São Paulo, Domingo, 12 de Setembro de 1999
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O historiador Evaldo Cabral de Mello investiga as origens da disparidade regional no Brasil em "O Norte Agrário e o Império"
Raízes da diferença

Patrícia Santos/Folha Imagem
O historiador pernambucano Evaldo Cabral de Mello em sua casa, no Rio de Janeiro


JOSÉ ROBERTO DE TOLEDO
enviado especial ao Rio de Janeiro

Preocupados em ser "profundos", os historiadores brasileiros abandonaram a narrativa e estão pagando um preço por isso: a perda de espaço entre os leitores. Essa é a opinião de um dos principais historiadores brasileiros, Evaldo Cabral de Mello, 63.
"O historiador, desde a Antiguidade Clássica, é apenas um cidadão cujo interesse consiste na história que ele conta", afirma Mello, que, ao contário da maioria de seus colegas, não é acadêmico, mas diplomata aposentado.
Enquanto isso, jornalistas que escrevem livros de divulgação histórica assumem as primeiras posições no ranking dos mais vendidos. Os três de Eduardo Bueno, por exemplo, sobre o período colonial brasileiro, estão entre os mais vendidos na categoria de não-ficção (leia na pág. 5-11). Nenhum historiador lhe faz companhia.
A Topbooks está relançando agora o segundo livro de Evaldo Cabral de Mello, "O Norte Agrário e o Império", de 1984.
Em meio à discussão sobre a ida da Ford para a Bahia, o relançamento é oportuno: a obra aborda o fim do Império, período em que a ação do Estado começa a pender a balança do equilíbrio regional para o Sul/Sudeste, em prejuízo do Norte/Nordeste.
O pernambucano, que se define como historiador regional, recebeu a reportagem da Folha em seu apartamento em Ipanema, na terça-feira passada.
Ele revelou seu processo de trabalho, criticou a historiografia nacional e adiantou o que pode vir a ser o tema de seu próximo livro: a guerra que libertou o Nordeste do domínio holandês - "obra gêmea" de seu último livro, "O Negócio do Brasil" (1998), em que ele contava como Portugal comprou esse pedaço do país à Holanda.

Folha - "O Norte Agrário e o Império" se ocupa do período de 1871 a 1889, e o sr. sustenta, logo no prefácio do livro, que foi nessa época que a balança do equilíbrio regional começou a pender para os Estados do Sul. O sr. poderia explicar esse processo?
Evaldo Cabral de Mello -
O processo de desigualdade já havia começado algum tempo antes de 1871. Mas esse é o tipo de processo que é difícil de datar. Desigualdade regional no Brasil você pode datar a partir da descoberta do ouro em Minas, no fim do século 17, começo do século 18. Foi o primeiro acontecimento que colocou essa região do Brasil na economia internacional. Até então só o que interessava à economia internacional eram Bahia e Pernambuco. A descoberta do ouro jogou essa região Centro-Sul no mercado internacional num momento que havia uma pronunciada regressão da economia do Nordeste. Já se sustentou que a descoberta do ouro em Minas teria incentivado a migração de escravos do Nordeste para o Centro-Sul, encarecendo a mão-de-obra e tornando a lavoura canavieira mais onerosa ainda.

Folha - Por que o sr. resolveu pegar esse período especificamente (de 1871 a 1889)?
Mello -
Esse é um tema (a desigualdade) muito longo. Primeiro, tem o problema de datação: quando é que começa? Em segundo lugar, você tem o problema que isso é um tema tão complexo e tão vasto que um indivíduo só dificilmente poderia fazer a pesquisa correspondente a todo o assunto. Ia levar a vida toda.

Folha - Foi seu segundo livro, não foi? E o sr. demorou dez anos...
Mello -
É, foram quase dez anos. Eu então resolvi me concentrar num período. E por que esse? Porque no fim do Império é que o Estado imperial começa a atuar -como se diz agora em Brasília- como indutor do desenvolvimento.

