|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
O historiador Evaldo Cabral de Mello investiga as origens da disparidade regional no Brasil em "O Norte Agrário e o Império"
Raízes da diferença
Patrícia Santos/Folha Imagem
|
O historiador pernambucano Evaldo Cabral de Mello em sua casa, no Rio de Janeiro |
JOSÉ ROBERTO DE TOLEDO
enviado especial ao Rio de Janeiro
Preocupados em ser "profundos", os historiadores brasileiros abandonaram a narrativa e estão pagando um preço por
isso: a perda de espaço entre os leitores. Essa é a opinião de
um dos principais historiadores brasileiros, Evaldo Cabral de
Mello, 63.
"O historiador, desde a Antiguidade Clássica, é apenas um
cidadão cujo interesse consiste na história que ele conta",
afirma Mello, que, ao contário da maioria de seus colegas, não
é acadêmico, mas diplomata aposentado.
Enquanto isso, jornalistas que escrevem livros de divulgação histórica assumem as primeiras posições no ranking dos
mais vendidos. Os três de Eduardo Bueno, por exemplo, sobre o período colonial brasileiro, estão entre os mais vendidos
na categoria de não-ficção (leia na pág. 5-11). Nenhum historiador lhe faz companhia.
A Topbooks está relançando agora o segundo livro de Evaldo Cabral de Mello, "O Norte Agrário e o Império", de 1984.
Em meio à discussão sobre a ida da Ford para a Bahia, o relançamento é oportuno: a obra aborda o fim do Império, período em que a ação do Estado começa a pender a balança do
equilíbrio regional para o Sul/Sudeste, em prejuízo do Norte/Nordeste.
O pernambucano, que se define como historiador regional,
recebeu a reportagem da Folha em seu apartamento em
Ipanema, na terça-feira passada.
Ele revelou seu processo de trabalho, criticou a historiografia nacional e adiantou o que pode vir a ser o tema
de seu próximo livro: a guerra que libertou o Nordeste do
domínio holandês - "obra gêmea" de seu último livro,
"O Negócio do Brasil" (1998), em que ele contava como
Portugal comprou esse pedaço do país à Holanda.
Folha - "O Norte Agrário e o
Império" se ocupa do período
de 1871 a 1889, e o sr. sustenta,
logo no prefácio do livro, que
foi nessa época que a balança
do equilíbrio regional começou
a pender para os Estados do Sul.
O sr. poderia explicar esse processo?
Evaldo Cabral de Mello - O
processo de desigualdade já havia
começado algum tempo antes de
1871. Mas esse é o tipo de processo
que é difícil de datar. Desigualdade regional no Brasil você pode
datar a partir da descoberta do
ouro em Minas, no fim do século
17, começo do século 18. Foi o primeiro acontecimento que colocou essa região do Brasil na economia internacional. Até então só
o que interessava à economia internacional eram Bahia e Pernambuco. A descoberta do ouro
jogou essa região Centro-Sul no
mercado internacional num momento que havia uma pronunciada regressão da economia do
Nordeste. Já se sustentou que a
descoberta do ouro em Minas teria incentivado a migração de escravos do Nordeste para o Centro-Sul, encarecendo a mão-de-obra e tornando a lavoura canavieira mais onerosa ainda.
Folha - Por que o sr. resolveu
pegar esse período especificamente (de 1871 a 1889)?
Mello - Esse é um tema (a desigualdade) muito longo. Primeiro,
tem o problema de datação:
quando é que começa? Em segundo lugar, você tem o problema
que isso é um tema tão complexo
e tão vasto que um indivíduo só
dificilmente poderia fazer a pesquisa correspondente a todo o assunto. Ia levar a vida toda.
Folha - Foi seu segundo livro,
não foi? E o sr. demorou dez
anos...
Mello - É, foram quase dez anos.
Eu então resolvi me concentrar
num período. E por que esse? Porque no fim do Império é que o Estado imperial começa a atuar
-como se diz agora em Brasília- como indutor do desenvolvimento.
Folha - No caso, do Sul...
