São Paulo, Domingo, 12 de Setembro de 1999
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LIVROS

Jornalista dos EUA conta como descobriu que o país não é um paraíso racial
Desencanto no Brasil

FABIANO MAISONNAVE
especial para a Folha

O constante e crescente interesse dos norte-americanos pelas nossas relações raciais é marcado pela visão especular -ao olhar para o Brasil, eles enxergam a si mesmos. O mais recente livro dessa linha é "Coal to Cream" (De Carvão a Creme), lançado pelo jornalista Eugene Robinson. Ex-correspondente do "Washington Post" para a América do Sul, onde morou em Buenos Aires, Robinson esteve várias vezes no Brasil.
Da recente onda de lançamentos comparando raça no Brasil e nos Estados Unidos, o livro de Robinson difere por não ser acadêmico, abrindo mão do suporte estatístico ou bibliográfico. Em decorrência disso, sua interpretação é sobretudo experimental.
O Robinson da primeira viagem ao Brasil se mostra seduzido pelo "paraíso racial" que havia encontrado, onde até poderia ser "branco" se quisesse. Aos poucos, depois de mais incursões pelo país, Robinson vai acumulando decepções. No final, acaba condenando a mesma falta de consciência racial que o havia deslumbrado.
O resultado do livro é ambivalente. Há várias passagens que soarão como truísmo para quem conhece minimamente o assunto, mas Robinson, livre dos caminhos e das discussões acadêmicas, traz ângulos novos por meio de uma narrativa envolvente.
Aos 45 anos, Robinson viveu o fim da segregação racial no sul dos EUA, onde nasceu e cresceu. O jornalista, entrevistado a seguir pela Folha, mora com sua mulher e dois filhos em um subúrbio de classe média perto de Washington, onde trabalha como editor de cultura do "Washington Post".

Folha - As relações raciais no Brasil têm a tradição de iludir muitos negros americanos. Ainda na década de 20, Robert Abbott, à época dono do "Chicago Defender", maior jornal negro da época, ficou fascinado em sua visita ao país, chegando até a propor a emigração de afro-americanos para lá. Como o senhor caiu na mesma armadilha, 70 anos depois?
Eugene Robinson -
Como muitos outros afro-americanos, quando eu cheguei ao Brasil, encontrei uma atmosfera racial envolvente e extraordinária. No primeiro encontro, realmente parece uma Terra Prometida em termos de relações raciais. A tensão e a desconfiança que muitas vezes marcam os encontros entre raças nos EUA pareciam completamente ausentes. Quando eu andava na rua, sentia que não precisava ser um "negro". Eu poderia ser apenas uma pessoa. Isso é uma experiência nova para nós. Levou algum tempo para eu perceber que a raça desempenhava um papel importante no cotidiano brasileiro.

Folha - A sua experiência no Rio de Janeiro o levou a perceber que havia uma hierarquia de cor nos EUA semelhante a do Brasil, mesmo entre os negros. Segundo o senhor, nos dois países, quanto mais escura a cor da pessoa, mais chance de ela estar no patamar mais baixo da escada social. No entanto, como o senhor afirma, a variável "cor" pouco é mencionada nos EUA, ao contrário de raça. Por que a cor é um tabu aqui?
Robinson -
Essa é uma boa pergunta. Eu acho que tem a ver com a nossa história. Aqui nos EUA, o mulato nunca foi considerado uma categoria à parte. Se alguém tem uma gota de sangue africano, é negro. Na prática, isso significou que, quem tivesse pele mais clara, não tinha nenhum privilégio especial -a não ser que fosse claro o suficiente para passar por branco. Por isso, estávamos todos no mesmo barco e havia um incentivo para nós minimizarmos as diferenças de cor, para que ficássemos juntos e reivindicássemos direitos. O preconceito de cor que existiu aqui era menor do que no Brasil e permaneceu escondido, nunca mencionado. Agora as pessoas estão falando um pouco mais sobre isso.