Folha - No caso, do Sul...
Mello -
Não. Só a partir de 1860, 1850, com as primeiras estradas de ferro, que foram rateadas por d.Pedro 2º, que o Estado começou a ter recursos para dar garantias de juros, dar outras vantagens, levantar empréstimos lá fora... Não adiantava eu procurar a disputa em torno das divergências regionais a propósito da capacidade de investimento do Estado no período anterior. Porque até 1850/60 o Estado brasileiro estava numa confusão tal que tratava apenas de se manter à tona. É a partir de 1850/60 que ele começa a ter condições de atuar. Então eu escolhi esse período. O segundo ponto: eu tinha que especializar a documentação, as fontes. Não podia ver tudo. Ou então eu teria que ler a imprensa periódica de Pernambuco, da Bahia e a do Rio de Janeiro, pelo menos.

Folha - Isso é um pouco a sua técnica de investigação. Acho que o sr. escolhe um período e tenta exaurir todas as fontes possíveis dele.
Mello -
Não, eu não exauri, justamente porque era impossível exaurir. Então eu tive que me concentrar nos anais do Parlamento do Império e nos relatórios dos ministérios ligados especialmente à área econômica, que eram os da Fazenda e o da Agricultura, que naquele tempo era Agricultura, Indústria e Comércio. Qual é o valor dessa documentação? É que o Parlamento do Império é o lugar onde eram tomadas todas as decisões. Em todo o caso, não havia documentação para você reconstituir certos aspectos importantes: debates dentro do próprio governo, a disputa entre os ministros dentro de cada gabinete. Não há documentação sobre isso. O que aparece sobre isso é o que está nos anais do Parlamento do Império. Isso raramente vinha à tona porque, como era regime parlamentarista, havia a ficção da solidariedade do ministério. Não era possível ver também os grupos de pressão, a não ser também por meio dos anais, onde eles faziam representações ao Parlamento.

Folha - O sr. procura mostrar essa mudança (do equilíbrio regional) por vários aspectos, como a questão da mão-de-obra.
Mello -
Uma vez resolvido o período e a documentação, eu tinha que isolar os temas de disputa regional que fossem mais frequentes. Porque não caberia escrever sobre tudo. Aí eu escolhi esses seis temas que foram realmente os principais: a abolição do tráfico interprovincial de escravos, a imigração estrangeira, o crédito à lavoura, os engenhos centrais, as estradas de ferro e os portos, e aquele último capítulo sobre o qual não havia nada -eu não encontrei nada, salvo uma crônica de Machado de Assis. Simplesmente não há um livro de história do Brasil, econômica ou o que seja, que se refira àquela disputa que houve em torno dos impostos provinciais, que era muito importante porque, na verdade, era uma disputa sobre o rateio da arrecadação entre o governo central e os governos provinciais.

Folha - A reedição do livro me parece bastante atual, porque a discussão sobre desequilíbrio regional está na crista da onda. Uma coisa que me chamou a atenção é que o sr. mostra que o Norte detinha a maioria do gabinete. De certa maneira, hoje no Congresso, o Norte e o Nordeste detêm uma força muito grande. E, no entanto, não conseguem -como na época não conseguiam- reverter isso em poder econômico, para aumentar investimentos. Ou o sr. acha que a situação é diferente hoje?
Mello -
É diferente, porque a capacidade do Estado é diferente etc. e tal. Mas é verdade que, apesar desse poder que eles tinham, eles não conseguiram inverter (no sentido de investir). Mas não conseguiram inverter por quê? Aí eu deixo em suspenso, porque eu não estava disposto a entrar num assunto que é de interesse teórico em matéria econômica: será que o Estado é suficiente para reverter um processo?

Folha - Aparentemente não.
Mello -
Aparentemente não. Mas evidentemente o Estado pode mexer com muita coisa. O Estado conseguiu criar um fluxo de migração estrangeira para São Paulo -o Estado imperial e o Estado da Província. Em relação ao Rio Grande do Sul e ao Prata, São Paulo estava em uma posição muito desfavorável. Porque o colono que vinha ia para o café, enquanto no Sul ele recebia propriedade. De modo que o Estado pode alguma coisa, tanto que para São Paulo ele funcionou.

