São Paulo, domingo, 12 de agosto de 2001

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Santa romanesca

"Joana d'Arc", de Mark Twain, faz da heroína medieval francesa uma personagem do século 19

Fábio de Souza Andrade
especial para a Folha

Mark Twain, que ficará por ter encontrado o épico no dia-a-dia do Mississippi, se deixou impressionar por tudo de romanesco, quase mítico, que há na trajetória fulgurante de Joana d'Arc, dedicando-se a uma biografia romanceada da Donzela de Orléans. Em 1429, aos 17 anos, Joana saltou sem escalas de camponesa de vilarejo ao posto de comandante do Exército francês, lutando contra a ocupação inglesa. Desarmou o cerco a Orléans e fez coroar em Reims um acuado delfim, depois Carlos 7º, em obediência e respeito a ordens ditadas por vozes divinas, pessoalmente dirigidas a ela.
Capturada pelo inimigo, abandonada à própria sorte pelos aliados, foi julgada herege pela Inquisição e queimada viva antes do vigésimo aniversário. Os capítulos que se seguiram ao desfecho trágico de sua breve carreira de gênio militar e ingenuidade política completam o interesse único do percurso excepcional: reabilitação por um tribunal da igreja, 20 anos depois da morte, e canonização, cinco séculos mais tarde.
O criador de "Tom Sawyer" não foi o primeiro nem será o último a ser seduzido pelo apelo dramático irresistível de sua vida, que recebeu versões ilustres como as de Schiller e Bernard Shaw, além das cinematográficas de Carl Dreyer e Rossellini (para não falar das recentíssimas, mais fracas, de Luc Besson e Christian Duguay). A ossatura dos fatos chegou-nos também em estado documental, nos autos do julgamento, que vieram a público em meados do século 19. Mesmo respeitando esses registros, o forte da Joana de Mark Twain (1835-1910) não é o trabalho de pesquisa ou de erudição, mas uma história bem contada.
O expediente narrativo escolhido -acompanhar Joana da infância à fogueira pelos olhos de um companheiro de meninice, narrador testemunha que se junta a sua campanha- empresta aos fatos um colorido novo, em que o apelo realista, concretizante, convive com o gosto pelos contrastes fortes característicos do humorista de "Um Ianque na Corte do Rei Artur". Um séquito de conterrâneos de Domrémy, aldeia de origem, convertidos em membros da guarda de honra, ajuda a construir uma personagem irremediavelmente fiel à causa popular, não se deixando corromper pelas honrarias ou pela convivência com o poder.
Comparado à "Santa Joana" de Bernard Shaw (1856-1950), o romance distancia-se bastante do contexto medieval. Não há nada mais diverso de Twain do que um historiador das mentalidades. As relações entre o poder temporal e secular na Idade Média, as tensões entre feudalismo, vocação universalista da igreja e sentimento nacional em emergência são anacronicamente apagadas por um bom senso típico do homem da virada do século 19. A retidão moral de Joana, seu senso de justiça precoce, a coragem física incompatível com o perfil miúdo, sua modéstia e fidelidade à causa francesa são tratados como virtudes do indivíduo, modernas; o conflito entre Joana e a igreja, por exemplo, é personalizado nas suas relações com o bispo de Beauvais, Pierre Cauchon, satanizado pela pena de Twain.
Na visão de Shaw, apesar de santa católica, Joana foi uma mártir do protestantismo, que não reconhecia na "igreja militante" um intermediário necessário às suas relações com a "igreja triunfal", e do feminismo, mulher em domínios tipicamente masculinos, como os negócios de Estado e a guerra. Se para Twain o julgamento é um episódio escandaloso porque repleto de irregularidades processuais, Shaw conclui que o escândalo (e o horror) é tanto maior porque os juízes agiram com imparcialidade, enxergando o potencial explosivo para a autoridade da igreja da heresia por ela representada.
O sabor da versão de Twain está no romanesco, nos lances inusitados que fazem do pajem da Donzela assistente de escrivão em seu julgamento, no destaque que dá a imagens como a da árvore das fadas de Domrémy, distribuindo em dose menor o poder visionário de Joana entre seus conterrâneos. Sua genialidade, a capacidade de ver antes e melhor que os demais, sem treinamento ou educação que justificassem esse dom, é interpretada racionalmente, mas sem a mão pesada do cientificismo psicanalítico. A incapacidade (ou vontade inconsciente) de não compreender as tramas políticas em que se viu envolvida, por outro lado, também toma corpo de maneira atraente, ganhando também para o biógrafo a simpatia cúmplice do leitor que Joana d'Arc, a personagem, traz de berço.


Fábio de Souza Andrade é professor de teoria literária na USP e autor de "O Engenheiro Noturno -A Lírica Final de Jorge de Lima" (Edusp).



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