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Boca de Lobo
Neto de brasileiro, o português Lobo Antunes se queixa de ter sido transformado em monumento literário, alfineta Saramago e diz que no futuro o idioma pátrio será um dialeto
EDUARDO SIMÕES
DA REPORTAGEM LOCAL
E
m pouco mais de três
anos, quatro livros do
escritor português
António Lobos Antunes, 64, foram lançados ou relançados no Brasil pela editora Alfaguara/Objetiva.
Um novo título acaba de chegar, "Eu Hei-de Amar uma Pedra" (2004), e o autor, que não
vem há 24 anos ao país onde
nasceu seu avô, ensaia uma volta. "Sou um homem generoso.
Resolvi deixar o Brasil para Saramago, coitado, e ficar com o
resto do mundo", ironiza. "Mas
acho que vou começar a querer
o Brasil para mim."
Leia trechos da entrevista
que Lobo Antunes deu à Folha,
por telefone, de Lisboa.
FOLHA - O sr. recebeu recentemente o Prêmios Camões, e, aos poucos,
parece que se forma uma consenso
em torno da qualidade de sua obra,
para a qual faltaria apenas um Nobel. A idéia de unanimidade agrada,
incomoda ou pouco importa?
ANTÓNIO LOBO ANTUNES - Prêmios
não têm nada a ver com literatura. Não tornam os livros melhores nem piores. São uma
coisa midiática que dura muito
pouco tempo. São bons quando
trazem muito dinheiro. Mas
não se pode se ligar a esse negócio. Tantos grandes não ganharam nenhum prêmio...
FOLHA - Em "Eu Hei-de Amar uma
Pedra", um homem observa fotografias antigas e recorda fatos corriqueiros e experiências sentimentais. Como surgiu a idéia de ancorar
a narrativa em fotografias?
LOBO ANTUNES - Não estava pensando em narrativa nenhuma.
Como já disse outra vez, o que
quero é colocar a vida toda entre as capas do livro.
Esse foi um livro especial
porque foi o único que me veio
de fora para dentro. Haviam me
contado a história de um casal
velho que se encontra uma vez
por semana, durante 40 anos,
numa hospedaria de Lisboa.
Isso me impressionou, e o
ponto de partida foi esse. Depois, como em todos os livros, é
um processo de elaboração interior, grande parte do qual não
me é consciente. No começo eu
tinha uma narrativa, mas depois fiz como uma hiena e comecei a comer o corpo vivo daquilo. Então ficou tudo fragmentado, estilhaçado...
FOLHA - Mas o expediente de dividir os capítulos iniciais em "fotografias" também foi inconsciente?
LOBO ANTUNES - Em parte, sim.
Quando começo um livro, tenho muito pouca coisa, sou pobre como um morto. As coisas
vão vindo à medida que escrevo. Quer dizer, não tenho
idéias. São as palavras que geram as palavras.
Então tudo que tenho de fazer é treinar a mão. Mas normalmente as primeiras duas
horas são perdidas porque os
mecanismos conscientes ainda
estão muito vivos. A sua autocensura, a lógica etc.
Quando eu começo a ficar
cansado, então as associações
saem de forma mais livre, e o livro começa a descer.
FOLHA - "Eu Hei-de Amar..." saiu
em 2004 em Portugal. Ele destoa
bastante dos anteriores, por não tratar de Angola, da sua experiência
com a guerra. Foi uma ruptura intencional?
LOBO ANTUNES - É evidente que
os três primeiros livros estão
carregados de autobiografia,
como todos os primeiros livros.
Você, depois, necessita se libertar desta carga autobiográfica
para ser ainda mais profundamente autobiográfico, mas de
outra maneira. Não mais por
meio de fatos.
"Memória de Elefante" (Objetiva), "Conhecimento do Inferno" e "Os Cus de Judas"
(ambos Alfaguara) eram muito
ligados a acontecimentos e realidade imediatos. Tenho a sensação hoje de que precisava me
libertar para tentar coisas mais
ambiciosas...
FOLHA - E, nesse sentido, ele satisfez suas ambições?
LOBO ANTUNES - Acho que você
só pode começar um livro
quando está seguro de que não
pode fazê-lo. Lembro que,
quando comecei a escrever este
livro, pensava: "Para descrever
uma relação como esse casal tinha era necessária uma mão
muito delicada". E eu não achava que tivesse uma mão tão delicada assim para tratar dessa
relação com todo o respeito.
Porque as pessoas dos livros,
mesmo que sejam só vozes,
acabam por adquirir uma densidade tão carnal, tão humana
que, quando se está a trabalhar
neles, vive-se rodeado de fantasmas, que têm uma realidade
mais real do que as pessoas autênticas. E você nem sequer pode mandar neles porque o livro
é um organismo vivo e ele fura
o plano...
FOLHA - Sendo não imediatamente autobiográfico, "Eu Hei-de
Amar..." serve melhor à sua intenção de escrever um livro ligado a palavras, e não a idéias?
LOBO ANTUNES - O problema é
que um livro não se faz com
idéias, e sim com palavras. E isso está muito patente, por
exemplo, na poesia. E, por meio
das palavras, você provoca
emoções, mais do que idéias. A
adesão é emocional e afetiva
em qualquer obra de arte. O
melhor crítico de teatro é a
bunda. Quando a peça não é
boa, ela começa a doer.
FOLHA - O sr. tem medo de "perder a mão"?
LOBO ANTUNES - Meu único medo é sempre o mesmo: não desiludir as pessoas que tiveram
sempre em mim, desde quando
comecei, uma fé que nunca partilhei. E agora me transformaram nessa espécie de monumento, com todos esses prêmios, traduções em todo o
mundo... Então tenho cada vez
mais medo porque sei que um
dia posso começar a me repetir.