Folha - Deixada às vias do mercado, a imigração não iria naturalmente para São Paulo?
Mello -
Eu não digo que não iria ninguém. Mas não teria ido na mesma proporção que foi. Foi uma ação subsidiária. E, mesmo quando o ministro Buarque de Macedo conseguiu acabar com a imigração subsidiada, que era uma maneira de o Norte protestar contra a disparidade, veio o governo do gabinete João Alfredo, cujo ministro da Agricultura era Antonio Prado, e voltou imediatamente com a imigração subsidiada como uma forma de transação entre o Norte e o Sul: dava engenho central para o Norte e dava imigração subsidiada para o Sul.

Folha - O sr. acha que a história explica a desigualdade regional de hoje?
Mello -
A história ajuda a explicar tudo, desde que você se dê ao trabalho de voltar no tempo procurando reconstituir todas as sequências causais. O problema é você poder falar da coisa com seriedade, dispondo do material, das fontes.

Folha - O "Norte Agrário" se ocupa de um período que é quase uma exceção na sua obra. Basicamente, a maioria dos livros fala do período de ocupação holandesa e suas consequências...
Mello (rindo) -
Eu não passei ainda de 1715...

Folha - Teve algum motivo para o sr. mudar de datas?
Mello -
Teve, teve. Eu tinha acabado de fazer o "Olinda Restaurada" e, quando você acaba um livro, dá sempre uma certa angústia, porque você tem a impressão de que não vai conseguir escrever mais nada, não vai se interessar, não vai encontrar tema. Aí você fica com uma certa ansiedade, obrigado a descobrir imediatamente um outro tema. Eu estava muito cansado do período holandês. E, conversando com José Antônio Gonsalves de Mello (seu primo e também historiador), ele me mostrou um artigo que tinha feito muitos anos atrás sobre o protesto regional. E era um tema que estava vivo na época. Hoje está voltando de novo com esse negócio da Ford na Bahia. Aí eu vi que era um negócio de enormes proporções. Eu vi que eu tinha que restringir o ângulo ao processo de discussão no Segundo Reinado, que eu espero ter conseguido reconstituir.

Folha - O sr. se considera um historiador regional. Mas todas as suas obras têm uma contextualização que sempre coloca Pernambuco ou o Norte em relação ao país, quando não em relação ao mundo, como em "O Negócio do Brasil", que, como já foi dito, é uma das raras contribuições da historiografia brasileira para a historiografia européia. Mesmo assim o sr. se considera um historiador regional?
Mello -
Não é culpa minha que a história regional tenha essas ramificações nacionais e internacionais. Essas ramificações não são uma invenção minha. São ramificações que você encontra ao longo da pesquisa histórica. O problema é que os historiadores brasileiros tendem a escrever história do Brasil como se só existisse o Brasil. O tema da imigração estrangeira é só tratado nos termos do Brasil. Nunca ninguém pensou, por exemplo, em fazer um estudo detalhado de como essa migração estrangeira para o Brasil no século passado se encaixava nos grandes movimentos demográficos da Europa naquele período. O problema é a limitação que a compartimentalização da história nacional cria. Mas, exatamente porque eu sou historiador regional, eu sou capaz de ver essas ramificações não-nacionais. Provavelmente, se eu fosse um historiador nacional, eu teria me aquietado com as fronteiras do país e não teria procurado extrapolá-las.

Folha - Quais o sr. diria que são os principais historiadores brasileiros vivos?
Mello -
Há vários. José Murilo de Carvalho, Fernando Novais, Carlos Guilherme Mota, João José Reis, Luiz Felipe Alencastro. É o que não falta.

Folha - E quais são hoje os principais buracos da historiografia brasileira?
Mello -
Eu inverto a sua pergunta: a historiografia brasileira é um buraco, apenas há pontos que são mais aterrados. Tudo mundo gosta de falar de história do Brasil, mas ninguém quer pagar o ônus da pesquisa histórica. É uma coisa chata. É uma coisa que custa dinheiro. Tem esse negócio de você ir aos arquivos, onde os serviços de infra-estrutura, tanto aqui quanto em Portugal, são muito fracos. A maior parte da historiografia brasileira que se escreveu da Independência para cá carece muitas vezes de embasamento documental. São muito poucos os grandes historiadores brasileiros que foram também grandes pesquisadores.

