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"A Lógica do Êxtase" faz uma retrospectiva dos trabalhos do artista midiático Arthur Omar desde os anos 70 até hoje
Imagens ausentes
Marcelo Guimarães Lima
especial para a Folha
Arthur Omar seria, segundo anúncio da exposição retrospectiva do artista no Museu de Arte
Moderna de Nova York em 1997, "talvez o mais
provocativo e prolífico artista midiático da
América Latina". "A Lógica do Êxtase - Os Filmes e Vídeos em 1000 Imagens", publicado pelo Centro Cultural
Banco do Brasil, é um catálogo da mostra recente, em
maio passado, realizada no Rio de Janeiro, mostra que o
artista qualificou de "retrospectiva prospectiva" na medida em que apresentava trabalhos desde os anos 70 até
os mais recentes "works in progress".
E também na medida em que tanto a retrospectiva
quanto o catálogo representariam uma releitura ativa
de um conjunto de trabalhos, os quais, pela natureza
mesma de seus meios e processos, existiriam em estado
(permanente) de fluxo.
Como escreveu um crítico: "Nada pode refrear o fluxo
de imagens, palavras, sons e idéias num filme de Arthur
Omar". Esse fluxo, podemos dizer, caracterizaria também as relações entre os diversos trabalhos, entre fases
distintas da história do artista e entre os meios diversos
empregados e explorados por Arthur Omar, do filme ao
vídeo, passando pela fotografia e a imagem digital e culminando, nesse caso, no livro como meio e processo.
"A Lógica do Êxtase" se quer, como afirmou seu autor, "não um mero leque de imagens já produzidas, mas
uma nova iconografia a partir delas".
Para Arthur Omar, a imagem é "meio, e não fim em
si" e, como tal, ponto de partida que pode ser retomado
em meios diversos. Nesse sentido, podemos dizer que o
artista reflete (retoma) o universo simbólico-material
da sociedade presente, na qual a imagem não é -ou
não é mais- experimentada como produto de um processo, criação ou invenção de um artífice, mas matéria-prima, algo "dado", como um ente ou uma "existência"
de gênero próprio.
Diante da imagem como meio dado, da imagem como matéria-prima, o reprocessamento, reivindicado
pelo artista, se torna o modo mais evidente e natural de
manipulação e articulação das imagens: o reprocessamento das imagens é assim método e finalidade e, nesse
sentido, as imagens tanto persistem idênticas como se
fazem -ou se tornam- sempre inéditas. Nesse último
caso, o modo de ser próprio da imagem seria o seu devir, e a imaginação, a faculdade de conhecimento do
processo como um todo e mesmo de todo o processo.
Mas o devir paradoxal das imagens na sociedade midiática de hoje se dá como equivalência universal (valor
de troca), como reiteração/repetição de uma mesma e
única substância. Nesse contexto, a imagem como entidade não devém, podendo apenas advir, como aparição. É de fato esse potencial "fantasmagórico" da imagem que pode revelar um outro lado seu, o avesso da visão, um dos focos centrais dos trabalhos de Arthur Omar, por exemplo, na sua antropologia imaginária,
cujo momento metodológico, melhor dizendo, metaimagético, seria justamente "a lógica do êxtase".
Nos trabalhos de Arthur Omar podemos observar
que se fundem e se confundem três questões centrais,
questões que se cotejam, por assim dizer, se acotovelam e se ferem mutuamente, se "conferem".
A questão da imagem é, por um lado, questão dos
meios de produção da imagem. Pensar a questão da
produção da imagem hoje é, inevitavelmente, pensar a
tecnologia em mudança e aquilo que faz os gêneros
como o cinema, o vídeo, a fotografia e que também
pode (ou não) desfazê-los. A questão da tecnologia está presente, não poderia deixar de ser assim, ainda e
quando o artista declara buscar "o primitivo", incluindo o primitivo da técnica.
Estética como êxtase
Pensar a imagem ela mesma, por outro lado, é pensar o que a imagem faz ou almeja: a questão da imagem como referente-referência,
significante-significado, signo e coisa, no contexto dos
filmes e vídeos e da fotografia de Arthur Omar, indaga
igualmente, com uma retórica própria em formação, a
questão da representação cultural e, nela, ou por meio
dela, a questão do Brasil e de sua arte. Finalmente, no
que diz respeito à questão da natureza dessas obras
em imagens, Arthur Omar retoma a noção da experiência estética como êxtase. Nela a obra de arte é vista,
é vivenciada, "fora de si", como uma espécie de limite
da existência, como a existência em seu limite. A criação artística se dá como atividade-limite: no limite do
sentido, no limite da linguagem.