Eu tenho a impressão de que
uma pessoa nasce com um certo número de livros dentro dela. E é muito penoso, por vezes,
ver os livros finais de um escritor que escreve mais livros do
que aqueles com que ele nasceu. Quando começam a se tornar um pouco plagiadores de si
mesmos. Como os últimos de
Hemingway, Faulkner etc...
FOLHA - "Eu Hei-de Amar uma Pedra" se trata de uma história de
amor impossível?
LOBO ANTUNES - Não sei se os
amores são possíveis ou impossíveis. Uma história de amor é
uma coisa muito complicada.
Porque, se você não é capaz de
reinventar o cotidiano, então o
amor acaba.
Porque, numa história de
amor, nós exigimos sempre
duas coisas: por um lado, o cotidiano, a rotina. Por outro, a surpresa. E é muito difícil conseguir juntar as duas coisas. Não
deixar que uma relação naufrague no dia-a-dia e se transforme em hábitos instalados. Você
vai conhecendo tudo do outro
e, com o tempo, corre o risco de
vir a usura.
E aquilo que você vê hoje em
dia é que a maioria das pessoas,
homens e mulheres, vivem monogamias suicidas.
É evidente que teria adorado
viver uma relação de 30 anos
com alguém. Eu duvido que
pessoas como o Vinicius [de
Moraes], que se casou nove vezes, tenham sido felizes. Eu duvido, mas pode ser que sim...
FOLHA- Como se explica o fato de o
sr., que é neto de brasileiro, ter estado tão distante do Brasil?
LOBO ANTUNES - Eu sou um homem generoso. Resolvi deixar
o Brasil para Saramago, coitado, e ficar com o resto do mundo. Agora, falando a sério, o
Brasil me é tão próximo de sangue, porque meu avô nasceu aí
e se chamava António Lobo
Antunes. Mas, paradoxalmente, não tive nunca muita pressa
de ser publicado no Brasil.
Tinha a impressão de que ia
acontecer o mesmo que em
Portugal, onde fui muito criticado nos primeiros livros, até
agora se fazer esta unanimidade. Agora eu sou chuchu aqui.
Mas minha consagração, para usar uma palavra católica,
veio do estrangeiro. Dos EUA,
da Espanha, Alemanha, França. Mas meu avô foi vital para
mim. Foi o homem que mais
amei, o homem que mais amor
me deu. Eu era o filho mais velho do filho mais velho dele.
E fui um pouco educado à
moda do Brasil, em Lisboa. De
Belém do Pará. À maneira daquela parte do Brasil, conservadora, patriarcal... Eu saía para a
rua e tudo era diferente do que
se via em casa. Era estranho.
Estava fugindo sempre para a
casa do meu avô. De certa maneira isso tudo continua dentro
de mim desde a infância...
FOLHA - Há quantos anos o sr. não
vem ao país?
LOBO ANTUNES - Desde 1983. Há
24 anos não vou. Estou sempre
recebendo convites, mas para
mim é difícil trabalhar no Brasil. As tentações são muito
grandes. Mas estou pensando
em ir. São tantos os convites
que preciso aceitar. Acho que
vou começar a querer o Brasil
para mim... Mas estava pensando em ir para o ano. Por causa
dos prêmios, fui à Argentina,
Colômbia, México. E não ter
ido ao Brasil é uma injustiça
muito grande, porque devo
muito à cultura brasileira.
Os livros que eu lia em criança eram os do meu avô. Aluísio
Azevedo, Machado de Assis,
Raul Pompéia, tudo isso.
FOLHA - O sr. acredita ter influenciado escritores portugueses ou seria prematuro falar disso?
LOBO ANTUNES - Se você ler a literatura que se está fazendo, há
muita gente a escrever a la Lobo Antunes. É muito curioso isso. Mas talvez não seja mal começo, e espero que eles encontrem a voz deles... É mais ou
menos inevitável, mas não me
parece que seja saudável, porque se escreve e publica pouco
em países que têm clima bom.
Você encontra mais poesia
do que livros de prosa. Porque,
para escrever um livro desses,
tem de estar trabalhando como
um cão por dez anos.
E a maior parte dessas pessoas não é de escritores profissionais. São jornalistas, médicos, engenheiros, empregados
de escritório etc. Não têm tempo, não podem somente escrever quando chegam em casa.
É um trabalho como outro
qualquer, tem de trabalhar o
tempo todo nisso, senão aquilo
que se faz não é bom.
FOLHA - Quantas horas o sr. costuma trabalhar diariamente?
LOBO ANTUNES - Agora estou no
meu ritmo normal de 10, 11 horas por dia. Não há mérito nenhum, é só uma questão de disciplina, se se quiser fazer um
trabalho decente.
FOLHA - O sr. já afirmou que não é
uma figura institucional. Arriscaria,
no entanto, comentar a recente afirmação do seu conterrâneo José Saramago, de que no futuro Portugal e
Espanha serão um país só?
LOBO ANTUNES - Ele disse isso?
Bem, não comento as minhas
opiniões, que dirá a dos outros.
Acho que é inevitável que daqui a uns 500 anos nossa língua
seja um dialeto e vamos todos
provavelmente falar inglês.
Mas não estou preocupado
com isso. Acho extraordinário
que as pessoas tenham tantas
idéias. Eu não tenho muitas. E
sobretudo não sei fazer futurologia. Me sinto bem sobretudo
na minha língua. E nesta cidade
[Lisboa], por causa da sua luz...
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