São Paulo, Domingo, 12 de Setembro de 1999
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Coletânea "Céu-Eclipse" traz novos poemas de Régis Bonvicino
A angústia da insuficiência

ABEL BARROS BAPTISTA
especial para a Folha

Cumpre esclarecer que ignoro o lugar e a importância de Régis Bonvicino na atual poesia brasileira e mesmo acrescentar que, depois de ler "Céu-Eclipse", prefiro continuar a ignorá-los. Vai isso assim dito, de entrada e de forma um tanto brutal, não tanto por causa do livro em questão, mas sobretudo por causa da própria resenha, cuja perspectiva de abordagem poderá parecer impertinente ou mesmo ilegítima.
De fato, houve um tempo em que os críticos portugueses que se ocupavam de autores brasileiros os tratavam apenas na qualidade de representantes da literatura brasileira ou de uma certa literatura brasileira. Este discurso, que quando abrigado em enquadramentos escolares mais ou menos rígidos se animava de um sentido colonialista evidente, contribuiu para, entre outros efeitos, difundir o preconceito segundo o qual o conhecimento e a apreciação de uma obra literária dependem decisivamente do conhecimento do respectivo local de origem.
Compreende-se que a vontade de "ir aos sítios" sobrelevasse então a leitura dos textos, como se compreende que a inviabilidade da viagem quase obrigasse ao silêncio ou implicasse a impertinência da fala. Na verdade, apenas se passava que o privilégio absurdo dessa dimensão etnográfica da crítica literária tendia a fazer dos críticos portugueses meros porta-vozes da crítica brasileira, de que afinal dependiam para tudo, e não sei se essa dependência não se constituiu num dos mais pesados obstáculos ao alargamento das relações literárias entre os dois países. Hoje, quando fazemos a experiência da "república mundial das letras", a fragilidade desse preconceito tornou-se evidente: está ao alcance de qualquer um perceber que não é preciso nascer em Sapucaia para sofrer os efeitos deletérios da visita das primas.
Entretanto essas palavras introdutórias não têm intuito teórico (como se o resenhista preferisse alargar-se em obviedades em vez de entrar na matéria), mas polêmico, porque visam reclamar -e aliás o fazem não apenas contra aquele preconceito, mas ainda contra alguns opositores particulares bem identificados, posto aqui não nomeados (se me permitem este sibilino aparte)- a legitimidade de uma crítica que justamente procura avaliar em que medida um livro como "Céu-Eclipse" resiste a uma leitura ignorante do específico quadro local do seu aparecimento. O próprio Régis Bonvicino, de resto, perceberá a enorme vantagem de substituir o "conhecimento do meio" pela leitura do livro, ao menos a fazer fé nas esclarecedoras palavras que deixou na introdução que, com Nelson Ascher, escreveu para a antologia "Nothing the Sun Could Not Explain": "There can be no Weltliteratur if a whole set of concerns and debates is not universalized" (Não pode haver Weltliteratur se todo um conjunto de preocupações e discussões não for universalizado).
Posto isto, entremos na matéria, e desde logo abordando um ponto em que continua em causa a pertinência do particular ou do circunstancial para a inteligibilidade da poesia. Refiro-me às "notas" incluídas no final do livro e que fornecem algumas informações suplementares sobre alguns dos poemas. É uma prática que nunca deixará de causar os maiores incômodos a um leitor de poesia, que as terá de considerar inúteis, se nada acrescentam aos poemas, ou perniciosas, se estes delas necessitam: em qualquer caso, não há meio viável de neutralizar a possibilidade de a nota que suplementa suplantar o poema suplementado.
Na poesia em língua portuguesa, tanto quanto sei, o melhor exemplo de recurso insistente a notas finais é Jorge de Sena, que sempre teve, aliás, uma enorme necessidade de se explicar. Mas as notas de Sena tomavam o poema como entidade acabada e autônoma e representavam de fato uma passagem da poesia à crítica, afirmando a poesia de circunstância, ou a sua condição de poeta culto, ou ainda discutindo em alto nível as opções tomadas e procedimentos adotados. Algo de semelhante ao que encontramos, por exemplo, num livro como "Educação dos Cinco Sentidos", de Haroldo de Campos.
As notas de "Céu-Eclipse" são de um outro tipo. Manifestamente heterogêneas, tanto referem circunstâncias irrelevantes para a leitura como explicitam alusões, tanto fornecem meras informações biobibliográficas como orientam a leitura do poema. Este último é o caso mais grave: o poeta acaba por reduzir o poema a simples veículo de acesso a uma experiência particular. Uma nota informa que "Fala" foi "feito a partir de um e-mail, que recebi de Robert Creeley, no dia da morte de Allen Ginsberg". O poema, relido à luz da nota, ganha outro sentido, porque o autor lhe impôs um referente específico, mas perde em benefício da informação de que o poeta se corresponde eletronicamente com Robert Creeley, a qual é por sua vez despicienda para o leitor avisado, que terá lido a antologia de poemas de Creeley que Régis Bonvicino traduziu e publicou em 1997.
