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Santa romanesca
"Joana d'Arc", de Mark Twain, faz da heroína
medieval francesa uma personagem do século 19
Fábio de Souza Andrade
especial para a Folha
Mark Twain, que ficará por
ter encontrado o épico no
dia-a-dia do Mississippi, se
deixou impressionar por tudo de romanesco, quase mítico, que há
na trajetória fulgurante de Joana d'Arc,
dedicando-se a uma biografia romanceada da Donzela de Orléans. Em 1429,
aos 17 anos, Joana saltou sem escalas de
camponesa de vilarejo ao posto de comandante do Exército francês, lutando
contra a ocupação inglesa. Desarmou o
cerco a Orléans e fez coroar em Reims
um acuado delfim, depois Carlos 7º, em
obediência e respeito a ordens ditadas
por vozes divinas, pessoalmente dirigidas a ela.
Capturada pelo inimigo, abandonada à
própria sorte pelos aliados, foi julgada
herege pela Inquisição e queimada viva
antes do vigésimo aniversário. Os capítulos que se seguiram ao desfecho trágico de sua breve carreira de gênio militar e
ingenuidade política completam o interesse único do percurso excepcional:
reabilitação por um tribunal da igreja, 20
anos depois da morte, e canonização,
cinco séculos mais tarde.
O criador de "Tom Sawyer" não foi o
primeiro nem será o último a ser seduzido pelo apelo dramático irresistível de
sua vida, que recebeu versões ilustres como as de Schiller e Bernard Shaw, além
das cinematográficas de Carl Dreyer e
Rossellini (para não falar das recentíssimas, mais fracas, de Luc Besson e Christian Duguay). A ossatura dos fatos chegou-nos também em estado documental, nos autos do julgamento, que vieram
a público em meados do século 19. Mesmo respeitando esses registros, o forte da
Joana de Mark Twain (1835-1910) não é o
trabalho de pesquisa ou de erudição,
mas uma história bem contada.
O expediente narrativo
escolhido -acompanhar
Joana da infância à fogueira pelos olhos de um
companheiro de meninice, narrador testemunha
que se junta a sua campanha- empresta aos fatos
um colorido novo, em
que o apelo realista, concretizante, convive com o gosto pelos contrastes fortes
característicos do humorista de "Um
Ianque na Corte do Rei Artur". Um séquito de conterrâneos de Domrémy, aldeia de origem, convertidos em membros da guarda de honra, ajuda a construir uma personagem irremediavelmente fiel à causa popular, não se deixando corromper pelas honrarias ou pela convivência com o poder.
Comparado à "Santa Joana" de Bernard Shaw (1856-1950), o romance distancia-se bastante do contexto medieval.
Não há nada mais diverso de Twain do
que um historiador das mentalidades. As
relações entre o poder temporal e secular
na Idade Média, as tensões entre feudalismo, vocação universalista da igreja e
sentimento nacional em emergência são
anacronicamente apagadas por um bom
senso típico do homem da virada do século 19. A retidão moral de Joana, seu
senso de justiça precoce, a coragem física
incompatível com o perfil miúdo, sua
modéstia e fidelidade à causa francesa
são tratados como virtudes do indivíduo,
modernas; o conflito entre Joana e a igreja, por exemplo, é personalizado nas suas relações
com o bispo de Beauvais,
Pierre Cauchon, satanizado pela pena de Twain.
Na visão de Shaw, apesar de santa católica, Joana foi uma mártir do protestantismo, que não reconhecia na "igreja militante" um intermediário necessário às suas relações
com a "igreja triunfal", e do feminismo,
mulher em domínios tipicamente masculinos, como os negócios de Estado e a
guerra. Se para Twain o julgamento é um
episódio escandaloso porque repleto de
irregularidades processuais, Shaw conclui que o escândalo (e o horror) é tanto
maior porque os juízes agiram com imparcialidade, enxergando o potencial explosivo para a autoridade da igreja da heresia por ela representada.
O sabor da versão de Twain está no romanesco, nos lances inusitados que fazem do pajem da Donzela assistente de
escrivão em seu julgamento, no destaque
que dá a imagens como a da árvore das
fadas de Domrémy, distribuindo em dose menor o poder visionário de Joana entre seus conterrâneos. Sua genialidade, a
capacidade de ver antes e melhor que os
demais, sem treinamento ou educação
que justificassem esse dom, é interpretada racionalmente, mas sem a mão pesada do cientificismo psicanalítico. A incapacidade (ou vontade inconsciente) de
não compreender as tramas políticas em
que se viu envolvida, por outro lado,
também toma corpo de maneira atraente, ganhando também para o biógrafo a
simpatia cúmplice do leitor que Joana
d'Arc, a personagem, traz de berço.
Fábio de Souza Andrade é professor de teoria literária na USP e autor de "O Engenheiro Noturno
-A Lírica Final de Jorge de Lima" (Edusp).
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