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LIVROS
Jornalista dos EUA conta como descobriu que o país não é um paraíso racial
Desencanto no Brasil
FABIANO MAISONNAVE
especial para a Folha
O constante e crescente interesse dos norte-americanos pelas
nossas relações raciais é marcado
pela visão especular -ao olhar
para o Brasil, eles enxergam a si
mesmos. O mais recente livro
dessa linha é "Coal to Cream" (De
Carvão a Creme), lançado pelo
jornalista Eugene Robinson. Ex-correspondente do "Washington
Post" para a América do Sul, onde
morou em Buenos Aires, Robinson esteve várias vezes no Brasil.
Da recente onda de lançamentos comparando raça no Brasil e
nos Estados Unidos, o livro de
Robinson difere por não ser acadêmico, abrindo mão do suporte
estatístico ou bibliográfico. Em
decorrência disso, sua interpretação é sobretudo experimental.
O Robinson da primeira viagem
ao Brasil se mostra seduzido pelo
"paraíso racial" que havia encontrado, onde até poderia ser "branco" se quisesse. Aos poucos, depois de mais incursões pelo país,
Robinson vai acumulando decepções. No final, acaba condenando
a mesma falta de consciência racial que o havia deslumbrado.
O resultado do livro é ambivalente. Há várias passagens que
soarão como truísmo para quem
conhece minimamente o assunto,
mas Robinson, livre dos caminhos e das discussões acadêmicas,
traz ângulos novos por meio de
uma narrativa envolvente.
Aos 45 anos, Robinson viveu o
fim da segregação racial no sul
dos EUA, onde nasceu e cresceu.
O jornalista, entrevistado a seguir
pela Folha, mora com sua mulher
e dois filhos em um subúrbio de
classe média perto de Washington, onde trabalha como editor de
cultura do "Washington Post".
Folha - As relações raciais no
Brasil têm a tradição de iludir
muitos negros americanos. Ainda na década de 20, Robert Abbott, à época dono do "Chicago
Defender", maior jornal negro
da época, ficou fascinado em
sua visita ao país, chegando até
a propor a emigração de afro-americanos para lá. Como o senhor caiu na mesma armadilha,
70 anos depois?
Eugene Robinson - Como muitos outros afro-americanos,
quando eu cheguei ao Brasil, encontrei uma atmosfera racial envolvente e extraordinária. No primeiro encontro, realmente parece
uma Terra Prometida em termos
de relações raciais. A tensão e a
desconfiança que muitas vezes
marcam os encontros entre raças
nos EUA pareciam completamente ausentes. Quando eu andava na rua, sentia que não precisava ser um "negro". Eu poderia ser
apenas uma pessoa. Isso é uma
experiência nova para nós. Levou
algum tempo para eu perceber
que a raça desempenhava um papel importante no cotidiano brasileiro.
Folha - A sua experiência no
Rio de Janeiro o levou a perceber que havia uma hierarquia
de cor nos EUA semelhante a do
Brasil, mesmo entre os negros.
Segundo o senhor, nos dois países, quanto mais escura a cor da
pessoa, mais chance de ela estar
no patamar mais baixo da escada social. No entanto, como o
senhor afirma, a variável "cor"
pouco é mencionada nos EUA,
ao contrário de raça. Por que a
cor é um tabu aqui?
Robinson - Essa é uma boa pergunta. Eu acho que tem a ver com
a nossa história. Aqui nos EUA, o
mulato nunca foi considerado
uma categoria à parte. Se alguém
tem uma gota de sangue africano,
é negro. Na prática, isso significou
que, quem tivesse pele mais clara,
não tinha nenhum privilégio especial -a não ser que fosse claro
o suficiente para passar por branco. Por isso, estávamos todos no
mesmo barco e havia um incentivo para nós minimizarmos as diferenças de cor, para que ficássemos juntos e reivindicássemos direitos. O preconceito de cor que
existiu aqui era menor do que no
Brasil e permaneceu escondido,
nunca mencionado. Agora as pessoas estão falando um pouco mais
sobre isso.
Folha - A experiência no Carnaval foi o fim da sua ilusão sobre as relações raciais no Brasil.
O que fez do Carnaval tão frustrante e triste?