Mello - Não. Só a partir de 1860,
1850, com as primeiras estradas
de ferro, que foram rateadas por
d.Pedro 2º, que o Estado começou
a ter recursos para dar garantias
de juros, dar outras vantagens, levantar empréstimos lá fora... Não
adiantava eu procurar a disputa
em torno das divergências regionais a propósito da capacidade de
investimento do Estado no período anterior. Porque até 1850/60 o
Estado brasileiro estava numa
confusão tal que tratava apenas de
se manter à tona. É a partir de
1850/60 que ele começa a ter condições de atuar. Então eu escolhi
esse período. O segundo ponto:
eu tinha que especializar a documentação, as fontes. Não podia
ver tudo. Ou então eu teria que ler
a imprensa periódica de Pernambuco, da Bahia e a do Rio de Janeiro, pelo menos.
Folha - Isso é um pouco a sua
técnica de investigação. Acho
que o sr. escolhe um período e
tenta exaurir todas as fontes
possíveis dele.
Mello - Não, eu não exauri, justamente porque era impossível
exaurir. Então eu tive que me concentrar nos anais do Parlamento
do Império e nos relatórios dos
ministérios ligados especialmente
à área econômica, que eram os da
Fazenda e o da Agricultura, que
naquele tempo era Agricultura,
Indústria e Comércio. Qual é o valor dessa documentação? É que o
Parlamento do Império é o lugar
onde eram tomadas todas as decisões. Em todo o caso, não havia
documentação para você reconstituir certos aspectos importantes:
debates dentro do próprio governo, a disputa entre os ministros
dentro de cada gabinete. Não há
documentação sobre isso. O que
aparece sobre isso é o que está nos
anais do Parlamento do Império.
Isso raramente vinha à tona porque, como era regime parlamentarista, havia a ficção da solidariedade do ministério. Não era possível ver também os grupos de
pressão, a não ser também por
meio dos anais, onde eles faziam
representações ao Parlamento.
Folha - O sr. procura mostrar
essa mudança (do equilíbrio regional) por vários aspectos, como a questão da mão-de-obra.
Mello - Uma vez resolvido o período e a documentação, eu tinha
que isolar os temas de disputa regional que fossem mais frequentes. Porque não caberia escrever
sobre tudo. Aí eu escolhi esses seis
temas que foram realmente os
principais: a abolição do tráfico
interprovincial de escravos, a imigração estrangeira, o crédito à lavoura, os engenhos centrais, as estradas de ferro e os portos, e aquele último capítulo sobre o qual
não havia nada -eu não encontrei nada, salvo uma crônica de
Machado de Assis. Simplesmente
não há um livro de história do
Brasil, econômica ou o que seja,
que se refira àquela disputa que
houve em torno dos impostos
provinciais, que era muito importante porque, na verdade, era uma
disputa sobre o rateio da arrecadação entre o governo central e os
governos provinciais.
Folha - A reedição do livro me
parece bastante atual, porque a
discussão sobre desequilíbrio
regional está na crista da onda.
Uma coisa que me chamou a
atenção é que o sr. mostra que o
Norte detinha a maioria do gabinete. De certa maneira, hoje
no Congresso, o Norte e o Nordeste detêm uma força muito
grande. E, no entanto, não conseguem -como na época não
conseguiam- reverter isso em
poder econômico, para aumentar investimentos. Ou o sr. acha
que a situação é diferente hoje?
Mello - É diferente, porque a capacidade do Estado é diferente
etc. e tal. Mas é verdade que, apesar desse poder que eles tinham,
eles não conseguiram inverter (no
sentido de investir). Mas não conseguiram inverter por quê? Aí eu
deixo em suspenso, porque eu
não estava disposto a entrar num
assunto que é de interesse teórico
em matéria econômica: será que o
Estado é suficiente para reverter
um processo?
Folha - Aparentemente não.
Mello - Aparentemente não.
Mas evidentemente o Estado pode mexer com muita coisa. O Estado conseguiu criar um fluxo de
migração estrangeira para São
Paulo -o Estado imperial e o Estado da Província. Em relação ao
Rio Grande do Sul e ao Prata, São
Paulo estava em uma posição
muito desfavorável. Porque o colono que vinha ia para o café, enquanto no Sul ele recebia propriedade. De modo que o Estado pode
alguma coisa, tanto que para São
Paulo ele funcionou.
Folha - Deixada às vias do
mercado, a imigração não iria
naturalmente para São Paulo?
