São Paulo, domingo, 12 de agosto de 2001

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+ brasil 502 d.C.

Simmel, o proteiforme

Luiz Costa Lima


Simmel discordava da atuação do filósofo profissional: tratar apenas de temas já consagrados o levaria à esterilidade


Para quem suponha conhecer Georg Simmel a partir de sua leitura mais divulgada, a norte-americana, parecerá herético não ser ele fundamentalmente considerado um sociólogo. Essa é uma das boas surpresas que reserva o livro excepcional de Leopoldo Waizbort: "As Aventuras de Georg Simmel" (editora 34). Sem negar sua posição de um dos fundadores da sociologia alemã, havendo sido reconhecido como tal nos EUA, ainda no fim do século 19, Waizbort acentua que seu empenho pela disciplina nascente se restringiu a um período relativamente curto, respondendo a uma busca de inserção social, afinal frustrada. Empenho e busca intimamente relacionados: livre-docente (a tradução mais próxima para a "Habilitation" alemã) em 1885, Simmel está desde então "habilitado" a ensinar, sem que a universidade que o recebesse estivesse obrigada a estabelecer um vínculo empregatício.
É nessa condição precária que oferece cursos na Universidade de Berlim até 1914. Só então consegue um posto estável, em uma universidade menor, a de Estrasburgo, cidade em que morre em 1918. Tinha então apenas 56 anos.
Durante a primeira metade da década de 1890, Simmel acreditara que, dedicando-se à ciência nascente, suas chances de profissionalização seriam maiores. Contudo o anti-semitismo foi mais forte que o empenho de um Max Weber. Por isso, em carta de 1899, Simmel reconhece explicitamente: "Vejo na filosofia a tarefa de minha vida e pratico a sociologia de fato apenas como uma atividade paralela". Como bem escreve Waizbort: "(Para Simmel) a sociologia, na qualidade de "exata", se situa entre as questões de teoria do conhecimento, que (estão), por assim dizer, aquém da sociologia, e as questões metafísicas, que (estão) além da sociologia".
Assim, seus dois tratados de sociologia -a chamada "grande sociologia", "Sociologia - Investigações sobre as Formas de Socialização" (1908), e a "pequena", "Questões Fundamentais da Sociologia (Indivíduo e Sociedade)" (1917)- representam o resgate de "uma dívida para com o projeto dos anos 90" (Waizbort). Seria de todo modo parcial resumir seu interesse pela sociologia como tão-só provisório e guiado por motivos, conquanto legítimos, pragmáticos. Ao qualificá-lo de proteiforme procuramos escapar do equívoco. Embora sua qualificação universitária tivesse sido em filosofia, Simmel discordava da atuação do filósofo profissional: tratar apenas de temas já consagrados o levaria à esterilidade. O interesse de Simmel pelas "formas de socialização" tanto respondia à busca de adquirir um posto como à tentativa de fazer com que a reflexão filosófica circulasse entre os temas e perspectivas abertos pela sociedade em que vivia. Daí a questão que será seu verdadeiro "leitmotiv": a mudança de perfil do indivíduo em uma sociedade progressivamente monetarizada. Já no ensaio "O Dinheiro na Cultura Moderna" (1896), escrevia: "As correntes da cultura moderna deságuam em duas direções aparentemente opostas: por um lado, no nivelamento, no aplainamento, na produção de círculos sociais cada vez mais abrangentes (...); e, por outro lado, no realce do que há de mais individual, na independência da pessoa, na autonomia de sua formação ("Ausbildung'). E as duas direções são implementadas pela economia monetária (...)" (trad. de Leopoldo Waizbort, ligeiramente modificada).

Escrita ensaística
Não se tratava, pois, de estabelecer uma relação causal e puramente negativa entre economia monetária e a perda daquela individualização que aprendera a apreciar em Goethe. A Simmel repugnam as explicações causalistas porque incapazes de apreender a complexidade das questões em jogo. Se prefere o procedimento da "constelação" -opção que seu ex-aluno Walter Benjamin radicalizará-, se, de antemão, sua opção pela forma do ensaio se choca, como bem nota Waizbort, contra o espírito de sistema da "ciência exata", é por compreender que o espírito do método lineariza seu objeto. Isso se lhe evidencia quanto mais sua matéria de eleição, o mundo moderno, se funda na base do dinheiro. Ressaltemo-lo, de modo ligeiro, recorrendo a seu "opus magnum", "A Filosofia do Dinheiro" (1900): "Não há símbolo mais significativo do que o dinheiro para o absoluto caráter dinâmico do mundo". Para desenvolvermos sua afirmação, precisamos voltar algumas páginas atrás. A vida humana, dizia então, é guiada por dois princípios antitéticos: o rítmico-simétrico e o espontâneo-individualista (embora modificado, o binarismo continuará a ecoar em seu ensaio sobre Rembrandt, de 1916). Ora, a importância crescente do dinheiro na vida cotidiana transtornará a concretização social daquelas tendências. Dinâmico por definição, não sujeito a manifestar alguma substância, portanto sem uma forma predefinida, o dinheiro corrói as sociedades que se constróem sobre a simetria e a estabilidade. Daí o antagonismo entre as tendências aristocrática e individualista. Contudo o aristocratismo liberal inglês contraria o ritmo assumido pelas aristocracias anteriores: "(...) Encontra a expressão típica e, por assim dizer, orgânica de seus motivos preferidos na assimetria (...)". Ora, essa tentativa de combinar as duas tendências, por certo estimulada pelo tempo em que se dá a expansão territorial e econômica do império, só poderia provocar desequilíbrios, pois "o dinheiro (...) parece servir à expressão apenas de uma destas formas opostas". O dinheiro assim -e Simmel acentua a propriedade de chamar-se "líquido" o dinheiro em circulação- se torna, por um lado, o meio decisivo para "transpor o ritmo supra-individual", isto é, estímulo para a individualidade livre e, por outro, favorecedor de "uma técnica extremamente eficiente de despotismo". E isso porque, sendo um instrumento que se converte em fim em si mesmo, o dinheiro não tem preferência por senhores, partidos ou regimes. "O dinheiro é o símbolo, no mundo empírico e estreito, da indizível unidade do Ser, a partir da qual flui o mundo, em toda a sua amplitude, diversidade, energia e realidade" (com sua referência ao Ser, a frase não seria assinada por um sociólogo).

