|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Coletânea "Céu-Eclipse" traz novos poemas de Régis Bonvicino
A angústia da insuficiência
ABEL BARROS BAPTISTA
especial para a Folha
Cumpre esclarecer que ignoro o
lugar e a importância de Régis
Bonvicino na atual poesia brasileira e mesmo acrescentar que,
depois de ler "Céu-Eclipse", prefiro continuar a ignorá-los. Vai isso
assim dito, de entrada e de forma
um tanto brutal, não tanto por
causa do livro em questão, mas
sobretudo por causa da própria
resenha, cuja perspectiva de abordagem poderá parecer impertinente ou mesmo ilegítima.
De fato, houve um tempo em
que os críticos portugueses que se
ocupavam de autores brasileiros
os tratavam apenas na qualidade
de representantes da literatura
brasileira ou de uma certa literatura brasileira. Este discurso, que
quando abrigado em enquadramentos escolares mais ou menos
rígidos se animava de um sentido
colonialista evidente, contribuiu
para, entre outros efeitos, difundir o preconceito segundo o qual
o conhecimento e a apreciação de
uma obra literária dependem decisivamente do conhecimento do
respectivo local de origem.
Compreende-se que a vontade
de "ir aos sítios" sobrelevasse então a leitura dos textos, como se
compreende que a inviabilidade
da viagem quase obrigasse ao silêncio ou implicasse a impertinência da fala. Na verdade, apenas se passava que o privilégio absurdo dessa dimensão etnográfica
da crítica literária tendia a fazer
dos críticos portugueses meros
porta-vozes da crítica brasileira,
de que afinal dependiam para tudo, e não sei se essa dependência
não se constituiu num dos mais
pesados obstáculos ao alargamento das relações literárias entre
os dois países. Hoje, quando fazemos a experiência da "república
mundial das letras", a fragilidade
desse preconceito tornou-se evidente: está ao alcance de qualquer
um perceber que não é preciso
nascer em Sapucaia para sofrer os
efeitos deletérios da visita das primas.
Entretanto essas palavras introdutórias não têm intuito teórico
(como se o resenhista preferisse
alargar-se em obviedades em vez
de entrar na matéria), mas polêmico, porque visam reclamar -e
aliás o fazem não apenas contra
aquele preconceito, mas ainda
contra alguns opositores particulares bem identificados, posto
aqui não nomeados (se me permitem este sibilino aparte)- a legitimidade de uma crítica que justamente procura avaliar em que
medida um livro como "Céu-Eclipse" resiste a uma leitura ignorante do específico quadro local do seu aparecimento. O próprio Régis Bonvicino, de resto,
perceberá a enorme vantagem de
substituir o "conhecimento do
meio" pela leitura do livro, ao menos a fazer fé nas esclarecedoras
palavras que deixou na introdução que, com Nelson Ascher, escreveu para a antologia "Nothing
the Sun Could Not Explain":
"There can be no Weltliteratur if a
whole set of concerns and debates
is not universalized" (Não pode
haver Weltliteratur se todo um
conjunto de preocupações e discussões não for universalizado).
Posto isto, entremos na matéria,
e desde logo abordando um ponto em que continua em causa a
pertinência do particular ou do
circunstancial para a inteligibilidade da poesia. Refiro-me às "notas" incluídas no final do livro e
que fornecem algumas informações suplementares sobre alguns
dos poemas. É uma prática que
nunca deixará de causar os maiores incômodos a um leitor de poesia, que as terá de considerar inúteis, se nada acrescentam aos poemas, ou perniciosas, se estes delas
necessitam: em qualquer caso,
não há meio viável de neutralizar
a possibilidade de a nota que suplementa suplantar o poema suplementado.
Na poesia em língua portuguesa, tanto quanto sei, o melhor
exemplo de recurso insistente a
notas finais é Jorge de Sena, que
sempre teve, aliás, uma enorme
necessidade de se explicar. Mas as
notas de Sena tomavam o poema
como entidade acabada e autônoma e representavam de fato uma
passagem da poesia à crítica, afirmando a poesia de circunstância,
ou a sua condição de poeta culto,
ou ainda discutindo em alto nível
as opções tomadas e procedimentos adotados. Algo de semelhante
ao que encontramos, por exemplo, num livro como "Educação
dos Cinco Sentidos", de Haroldo
de Campos.
As notas de "Céu-Eclipse" são
de um outro tipo. Manifestamente heterogêneas, tanto referem
circunstâncias irrelevantes para a
leitura como explicitam alusões,
tanto fornecem meras informações biobibliográficas como
orientam a leitura do poema. Este
último é o caso mais grave: o poeta acaba por reduzir o poema a
simples veículo de acesso a uma
experiência particular. Uma nota
informa que "Fala" foi "feito a
partir de um e-mail, que recebi de
Robert Creeley, no dia da morte
de Allen Ginsberg". O poema, relido à luz da nota, ganha outro
sentido, porque o autor lhe impôs
um referente específico, mas perde em benefício da informação de que
o poeta se corresponde eletronicamente
com Robert
Creeley, a qual
é por sua vez
despicienda
para o leitor
avisado, que
terá lido a antologia de poemas de Creeley que
Régis Bonvicino traduziu e publicou em 1997.