Mello - Eu não digo que não iria
ninguém. Mas não teria ido na
mesma proporção que foi. Foi
uma ação subsidiária. E, mesmo
quando o ministro Buarque de
Macedo conseguiu acabar com a
imigração subsidiada, que era
uma maneira de o Norte protestar
contra a disparidade, veio o governo do gabinete João Alfredo,
cujo ministro da Agricultura era
Antonio Prado, e voltou imediatamente com a imigração subsidiada como uma forma de transação entre o Norte e o Sul: dava engenho central para o Norte e dava
imigração subsidiada para o Sul.
Folha - O sr. acha que a história explica a desigualdade regional de hoje?
Mello - A história ajuda a explicar tudo, desde que você se dê ao
trabalho de voltar no tempo procurando reconstituir todas as sequências causais. O problema é
você poder falar da coisa com seriedade, dispondo do material,
das fontes.
Folha - O "Norte Agrário" se
ocupa de um período que é quase uma exceção na sua obra. Basicamente, a maioria dos livros
fala do período de ocupação holandesa e suas consequências...
Mello (rindo) - Eu não passei
ainda de 1715...
Folha - Teve algum motivo para o sr. mudar de datas?
Mello - Teve, teve. Eu tinha acabado de fazer o "Olinda Restaurada" e, quando você acaba um livro, dá sempre uma certa angústia, porque você tem a impressão
de que não vai conseguir escrever
mais nada, não vai se interessar,
não vai encontrar tema. Aí você
fica com uma certa ansiedade,
obrigado a descobrir imediatamente um outro tema. Eu estava
muito cansado do período holandês. E, conversando com José Antônio Gonsalves de Mello (seu
primo e também historiador), ele
me mostrou um artigo que tinha
feito muitos anos atrás sobre o
protesto regional. E era um tema
que estava vivo na época. Hoje está voltando de novo com esse negócio da Ford na Bahia. Aí eu vi
que era um negócio de enormes
proporções. Eu vi que eu tinha
que restringir o ângulo ao processo de discussão no Segundo Reinado, que eu espero ter conseguido reconstituir.
Folha - O sr. se considera um
historiador regional. Mas todas
as suas obras têm uma contextualização que sempre coloca
Pernambuco ou o Norte em relação ao país, quando não em
relação ao mundo, como em "O
Negócio do Brasil", que, como já
foi dito, é uma das raras contribuições da historiografia brasileira para a historiografia européia. Mesmo assim o sr. se considera um historiador regional?
Mello - Não é culpa minha que a
história regional tenha essas ramificações nacionais e internacionais. Essas ramificações não são
uma invenção minha. São ramificações que você encontra ao longo da pesquisa histórica. O problema é que os historiadores brasileiros tendem a escrever história
do Brasil como se só existisse o
Brasil. O tema da imigração estrangeira é só tratado nos termos
do Brasil. Nunca ninguém pensou, por exemplo, em fazer um estudo detalhado de como essa migração estrangeira para o Brasil
no século passado se encaixava
nos grandes movimentos demográficos da Europa naquele período. O problema é a limitação que
a compartimentalização da história nacional cria. Mas, exatamente
porque eu sou historiador regional, eu sou capaz de ver essas ramificações não-nacionais. Provavelmente, se eu fosse um historiador nacional, eu teria me aquietado com as fronteiras do país e não
teria procurado extrapolá-las.
Folha - Quais o sr. diria que
são os principais historiadores
brasileiros vivos?
Mello - Há vários. José Murilo
de Carvalho, Fernando Novais,
Carlos Guilherme Mota, João José
Reis, Luiz Felipe Alencastro. É o
que não falta.
Folha - E quais são hoje os
principais buracos da historiografia brasileira?
Mello - Eu inverto a sua pergunta: a historiografia brasileira é um
buraco, apenas há pontos que são
mais aterrados. Tudo mundo gosta de falar de história do Brasil,
mas ninguém quer pagar o ônus
da pesquisa histórica. É uma coisa
chata. É uma coisa que custa dinheiro. Tem esse negócio de você
ir aos arquivos, onde os serviços
de infra-estrutura, tanto aqui
quanto em Portugal, são muito
fracos. A maior parte da historiografia brasileira que se escreveu
da Independência para cá carece
muitas vezes de embasamento
documental. São muito poucos os
grandes historiadores brasileiros
que foram também grandes pesquisadores.
Folha - Quais?
Mello - O primeiro deles, (Francisco Adolfo) Varnhagen, foi um
grande pesquisador, conheceu tudo, viu tudo. (João) Capistrano
(de Abreu) também, embora tivesse a limitação de que ele nunca
saiu do Brasil, de modo que ficava
chateando as pessoas em Portugal
para copiar documento, procurar
documento para ele e mandar.