Folha - Quais?
Mello -
O primeiro deles, (Francisco Adolfo) Varnhagen, foi um grande pesquisador, conheceu tudo, viu tudo. (João) Capistrano (de Abreu) também, embora tivesse a limitação de que ele nunca saiu do Brasil, de modo que ficava chateando as pessoas em Portugal para copiar documento, procurar documento para ele e mandar. Todos esses empecilhos já estão sendo levantados hoje, com a facilidade do fax, desses CD-ROMs que vão reproduzir documentos e que vão permitir a você trabalhar em casa. Daqui a alguns anos ninguém irá mais a arquivo para consultar documentos, você terá tudo em casa. Mas é muito difícil de fazer porque, sobretudo no Brasil, tudo desencoraja a fazer pesquisa histórica, inclusive o fato de você estar longe. Eu imagino que, se eu não tivesse ido ser diplomata, eu nunca teria sido historiador. Porque simplesmente eu não teria as facilidades que eu tive de pesquisa.

Folha - O sr. diria que a maioria do material que o sr. pesquisou para fazer os seus seis livros está no Brasil ou em Portugal?
Mello -
A maioria está em Portugal. Mas, evidentemente, há uma enorme quantidade de documentos aos quais você tem um acesso fácil, porque já foram publicados em livros. Mas em um dos meus livros, "A Fronda dos Mazombos", toda a documentação é manuscrita. Eu ia todo dia ao Arquivo Ultramarino (em Lisboa) apenas para selecionar os documentos e encomendar a sua microfilmagem. Depois eu mandava reproduzir em papel, no tamanho original, os documentos. E então eu ia ler o documento em casa, à noite e no fim-de-semana. Eu pegava cada documento mais interessante e copiava, que é uma das melhores coisas, e que as pessoas não querem fazer mais porque dá trabalho. É a velha técnica dos historiadores do século 19. Copiando, a sua apreensão do documento é muito mais completa do que se você só ler o documento. Se você pega um documento que já vem prontinho, você acaba pegando pela rama, lhe escapam coisas que normalmente não escapam quando você se detém no documento.

Folha - E o sr. ficha essas informações?
Mello -
Não.

Folha - E como o sr. faz para se lembrar?
Mello -
Você escreve. Eu sou incapaz de escrever um livro de história de fio a pavio. Normalmente se faz toda a pesquisa e, depois, você redige o livro. Isso para mim é impensável. Se eu fizesse assim, eu só faria a pesquisa. Porque no momento em que eu tiver acabado de fazer a pesquisa eu já conhecerei o assunto e não me interessaria absolutamente em escrever. Eu faço o livro como quem arma um "puzzle" (quebra-cabeça). Você não inicia necessariamente pelo primeiro capítulo. Eu inicio por aquilo que está primeiro me interessando mais. O próprio documento vai lhe sugerindo os caminhos. Ou você faz a coisa com prazer ou não faz. Há muitos aspectos que só me ocorrem depois de ter começado a escrever: eu reúno uma certa quantidade de material e me vem uma série de idéias. No processo de desenvolver aquelas idéias, me ocorrem outras coisas e eu volto para a documentação. De modo que é uma ponte aérea entre o documento e a redação. Se não, é um caso de apatia intelectual. Eu não sei como uma pessoa é capaz de fazer pesquisa durante um ano ou dois sem lhe dar a necessidade de articular alguma coisa em relação aquilo que você já leu. É excesso de organização.

Folha - Como é ser um historiador fora da academia? Ajuda ou atrapalha?
Mello -
Tem vantagens e desvantagens. A academia, como toda instituição, tem suas idéias. Se a instituição lhe dá uma série de facilidades e de estímulos, ela também cerceia sua iniciativa ou pelo menos lhe coloca uma camisa-de-força, quando mais não seja pelo formato da monografia.

Folha - O sr. nunca partiu de uma tese para ser confirmada?
Mello -
A certa altura da pesquisa surgem as hipóteses, aí você confirma ou não, mas, em princípio, eu chegava à documentação apenas pelo interesse de ler a documentação. Ainda hoje eu sinto falta. Ler documentação é como se fosse uma droga.

Folha - Depois de ler os originais fica chato ler o livro de um autor de história?
Mello -
Se a documentação é dispersa, você prefere ler no autor. Mas, se a documentação estiver toda pronta, publicada em volumes, eu prefiro ler o original. É muito mais rico.