O caso mais bizarro, porém,
ainda é o de uma nota atrelada a
quatro poemas ("O Céu", "Pétala", "Insetos" e "Neste Fio") para
dizer que "se referem" a certos
ipês amarelos de uma certa rua
que a certa altura muda de nome.
O leitor regressa aos poemas, mas
nem encontra o que fazer com essa informação nem alcança a razão de lha terem dado: não havia
dispositivo poético que suscitasse
interrogação sobre o referente, e a
respectiva explicitação não chega
a iluminar nenhum aspecto até aí
na obscuridade. Ainda que o poeta use "se referem" num sentido
muito lato e impreciso, a verdade
é que a nota cria um laço entre o
poema e uma realidade exterior
que apenas a palavra do autor suporta: o poema passa tão bem
sem ela como com ela. O leitor local ainda pode procurar a tal rua,
para aí ler os poemas; o leitor forasteiro, quando muito, consola-se presumindo que tudo não passa de gozação do poeta, se não for
erro tipográfico na indicação dos
títulos dos poemas.
Essa questão em volta das notas
surge de uma abordagem por certo oblíqua, mas não menos decisiva na respectiva apreciação crítica, pois, se praticamente nada
adiantam aos próprios poemas,
adiantam muito a respeito do autor. Não se tratando, longe disso,
de suplementos que relevam do
gesto crítico, como as de Sena ou
Haroldo, não nos informam apenas, nem principalmente, dos livros que o poeta leu, dos filmes
que venera, dos poetas com quem
convive ou das ruas que frequenta
-evidenciam sobretudo a inconsistência da sua poética, denunciando um poeta que ainda julga
possível estar na vinha e na eira ao
mesmo tempo: escreve uma poesia que independe de circunstâncias particulares, mas não quer
que o leitor ignore que depende
de circunstâncias particulares.
Encontramos aqui o que poderíamos chamar uma angústia da
insuficiência. Adotando uma
poética da concisão e da elipse,
Régis Bonvicino só pôde ser levado àquelas notas pelo receio de
que algo tenha ficado por dizer,
mais radicalmente, pelo receio de
que o poema seja insuficiente para dizer o que
deve ser dito e
que, no caso, é
fundamentalmente isto: que
o poeta adotou
uma poética da
concisão e da
elipse. Assim, a
nota é afinal o
discurso alternativo que torna inteligível,
não o poema, mas a opção poética
do autor, mostrando que, a partir
daquela matéria-prima, poderia
fazer outra poesia, não se desse o
caso de querer fazer essa! A escrita
tem dessas perversidades insuspeitadas.
Ademais, a angústia da insuficiência, uma vez detectada, deixa
ver um outro aspecto daquela inconsistência: é que as notas produzem um efeito de irremediável
fragmentação, incompatível com
o subtítulo "poema-idéia". Numa
entrevista recente, Régis Bonvicino explicou que tal subtítulo visava "acentuar que "Céu-Eclipse" é,
na verdade, um poema feito de
consequências. Para acentuar a
noção de conjunto". Mais uma
vez, trata-se menos de "acentuar"
o que já se percebeu do que de estabelecer o que não se suspeitava
que existisse. Em momento nenhum o leitor encontra quaisquer
elementos consistentes que indiciem o projeto de um livro dotado de um princípio de unidade:
não obstante a insistência nos
motivos da luz e do sol, notória
na primeira metade do livro, este
é sobretudo uma coletânea, e as
notas, no seu perverso desempenho, o confirmam.
Essas questões, que entendem
com a própria concepção do livro
e da poética, já de si essenciais,
tornam-se ainda mais visíveis
diante da mediania da linguagem
de Régis Bonvicino. Lemos preceitos de escola, mas pouca invenção, nenhum investimento
bem-sucedido na desfamiliarização da linguagem, nem uma simples busca de novos efeitos de escrita que redima o livro da desastrosa intervenção do autor-anotador. E, a meu ver, tampouco se
põe a questão de avaliar se esse
não será um livro menos feliz na
obra de Régis Bonvicino. Há por
certo melhor poesia em livros anteriores, mas aqui tocamos algo
mais do que uma infelicidade
passageira: é o próprio peso dos
ossos que impede o vôo da borboleta.
Abel Barros Baptista é professor da Universidade Nova de Lisboa e diretor-adjunto da
revista portuguesa "Colóquio-Letras". É autor, entre outros, de "Em Nome do Apelo do Nome" (Litoral Edições, Lisboa) e "Autobibliografias" (Relógio d'Água, Lisboa).
Texto Anterior: Mais vendidos Próximo Texto: Lista de não-ficção traz três livros de Eduardo Bueno Índice
|