Todos esses empecilhos já estão
sendo levantados hoje, com a facilidade do fax, desses CD-ROMs
que vão reproduzir documentos e
que vão permitir a você trabalhar
em casa. Daqui a alguns anos ninguém irá mais a arquivo para consultar documentos, você terá tudo
em casa. Mas é muito difícil de fazer porque, sobretudo no Brasil,
tudo desencoraja a fazer pesquisa
histórica, inclusive o fato de você
estar longe. Eu imagino que, se eu
não tivesse ido ser diplomata, eu
nunca teria sido historiador. Porque simplesmente eu não teria as
facilidades que eu tive de pesquisa.
Folha - O sr. diria que a maioria do material que o sr. pesquisou para fazer os seus seis livros
está no Brasil ou em Portugal?
Mello - A maioria está em Portugal. Mas, evidentemente, há
uma enorme quantidade de documentos aos quais você tem um
acesso fácil, porque já foram publicados em livros. Mas em um
dos meus livros, "A Fronda dos
Mazombos", toda a documentação é manuscrita. Eu ia todo dia
ao Arquivo Ultramarino (em Lisboa) apenas para selecionar os
documentos e encomendar a sua
microfilmagem. Depois eu mandava reproduzir em papel, no tamanho original, os documentos.
E então eu ia ler o documento em
casa, à noite e no fim-de-semana.
Eu pegava cada documento mais
interessante e copiava, que é uma
das melhores coisas, e que as pessoas não querem fazer mais porque dá trabalho. É a velha técnica
dos historiadores do século 19.
Copiando, a sua apreensão do documento é muito mais completa
do que se você só ler o documento. Se você pega um documento
que já vem prontinho, você acaba
pegando pela rama, lhe escapam
coisas que normalmente não escapam quando você se detém no
documento.
Folha - E o sr. ficha essas informações?
Mello - Não.
Folha - E como o sr. faz para se
lembrar?
Mello - Você escreve. Eu sou incapaz de escrever um livro de história de fio a pavio. Normalmente
se faz toda a pesquisa e, depois,
você redige o livro. Isso para mim
é impensável. Se eu fizesse assim,
eu só faria a pesquisa. Porque no
momento em que eu tiver acabado de fazer a pesquisa eu já conhecerei o assunto e não me interessaria absolutamente em escrever.
Eu faço o livro como quem arma
um "puzzle" (quebra-cabeça).
Você não inicia necessariamente
pelo primeiro capítulo. Eu inicio
por aquilo que está primeiro me
interessando mais. O próprio documento vai lhe sugerindo os caminhos. Ou você faz a coisa com
prazer ou não faz. Há muitos aspectos que só me ocorrem depois
de ter começado a escrever: eu
reúno uma certa quantidade de
material e me vem uma série de
idéias. No processo de desenvolver aquelas idéias, me ocorrem
outras coisas e eu volto para a documentação. De modo que é uma
ponte aérea entre o documento e
a redação. Se não, é um caso de
apatia intelectual. Eu não sei como uma pessoa é capaz de fazer
pesquisa durante um ano ou dois
sem lhe dar a necessidade de articular alguma coisa em relação
aquilo que você já leu. É excesso
de organização.
Folha - Como é ser um historiador fora da academia? Ajuda
ou atrapalha?
Mello - Tem vantagens e desvantagens. A academia, como toda instituição, tem suas idéias. Se
a instituição lhe dá uma série de
facilidades e de estímulos, ela
também cerceia sua iniciativa ou
pelo menos lhe coloca uma camisa-de-força, quando mais não seja
pelo formato da monografia.
Folha - O sr. nunca partiu de
uma tese para ser confirmada?
Mello - A certa altura da pesquisa surgem as hipóteses, aí você
confirma ou não, mas, em princípio, eu chegava à documentação
apenas pelo interesse de ler a documentação. Ainda hoje eu sinto
falta. Ler documentação é como
se fosse uma droga.
Folha - Depois de ler os originais fica chato ler o livro de um
autor de história?
Mello - Se a documentação é
dispersa, você prefere ler no autor. Mas, se a documentação estiver toda pronta, publicada em volumes, eu prefiro ler o original. É
muito mais rico.
Folha - Quais seriam obras
fundamentais para conhecer a
história do Brasil?