Folha - Quais seriam obras fundamentais para conhecer a história do Brasil?
Mello -
Em relação a que período?

Folha - Colonial.
Mello -
A essa altura eu não aconselharia mais ninguém a ler a "História Geral do Brasil" do Varnhagen. É um livro mais para consulta, porque tem muito detalhe. Mas a idéia que ele passa da história não prende. Não é uma história que interesse. Um livro muito interessante são os "Capítulos de História Colonial" (Capistrano de Abreu). É uma síntese muito melhor. De certo modo, foi o homem que descobriu a história do interior do Brasil. Ele escreveu sempre de costas para a Europa. Ao contrário de outros, como Oliveira Lima, que era mais ou menos da mesma geração, um pouco mais velho, que escreveu de costas para o Brasil, porque explorou todas as conexões portuguesas. "D.João 6º no Brasil", de Oliveira Lima, é indispensável. Eu tenho medo de cometer injustiça esquecendo algum. Há um livro pequeno, mas que é muito interessante, que é o primeiro livro, na verdade, sobre história da vida privada escrito no Brasil e que está meio esquecido: é Alcântara Machado.

Folha - "Vida e Morte do Bandeirante".
Mello -
Ele não era historiador profissional. Era um escritor de ficção. Ele pegou a documentação de vários volumes de testamentos e inventários dos bandeirantes paulistas, que tinha acabado de ser publicada pelo Washington Luís, quando foi governador de São Paulo...

Folha - Washington Luís era bom historiador?
Mello -
Não, era fraco. E como político também. Mas foi um dos poucos políticos brasileiros que teve a idéia de publicar documentação. A produção dele era medíocre ("Na Capitania de São Vicente"), mas a contribuição dele é de muitos volumes de "Inventários e Testamentos" (atualmente no 47º) e dos "Anais" da Câmara Municipal de São Paulo.

Folha - E o que o sr. acha de Afonso d'E. Taunay?
Mello -
É como diziam: "Taunay é terrível. Quando vai resumir um documento, o resumo acaba ficando maior do que o original". Um historiador como Taunay é típico das limitações e das virtudes da historiografia brasileira pré-universitária. Ele conhecia consciensiosamente toda a documentação. Mas história não é só conhecer a documentação. É como os franceses gostam de dizer: "Depois da pesquisa, a síntese". É a forma pela qual você vai plasmar no texto a documentação que você leu, as informações que entraram na sua cabeça. E aí, nessa hora, essa historiografia clássica do Brasil fraqueja. Taunay deixou uma obra enorme: a história das bandeiras paulistas, a história do café em São Paulo. Mas é muito chato de ler. Não tem um discurso historiográfico. Na hora de se exprimir, não tem qualidade literária. História não é só conhecimento não, a história é também expressão literária.

Folha - É a narrativa.
Mello -
Capistrano de Abreu, Oliveira Lima também, narravam muito bem. Isso é uma das coisas mais curiosas que se passou com a história nesse século, com essa coisa de história econômica, história antropológica, história ecológica... Em história você tem dois tipos de dimensões: uma diacrônica, a dimensão da narrativa, da concatenação dos fatos, e você tem uma dimensão sincrônica, como a do antropólogo. Ele não narra nada, o antropólogo descreve, compara. O sociólogo também. São duas dimensões que não são incompatíveis. Pelo contrário, todo bom historiador tem as duas coisas. Mas você tem grandes livros de história que são só de descrição, que não há causalidade.

Folha - Como é isso no Brasil?
Mello -
No Brasil, essa dimensão sincrônica não foi trazida pelos historiadores. Até a universidade, os historiadores ficaram na dimensão diacrônica. Quem trouxe a dimensão sincrônica foram as pessoas que tinham formação extra-história, como Gilberto Freyre em "Casa Grande & Senzala".