Robinson - O Carnaval foi tão
frustrante porque, durante toda a
alegria, no meio do maior show
da Terra, a divisão racial ficou
mais evidente para mim. As regras da sociedade são suspensas
durante o Carnaval; o rico e o pobre, o branco e o negro, são teoricamente iguais. Mas o que me
perturbou foi que isso não é tão
real assim. As mesmas divisões
que eu havia visto outras vezes
ainda estavam lá. O fato de elas
persistirem durante uma época
de tanta amizade e celebração foi
uma grande desilusão. Não me interprete mal: eu adorei o Carnaval
e ainda acho que foi uma das mais
inesquecíveis experiências da minha vida. Mas eu não pude mais
manter a ilusão de que o Brasil era
uma democracia racial.
Folha - Quais são os aspectos
negativos e positivos das relações raciais no Brasil quando se
compara com os EUA?
Robinson - Os aspectos mais
negativos são encontrados no
perfil geral da sociedade. Quantos
brasileiros negros ocupam escritórios nos bancos da avenida Paulista? Quantos vivem no Leblon?
Há quantos negros trabalhando
nos ministérios em Brasília? Na
maneira com que as pessoas se
socializam, o Brasil está vários
anos na frente dos EUA. Mas, na
forma com que a sociedade como
um todo é moldada, em termos
do lugar dos negros na sociedade,
o Brasil está muito atrás.
Folha - Como o senhor foi tratado no Brasil?
Robinson - Normalmente, fui
tratado mais como um americano
do que qualquer outra coisa. Sempre que as pessoas ouviam o meu
sotaque, elas sabiam que não era
brasileiro. Como representante
de um jornal americano bem conhecido, fui recebido com grande
respeito por quem entrevistei. Algumas vezes, no entanto, quando
eu não falava, muitos pensavam
que era brasileiro. Uma vez, fui visitar alguns amigos num prédio
no Rio de Janeiro, e o porteiro me
fez usar a porta de serviço. Em outra ocasião, quando estava vestido
com roupas bem surradas, a vendedora de uma loja em Ipanema
não abriu a porta para mim. Uma
vergonha: eu queria comprar um
sapato que havia visto na vitrine,
mas, como ela não me deixou entrar, não tive a chance.
Folha - A experiência no Brasil
reforçou no senhor a importância de raça como identidade.
Conhecer o Brasil o fez mais
americano?
Robinson - Sim, ir para o Brasil
me fez mais americano. Mas, mais
do que isso: me fez confortável
com a minha identidade como
um americano negro. Sinto agora
que não é apenas possível, mas
também desejável, ter essas duas
identidades: como americano e
como afro-americano. Eu não vejo contradição aí. O mito do "melting pot" (caldeirão) americano,
acho, era só isso: um mito. O que
temos em vez disso é um "ensopado", unido por ideais comuns.
Os afro-americanos são um sabor
distinto desse ensopado. Obviamente, espero que todos os americanos se unam mais, que esqueçamos nossas diferenças e que
aprendamos a viver em harmonia. Mas também espero que os
diferentes sabores que acrescentamos não se percam. Se isso
acontecer, parte da vitalidade e
magia da América se perderá
também.
Folha - O senhor aborda quase
todos os temas atuais sobre a
questão racial, exceto a ação
afirmativa. Qual é a sua posição
sobre o tema?
Robinson - Eu deliberadamente
não toquei no tema da ação afirmativa porque senti que, colocando uma posição no livro, isso iria
fazer com que as pessoas o adotassem ou rejeitassem baseadas
em suas posições sobre o tema,
desviando a atenção da substância do texto. A ação afirmativa
tem trazido muitos benefícios,
mas que não são terrivelmente relevantes para a situação atual.
Programas de ação afirmativa baseados em raça tendem a ajudar
aqueles que estão mais preparados em vez de quem mais precisa
de ajuda. Veja o meu caso. Quando não havia nenhum negro nas
redações americanas, a ação afirmativa me ajudou a colocar um
pé para dentro. Mas, agora que a
porta está aberta, os meus filhos
não precisam do mesmo tipo de
ajuda. O problema é como chegar
às milhões de pessoas esquecidas
nos guetos e nas áreas rurais. Eu
apoiaria um novo tipo de ação
afirmativa que desse menos ênfase em raça e mais em renda e outros fatores parecidos.
Fabiano Maisonnave é pós-graduando em
história na Universidade de Connecticut
(EUA) e bolsista da comissão Fulbright.
Onde encomendar:
"Coal to Cream - a Black Man's Journey Beyond Color to an Affirmation
of Race" (Free Press, US$ 24) pode ser
encomendado, em SP, à Livraria Cultura
(av. Paulista, 2.073, tel. 0/xx/11/285-4033).
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