Mello - Em relação a que período?
Folha - Colonial.
Mello - A essa altura eu não
aconselharia mais ninguém a ler a
"História Geral do Brasil" do Varnhagen. É um livro mais para
consulta, porque tem muito detalhe. Mas a idéia que ele passa da
história não prende. Não é uma
história que interesse. Um livro
muito interessante são os "Capítulos de História Colonial" (Capistrano de Abreu). É uma síntese
muito melhor. De certo modo, foi
o homem que descobriu a história
do interior do Brasil. Ele escreveu
sempre de costas para a Europa.
Ao contrário de outros, como Oliveira Lima, que era mais ou menos da mesma geração, um pouco
mais velho, que escreveu de costas para o Brasil, porque explorou
todas as conexões portuguesas.
"D.João 6º no Brasil", de Oliveira
Lima, é indispensável. Eu tenho
medo de cometer injustiça esquecendo algum. Há um livro pequeno, mas que é muito interessante,
que é o primeiro livro, na verdade,
sobre história da vida privada escrito no Brasil e que está meio esquecido: é Alcântara Machado.
Folha - "Vida e Morte do Bandeirante".
Mello - Ele não era historiador
profissional. Era um escritor de
ficção. Ele pegou a documentação
de vários volumes de testamentos
e inventários dos bandeirantes
paulistas, que tinha acabado de
ser publicada pelo Washington
Luís, quando foi governador de
São Paulo...
Folha - Washington Luís era
bom historiador?
Mello - Não, era fraco. E como
político também. Mas foi um dos
poucos políticos brasileiros que
teve a idéia de publicar documentação. A produção dele era medíocre ("Na Capitania de São Vicente"), mas a contribuição dele é
de muitos volumes de "Inventários e Testamentos" (atualmente
no 47º) e dos "Anais" da Câmara
Municipal de São Paulo.
Folha - E o que o sr. acha de
Afonso d'E. Taunay?
Mello - É como diziam: "Taunay é terrível. Quando vai resumir
um documento, o resumo acaba
ficando maior do que o original".
Um historiador como Taunay é
típico das limitações e das virtudes da historiografia brasileira
pré-universitária. Ele conhecia
consciensiosamente toda a documentação. Mas história não é só
conhecer a documentação. É como os franceses gostam de dizer:
"Depois da pesquisa, a síntese". É
a forma pela qual você vai plasmar no texto a documentação que
você leu, as informações que entraram na sua cabeça. E aí, nessa
hora, essa historiografia clássica
do Brasil fraqueja. Taunay deixou
uma obra enorme: a história das
bandeiras paulistas, a história do
café em São Paulo. Mas é muito
chato de ler. Não tem um discurso
historiográfico. Na hora de se exprimir, não tem qualidade literária. História não é só conhecimento não, a história é também
expressão literária.
Folha - É a narrativa.
Mello - Capistrano de Abreu,
Oliveira Lima também, narravam
muito bem. Isso é uma das coisas
mais curiosas que se passou com
a história nesse século, com essa
coisa de história econômica, história antropológica, história ecológica... Em história você tem dois
tipos de dimensões: uma diacrônica, a dimensão da narrativa, da
concatenação dos fatos, e você
tem uma dimensão sincrônica,
como a do antropólogo. Ele não
narra nada, o antropólogo descreve, compara. O sociólogo também. São duas dimensões que não
são incompatíveis. Pelo contrário,
todo bom historiador tem as duas
coisas. Mas você tem grandes livros de história que são só de descrição, que não há causalidade.
Folha - Como é isso no Brasil?
Mello - No Brasil, essa dimensão sincrônica não foi trazida pelos historiadores. Até a universidade, os historiadores ficaram na
dimensão diacrônica. Quem
trouxe a dimensão sincrônica foram as pessoas que tinham formação extra-história, como Gilberto Freyre em "Casa Grande &
Senzala".
Folha - Sérgio Buarque de Holanda também...
Mello - Também. Mas isso já é
uma dimensão muito recente, dos
anos 30 para cá. Os historiadores
brasileiros até essa época eram
narrativos. Mas aí, ou você escreve muito bem, ou você se arrebenta. Perde a graça. E eles não sabiam escrever. No Brasil, se você
sabia escrever você ia ser poeta,
ou romancista, não ia ser historiador. Eles divulgaram muita documentação histórica, mas não ficou nenhuma obra histórica definitiva. Hoje você tem o problema
inverso no Brasil. A universidade
criou um tipo de monografia, que
é um discurso que dá ênfase ao
descritivo. E perdeu-se completamente a dimensão diacrônica.