Folha - Sérgio Buarque de Holanda também...
Mello -
Também. Mas isso já é uma dimensão muito recente, dos anos 30 para cá. Os historiadores brasileiros até essa época eram narrativos. Mas aí, ou você escreve muito bem, ou você se arrebenta. Perde a graça. E eles não sabiam escrever. No Brasil, se você sabia escrever você ia ser poeta, ou romancista, não ia ser historiador. Eles divulgaram muita documentação histórica, mas não ficou nenhuma obra histórica definitiva. Hoje você tem o problema inverso no Brasil. A universidade criou um tipo de monografia, que é um discurso que dá ênfase ao descritivo. E perdeu-se completamente a dimensão diacrônica. Então o historiador brasileiro hoje não sabe narrar. Sabe expor, descrever, interpretar coisas, aliás, que são muito mais difíceis do que narrar. Mas em história você não pode escapar da narrativa.

Folha - Será por isso que esses livros de história escritos por jornalistas, que são baseados na narrativa, têm feito tanto sucesso?
Mello -
É. O problema do historiador é que ele resolveu ser muito profundo. E competir com o sociólogo, com o antropólogo. O historiador, desde a Antiguidade clássica, é apenas um cidadão cujo interesse consiste na história que ele conta. O historiador, ao contrário do que se pensa, não está aí para revelar as leis do desenvolvimento social. Você testa o historiador pelo objeto que ele escolhe para narrar e, em segundo lugar, como ele narra. A história não é mestra da vida, nada disso. "A história vai ser", como dizia Fernand Braudel, "a grande sintetizadora das ciências humanas". Isso não dá mais. A história é apenas uma atividade intelectual cuja dimensão fundamental, sendo diacrônica, lhe confere uma originalidade que não é a das outras ciências humanas. Também é preciso fazer a divulgação histórica: a ponte entre o conhecimento do especialista e o interesse do leitor. Você tem que saber para quem você está escrevendo. Eu escrevo para especialista, mas a minha alternativa era fazer divulgação histórica. Eu não tinha interesse nisso, eu estava interessado em aprofundar e ampliar o conhecimento de um determinado período.

Folha - Qual o tema que mais lhe interessa hoje em dia? Qual seu próximo livro?
Mello -
Há um assunto que está me interessando, mas não sei ainda se vou botá-lo para frente. Escrevi "O Negócio do Brasil" porque era um assunto que não tinha nada a respeito, não se sabia nada. Quando eu disse as coisas mais óbvias, como o Nordeste foi comprado à Holanda... "Foi comprado?" Lógico. "Mas nós não ganhamos uma guerra?" Claro que tínhamos uma guerra, mas ao fim de toda guerra tem uma coisa chamada "tratado de paz", e aí se prevê uma compensação para quem cede alguma coisa, é um toma lá dá cá.

Folha - A guerra tinha acabado no Brasil, mas havia prosseguido da Europa.
Mello -
Qualquer dia desses isso ia me criar problemas em Pernambuco. Para retificar essa idéia, eu estou pensando em fazer um volume das mesmas dimensões de "O Negócio do Brasil", que seja um volume gêmeo, no qual eu narro os acontecimentos da guerra de Pernambuco. Como você vê, em "O Negócio do Brasil" eu supus que o leitor já sabia dos fatos. Eu procurei fazer apenas umas referências muito breves ao que acontecia no Brasil. Agora a minha idéia é pegar a perspectiva recíproca: os acontecimentos no Brasil a partir de 1641, da Restauração (do trono português, até então sob domínio espanhol), a partir da conspiração para se promover um levante no Brasil holandês, e aí vou até os nove anos de guerra. Sobre o aspecto internacional, eu preciso apenas fazer uma referência, porque eu já escrevi antes. O outro foi um livro de história política e diplomática, esse seria um livro de história política e militar. Mas, como no caso do anterior, a ênfase dele seria sempre na concatenação dos acontecimentos em termos das decisões dos políticos, militares. Não há essa coisa de história maciça, que faz um capítulo enorme sobre economia, outro sobre relações sociais, nada disso.

Folha - Eminentemente narrativo.
Mello -
Sim, mas evidentemente nunca se escapa de algumas coisas sincrônicas. O que eu gosto mesmo é ver o indivíduo que tem que tomar uma decisão às voltas com essa decisão que ele tem que tomar. Isso é uma coisa que me fascina, é aquela que me interessa escrever. É uma questão de renovação, para você não se chatear, não se entediar escrevendo, permanentemente, o mesmo livro.


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