Folha - A experiência no Carnaval foi o fim da sua ilusão sobre as relações raciais no Brasil. O que fez do Carnaval tão frustrante e triste?
Robinson -
O Carnaval foi tão frustrante porque, durante toda a alegria, no meio do maior show da Terra, a divisão racial ficou mais evidente para mim. As regras da sociedade são suspensas durante o Carnaval; o rico e o pobre, o branco e o negro, são teoricamente iguais. Mas o que me perturbou foi que isso não é tão real assim. As mesmas divisões que eu havia visto outras vezes ainda estavam lá. O fato de elas persistirem durante uma época de tanta amizade e celebração foi uma grande desilusão. Não me interprete mal: eu adorei o Carnaval e ainda acho que foi uma das mais inesquecíveis experiências da minha vida. Mas eu não pude mais manter a ilusão de que o Brasil era uma democracia racial.

Folha - Quais são os aspectos negativos e positivos das relações raciais no Brasil quando se compara com os EUA?
Robinson -
Os aspectos mais negativos são encontrados no perfil geral da sociedade. Quantos brasileiros negros ocupam escritórios nos bancos da avenida Paulista? Quantos vivem no Leblon? Há quantos negros trabalhando nos ministérios em Brasília? Na maneira com que as pessoas se socializam, o Brasil está vários anos na frente dos EUA. Mas, na forma com que a sociedade como um todo é moldada, em termos do lugar dos negros na sociedade, o Brasil está muito atrás.

Folha - Como o senhor foi tratado no Brasil?
Robinson -
Normalmente, fui tratado mais como um americano do que qualquer outra coisa. Sempre que as pessoas ouviam o meu sotaque, elas sabiam que não era brasileiro. Como representante de um jornal americano bem conhecido, fui recebido com grande respeito por quem entrevistei. Algumas vezes, no entanto, quando eu não falava, muitos pensavam que era brasileiro. Uma vez, fui visitar alguns amigos num prédio no Rio de Janeiro, e o porteiro me fez usar a porta de serviço. Em outra ocasião, quando estava vestido com roupas bem surradas, a vendedora de uma loja em Ipanema não abriu a porta para mim. Uma vergonha: eu queria comprar um sapato que havia visto na vitrine, mas, como ela não me deixou entrar, não tive a chance.

Folha - A experiência no Brasil reforçou no senhor a importância de raça como identidade. Conhecer o Brasil o fez mais americano?
Robinson -
Sim, ir para o Brasil me fez mais americano. Mas, mais do que isso: me fez confortável com a minha identidade como um americano negro. Sinto agora que não é apenas possível, mas também desejável, ter essas duas identidades: como americano e como afro-americano. Eu não vejo contradição aí. O mito do "melting pot" (caldeirão) americano, acho, era só isso: um mito. O que temos em vez disso é um "ensopado", unido por ideais comuns. Os afro-americanos são um sabor distinto desse ensopado. Obviamente, espero que todos os americanos se unam mais, que esqueçamos nossas diferenças e que aprendamos a viver em harmonia. Mas também espero que os diferentes sabores que acrescentamos não se percam. Se isso acontecer, parte da vitalidade e magia da América se perderá também.

Folha - O senhor aborda quase todos os temas atuais sobre a questão racial, exceto a ação afirmativa. Qual é a sua posição sobre o tema?
Robinson -
Eu deliberadamente não toquei no tema da ação afirmativa porque senti que, colocando uma posição no livro, isso iria fazer com que as pessoas o adotassem ou rejeitassem baseadas em suas posições sobre o tema, desviando a atenção da substância do texto. A ação afirmativa tem trazido muitos benefícios, mas que não são terrivelmente relevantes para a situação atual. Programas de ação afirmativa baseados em raça tendem a ajudar aqueles que estão mais preparados em vez de quem mais precisa de ajuda. Veja o meu caso. Quando não havia nenhum negro nas redações americanas, a ação afirmativa me ajudou a colocar um pé para dentro. Mas, agora que a porta está aberta, os meus filhos não precisam do mesmo tipo de ajuda. O problema é como chegar às milhões de pessoas esquecidas nos guetos e nas áreas rurais. Eu apoiaria um novo tipo de ação afirmativa que desse menos ênfase em raça e mais em renda e outros fatores parecidos.


Fabiano Maisonnave é pós-graduando em história na Universidade de Connecticut (EUA) e bolsista da comissão Fulbright.

Onde encomendar:
"Coal to Cream - a Black Man's Journey Beyond Color to an Affirmation of Race" (Free Press, US$ 24) pode ser encomendado, em SP, à Livraria Cultura (av. Paulista, 2.073, tel. 0/xx/11/285-4033).


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