeiro, a crise das notícias é provavelmente efeito de um mal-estar (ou de um impasse) do exercício democrático. E a democracia fracassa se os cidadãos perdem a noção de seu vínculo concreto com os acontecimentos políticos e sociais. Segundo, além de mostrar "Caras" e tripas, "pesquisar" os costumes e oferecer crônicas de bairro, a imprensa tem a difícil tarefa democrática de inventar formas de reportagem e portanto de notícias que criem ou mantenham no leitor o sentimento de que o mundo não lhe é alheio.
Para continuar, não percam "The Granta Book of Reportage", anunciado pela (extraordinária) revista inglesa "Granta" para agosto.


Contardo Calligaris é psicanalista e ensaísta, autor de "Hello Brasil" (Escuta) e "Crônicas do Individualismo Cotidiano" (Ática).
E-mail: ccalligari@aol.com



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