O caso mais bizarro, porém, ainda é o de uma nota atrelada a quatro poemas ("O Céu", "Pétala", "Insetos" e "Neste Fio") para dizer que "se referem" a certos ipês amarelos de uma certa rua que a certa altura muda de nome. O leitor regressa aos poemas, mas nem encontra o que fazer com essa informação nem alcança a razão de lha terem dado: não havia dispositivo poético que suscitasse interrogação sobre o referente, e a respectiva explicitação não chega a iluminar nenhum aspecto até aí na obscuridade. Ainda que o poeta use "se referem" num sentido muito lato e impreciso, a verdade é que a nota cria um laço entre o poema e uma realidade exterior que apenas a palavra do autor suporta: o poema passa tão bem sem ela como com ela. O leitor local ainda pode procurar a tal rua, para aí ler os poemas; o leitor forasteiro, quando muito, consola-se presumindo que tudo não passa de gozação do poeta, se não for erro tipográfico na indicação dos títulos dos poemas.
Essa questão em volta das notas surge de uma abordagem por certo oblíqua, mas não menos decisiva na respectiva apreciação crítica, pois, se praticamente nada adiantam aos próprios poemas, adiantam muito a respeito do autor. Não se tratando, longe disso, de suplementos que relevam do gesto crítico, como as de Sena ou Haroldo, não nos informam apenas, nem principalmente, dos livros que o poeta leu, dos filmes que venera, dos poetas com quem convive ou das ruas que frequenta -evidenciam sobretudo a inconsistência da sua poética, denunciando um poeta que ainda julga possível estar na vinha e na eira ao mesmo tempo: escreve uma poesia que independe de circunstâncias particulares, mas não quer que o leitor ignore que depende de circunstâncias particulares.
Encontramos aqui o que poderíamos chamar uma angústia da insuficiência. Adotando uma poética da concisão e da elipse, Régis Bonvicino só pôde ser levado àquelas notas pelo receio de que algo tenha ficado por dizer, mais radicalmente, pelo receio de que o poema seja insuficiente para dizer o que deve ser dito e que, no caso, é fundamentalmente isto: que o poeta adotou uma poética da concisão e da elipse. Assim, a nota é afinal o discurso alternativo que torna inteligível, não o poema, mas a opção poética do autor, mostrando que, a partir daquela matéria-prima, poderia fazer outra poesia, não se desse o caso de querer fazer essa! A escrita tem dessas perversidades insuspeitadas.
Ademais, a angústia da insuficiência, uma vez detectada, deixa ver um outro aspecto daquela inconsistência: é que as notas produzem um efeito de irremediável fragmentação, incompatível com o subtítulo "poema-idéia". Numa entrevista recente, Régis Bonvicino explicou que tal subtítulo visava "acentuar que "Céu-Eclipse" é, na verdade, um poema feito de consequências. Para acentuar a noção de conjunto". Mais uma vez, trata-se menos de "acentuar" o que já se percebeu do que de estabelecer o que não se suspeitava que existisse. Em momento nenhum o leitor encontra quaisquer elementos consistentes que indiciem o projeto de um livro dotado de um princípio de unidade: não obstante a insistência nos motivos da luz e do sol, notória na primeira metade do livro, este é sobretudo uma coletânea, e as notas, no seu perverso desempenho, o confirmam.
Essas questões, que entendem com a própria concepção do livro e da poética, já de si essenciais, tornam-se ainda mais visíveis diante da mediania da linguagem de Régis Bonvicino. Lemos preceitos de escola, mas pouca invenção, nenhum investimento bem-sucedido na desfamiliarização da linguagem, nem uma simples busca de novos efeitos de escrita que redima o livro da desastrosa intervenção do autor-anotador. E, a meu ver, tampouco se põe a questão de avaliar se esse não será um livro menos feliz na obra de Régis Bonvicino. Há por certo melhor poesia em livros anteriores, mas aqui tocamos algo mais do que uma infelicidade passageira: é o próprio peso dos ossos que impede o vôo da borboleta.


Abel Barros Baptista é professor da Universidade Nova de Lisboa e diretor-adjunto da revista portuguesa "Colóquio-Letras". É autor, entre outros, de "Em Nome do Apelo do Nome" (Litoral Edições, Lisboa) e "Autobibliografias" (Relógio d'Água, Lisboa).

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