A tragédia da cultura
A recorrência às pequenas passagens da "Philosophie des Geldes" se impôs para compreendermos com maior economia a posição assumida por Simmel quanto à individualidade no mundo moderno. Já dissemos que não via a monetarização do mundo, isto é, o primado da economia, meramente como um desastre. Mas também não reconhecia o desastre? Sim, nas palavras de Waizbort "o incremento da liberdade interior é concomitante ao incremento do nivelamento exterior. Quanto mais o homem moderno é nivelado no mundo exterior, mais ele se recolhe à sua interioridade" (como não lembrar as descrições posteriores de Benjamin sobre o antiquário e o burguês atrás de seu balcão?). Daí a tragédia da cultura, objeto de ensaio de 1911: a circulação crescente da economia monetária favorece a "cultura objetiva" (a criação e o fascínio fetichista por novos objetos) sem o desenvolvimento concomitante da cultura subjetiva: "O desenvolvimento dos sujeitos só pode agora seguir o caminho tomado pelos objetos".
O indivíduo se torna quantitativo. Mas a ambiguidade própria ao dinheiro ainda lhe permitia pensar na possibilidade de advento de uma sociedade favorecedora do "indivíduo qualitativo", que já encontrava enunciado em Goethe, e terminar sua "pequena sociologia" com a esperança utópica de uma sociedade que o favorecesse. No campo, contudo, das relações sociais presentes, a preservação da imagem positiva do indivíduo se encerra na arte. Na arte, o indivíduo encontraria um meio de resistência -no tempo de Rembrandt, contra a abstração e a simetria, hoje, contra a quantificação. O que se daria porque a arte, mantendo-se ligada ao mundo, ao mesmo tempo evitaria submeter-se a ele.
É assim que interpretamos o que afirma no excurso "Que Vemos na Arte?", parte de um dos últimos capítulos de seu livro sobre Rembrandt: "A realidade e a arte são duas possibilidades coordenadas de configuração para um conteúdo idêntico".
A formulação, embora extremamente importante, por certo não é bastante. A arte, que, para Simmel, ainda se apresentava como meio de resgate do "indivíduo qualitativo", mostrará, ao contrário, ao longo do século, em figuras como Kafka, Beckett e Celan, a escalada do desespero.
Apesar disso, o postulado de Simmel não perde sua relevância. Ela está tanto em romper com o causalismo sociológico, criador de uma rua de mão única -a arte é uma forma de elaboração do que aparece na realidade, contra o que Simmel advertia: "A aparência ainda pertence à realidade como as sombras ao mundo dos corpos..."-, quanto em superar, mesmo que só parcialmente, os binarismos imanentistas de contemporâneos seus, como os teóricos da arte Wölfflin e Worringer.
Ao assim fazer, concretiza por que, para ele, a indagação sociológica era um meio de revigorar a reflexão filosófica; de propor, contra a estreiteza das especializações, sua conversão em uma "cultura filosófica": algo que estende a especulação dos filósofos às questões que emergem a cada dia (isso se mostra até pelo título de ensaios de "Philosophische Kultur", de 1911; entre eles, "A Aventura", "A Moda", "O Coquetismo", "A Ruína", "A Cultura Feminina").
Assim entendida, a citação de "Que Vemos na Arte?" admite outra ênfase: ênfase não mais na salvação do indivíduo, mas sim no poder que tem a arte, mesmo pela visualização da negatividade dilaceradora do próprio corpo -pense-se em Samuel Beckett-, de ser não só denúncia e resistência, mas um meio de criação: a linguagem. Criação resistente ao próprio princípio de individualidade, pedra de toque para a meditação de Simmel.
Tudo aquilo que se escreveu exigiria outro desenvolvimento. Justifica-o ter sido o modo que tivemos de apontar para um livro raro. E raro não só em língua portuguesa.


Luiz Costa Lima é ensaísta, crítico e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ), autor de "Vida e Mímesis" (ed. 34) e "Mímesis - Desafio ao Pensamento" (Civilização Brasileira), entre outros. Escreve mensalmente na seção "Brasil 502 d.C.".



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