Então o historiador brasileiro hoje não sabe narrar. Sabe expor,
descrever, interpretar coisas,
aliás, que são muito mais difíceis
do que narrar. Mas em história
você não pode escapar da narrativa.
Folha - Será por isso que esses
livros de história escritos por
jornalistas, que são baseados na
narrativa, têm feito tanto sucesso?
Mello - É. O problema do historiador é que ele resolveu ser muito
profundo. E competir com o sociólogo, com o antropólogo. O
historiador, desde a Antiguidade
clássica, é apenas um cidadão cujo interesse consiste na história
que ele conta. O historiador, ao
contrário do que se pensa, não está aí para revelar as leis do desenvolvimento social. Você testa o
historiador pelo objeto que ele escolhe para narrar e, em segundo
lugar, como ele narra. A história
não é mestra da vida, nada disso.
"A história vai ser", como dizia
Fernand Braudel, "a grande sintetizadora das ciências humanas".
Isso não dá mais. A história é apenas uma atividade intelectual cuja
dimensão fundamental, sendo
diacrônica, lhe confere uma originalidade que não é a das outras
ciências humanas. Também é
preciso fazer a divulgação histórica: a ponte entre o conhecimento
do especialista e o interesse do leitor. Você tem que saber para
quem você está escrevendo. Eu
escrevo para especialista, mas a
minha alternativa era fazer divulgação histórica. Eu não tinha interesse nisso, eu estava interessado
em aprofundar e ampliar o conhecimento de um determinado
período.
Folha - Qual o tema que mais
lhe interessa hoje em dia? Qual
seu próximo livro?
Mello - Há um assunto que está
me interessando, mas não sei ainda se vou botá-lo para frente. Escrevi "O Negócio do Brasil" porque era um assunto que não tinha
nada a respeito, não se sabia nada.
Quando eu disse as coisas mais
óbvias, como o Nordeste foi comprado à Holanda... "Foi comprado?" Lógico. "Mas nós não ganhamos uma guerra?" Claro que tínhamos uma guerra, mas ao fim
de toda guerra tem uma coisa
chamada "tratado de paz", e aí se
prevê uma compensação para
quem cede alguma coisa, é um toma lá dá cá.
Folha - A guerra tinha acabado
no Brasil, mas havia prosseguido da Europa.
Mello - Qualquer dia desses isso
ia me criar problemas em Pernambuco. Para retificar essa idéia,
eu estou pensando em fazer um
volume das mesmas dimensões
de "O Negócio do Brasil", que seja
um volume gêmeo, no qual eu
narro os acontecimentos da guerra de Pernambuco. Como você vê,
em "O Negócio do Brasil" eu supus que o leitor já sabia dos fatos.
Eu procurei fazer apenas umas referências muito breves ao que
acontecia no Brasil. Agora a minha idéia é pegar a perspectiva recíproca: os acontecimentos no
Brasil a partir de 1641, da Restauração (do trono português, até então sob domínio espanhol), a partir da conspiração para se promover um levante no Brasil holandês, e aí vou até os nove anos de
guerra. Sobre o aspecto internacional, eu preciso apenas fazer
uma referência, porque eu já escrevi antes. O outro foi um livro
de história política e diplomática,
esse seria um livro de história política e militar. Mas, como no caso
do anterior, a ênfase dele seria
sempre na concatenação dos
acontecimentos em termos das
decisões dos políticos, militares.
Não há essa coisa de história maciça, que faz um capítulo enorme
sobre economia, outro sobre relações sociais, nada disso.
Folha - Eminentemente narrativo.
Mello - Sim, mas evidentemente
nunca se escapa de algumas coisas sincrônicas. O que eu gosto
mesmo é ver o indivíduo que tem
que tomar uma decisão às voltas
com essa decisão que ele tem que
tomar. Isso é uma coisa que me
fascina, é aquela que me interessa
escrever. É uma questão de renovação, para você não se chatear,
não se entediar escrevendo, permanentemente, o mesmo livro.
Texto Anterior: Brasil 500 d.c. - José Murilo de Carvalho: Além de Tordesilhas Próximo Texto: As obras Índice
|