A noção de experiência é noção central na arte de
Arthur Omar e uma chave possível para alguns de seus
aspectos de fundo. Para a filosofia, a experiência é função dos sentidos e seus objetos externos, por um lado,
e, por outro, do sentimento interno dos processos, das
afecções e atividades do próprio sujeito.
O êxtase como encontro (no dizer do artista: vibração) entre sujeito e objeto se dá aqui como o protótipo
da experiência. Esta é o centro do processo artístico e,
para reproduzi-la na matéria inerte da fotografia, do
filme, do vídeo, o artista recria/reinventa os próprios
processos técnicos da imagem na medida de uma experiência anterior à linguagem (incluindo a própria
linguagem artística): o experimental aqui diz respeito
ao sujeito, e não simplesmente ao objeto como objeto
da mediação técnica. Em Arthur Omar, o lógos da técnica é precisamente algo como um obstáculo a ser ultrapassado, matéria na qual o artista se apóia para o
seu "salto mortal", limite ela mesma na qual ele exerce
o seu esforço "desmesurado" ("ratio" = medida).
A "lógica do êxtase" é uma lógica do excesso. E podemos talvez adiantar a hipótese que o apelo dionisíaco e carnavalesco em Arthur Omar remeteria igualmente ao barroco como ancestralidade e destino da
arte brasileira. O barroco visava a dar forma ao infinito, a representar o irrepresentável: arte abissal tornada
possível por meio do supremo artifício do excesso.
"Não sou um artista multimídia porque não misturo
as mídias (...), não importo nenhuma lógica." Para
além da constatação de fato de seu processo de trabalho, a afirmação de Arthur Omar revela lucidez maior
de princípio, pois talvez a noção dos meios (mídia)
não tenha por si só a funcionalidade, o poder imediato
de elucidação que se lhe atribui o senso comum artístico do nosso tempo.
Para Arthur Omar a fotografia (a obra de arte) é "um
elo transmissor entre dois sujeitos", o experimental é a
experiência do outro, a experiência que o artista suscita no outro e aquela que experimentamos por intermédio do outro. Nesse sentido, a experiência do olhar
em Arthur Omar está próxima à da pintura como espaço de encontro, colisão, fusão, conflito e distanciamento entre o artista e seu outro.
A imagem emerge, ela própria, de uma cisão do real.
"Dentre os meus filmes, escreve o autor, "O Anno de
1798" [realizado em 1975, tendo por tema o episódio da
história do Brasil conhecido como Revolta dos Alfaiates" é aquele em que fica mais claramente exposta a
idéia de que a história não deixa traço. E que o essencial do tempo é irrecuperável e incognoscível".
Interior da imagem
Poderíamos talvez afirmar
que a obra de Arthur Omar é toda ela o cinema ausente, o cinema da ausência, cinema que se ausenta: a busca das imagens que não deixam traços.
"A Lógica do Êxtase", um catálogo, não é, certamente, o livro ao qual Arthur Omar se referia em uma entrevista como projeto de um volume híbrido dedicado
ao seu processo de criação. Falta talvez aqui aquilo a
que o próprio autor alude como uma leitura central
que nos transporte para o interior mesmo da imagem.
Claro está que essas são imagens de seus filmes e vídeos, mas, como escreve o próprio autor: "O êxtase é o
centro. O cinema dos tolos é o que come pelas bordas e
tem fé nos cantos". A concepção gráfica privilegia
aqui, "cremos", o quadro ou "enquadramento", isto é,
o retângulo e os limites que este impõe à imagem, enquanto a imagem em profundidade é, no dizer do autor, aquela que mostra seu avesso, seu outro lado.
Marcelo Guimarães Lima é diretor do Núcleo de Arte e Cultura do
Centro de Estudos e Pesquisas Armando de Oliveira Souza, em SP, e
ex-professor da Universidade de Illinois e do Instituto de Artes de
Chicago (EUA).
A Lógica do Êxtase
206 págs.
de Arthur Omar. Centro Cultural
Banco do Brasil (r. 1º de Março,
66, CEP 20010-000, RJ, tel. 0/xx/
21/3808-2020).
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