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São Paulo, domingo, 12 de outubro de 2003

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TOM ZÉ, QUE COMPLETOU 67 ANOS ONTEM, RELEMBRA SUA INFÂNCIA, NARRA QUANDO VIU LUZ ELÉTRICA PELA PRIMEIRA VEZ E CONTA COMO, AOS 17 ANOS, SE INTERESSOU PELO VIOLÃO

A MÚSICA QUE VEIO DE IRARÁ

por Arthur Nestrovski e Luiz Tatit

Três em ponto da tarde. Tom Zé está no sofá, passando remédio no pé. "Rapaz, tinha jurado que estaria pronto para receber vocês." Precisa tratar de uma "doença de velho": esporão de calcâneo. Se a cena fosse ensaiada, não seria melhor. O misto de intimidade e estranheza, o vocabulário ("esporão de calcâneo"), para nós tão diferente, mas ao mesmo tempo tão direto e humano, o tom irreprodutível da voz, naquele sotaque nordestino que se conhece tão bem, já estava tudo ali, mais a delicadeza e humor que marcam sempre o que ele faz. E a jura: se tinha jurado, só podia ser à Neusa, companheira de todos os momentos há mais de 30 anos, musa, parceira de trabalho e "ponto", de quem ele se declara total e amorosamente dependente. Tom Zé sem Neusa não existe.
A entrevista foi na sala. Os três sentados à volta da mesa, que Neusa cobriu com um cobertor para proteger nossas mãos do frio -só mais um exemplo da sabedoria franca e generosa do casal. Tom Zé fala fácil e fala bastante. Assume o papel de entrevistado com o mesmo empenho que demonstra em compor, cantar, escrever, cuidar dos periquitos e do jardim do prédio. Qualquer sugestão basta para ele desfiar histórias e mais histórias, sem que nenhuma deixe de ter pertinência. Mais que pertinência: singularidade.
Fora do Brasil, Tom Zé conquistou um reconhecimento que, mesmo hoje, consagrado que seja entre nós, ainda pode causar surpresa. Desde 1990, quando David Byrne produziu o CD "The Best of Tom Zé" nos EUA, ele vem sendo reverenciado em matérias de capa de publicações como o "The New York Times", "Le Monde", "The Guardian", "Village Voice", "Le Nouvel Observateur". "Mr. Zé" (pronuncia-se "Zi") entra regularmente nas listas de melhores discos da década ou até mesmo do século passado. Nada disso abala a cordialidade gentilíssima e a psicanalisada modéstia do mestre de Irará.
Tudo acaba voltando para lá, aliás. Tom Zé pode não saber para onde vai até fazer questão de não saber, para que as coisas possam acontecer e a surpresa cumpra seu papel, mas não esquece um segundo de onde vem. As histórias que ele conta sugerem outro mundo, um Brasil tão arcaico que quase não dá para imaginar. Mas que continua vivo em cada frase do cavaquinho e cada contraponto do baixo, como em cada ruído estranho dos instrumentos que ele vem inventando há anos, reanimando uma tradição da Escola de Música da Bahia, onde estudou com seus queridos professores Ernst Widmer e Hans Joachim Koellreutter.
Foram três horas de fita gravada, fora o intervalo para o lanche (musse de maracujá). Não é possível transcrever tudo; mas é quase impossível cortar. Sua fala vem pronta, só precisando daqueles ajustes mínimos de texto escrito: diminuir repetições, deixar alguns pronomes de fora, definir pontuação. Quase um paradoxo para quem se declara um compositor de "defeitos", um "falhador". Sua fala vem pronta. Quem não está pronto somos nós.


Arthur Nestrovski é escritor e professor de literatura da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP). É autor de, entre outras obras, "Notas Musicais" (Publifolha).
Luiz Tatit é professor de linguística na USP e compositor.

A entrevista da qual se publica um trecho a seguir faz parte do livro "Tropicalista Lenta Luta", que será lançado no final deste mês pela Publifolha (288 págs., R$ 34). O volume traz também 25 textos do autor, fotos inéditas e todas as suas letras. Além disso, Tom Zé (1936) lança simultaneamente o CD "Imprensa Cantada 2003" e o DVD "Jogos de Armar", pela gravadora Trama.

Arthur Nestrovski - Você ouvia música em Irará?
Minha casa era geminada com o clube. No lugar onde eu dormia, a cama, eu me lembro bem, era encostada na parede do clube. Então, o bumbo do clube vivia no meu ouvido, quando tinha festa de mês em mês, tinha festa a noite toda. E eu ouvia mais alguma coisa lá das bandas que tocavam, mas o bumbo era mais presente, o bumbo era o novo útero da minha mãe, que deve ser essa a sensação, não é? Bum, o coração batendo, os dois depois batendo, o meu e o da mãe, não é? E essa é a única coisa a que se pode atribuir que eu tenho de inspiração de música.
Nunca tive nada a ver com o assunto, não é? Só aos 17 anos, o Renato, um dia, me disse: "Tom Zé, eu agora toco violão, não toco mais flauta". Eu estava indo ver as meninas no jardim, falei: "Que diabo". Foi naquele tal ano que eu tinha sido reprovado e fiquei em Irará, não fui nem estudar [em Salvador]. Era como se eu fosse abandonar os estudos. E no mês de agosto, um dia meio nublado de agosto, o Renato me disse: "Eu toco violão, e é muito mais bonito". O Renato era uns oito anos mais velho do que eu. Devo a ele o fato de ter começado a canalizar essa minha curiosidade.
Porque um dia, no campo de futebol, ele era uma dessas pessoas que gostavam de pensar coisas -na vida do interior tem muito isso-, um dia ele me disse, a gente estava perdendo para o time de Alagoinhas vergonhosamente e ele na torcida disse assim: "Você tem que jogar com a cabeça!".


Meu pai nasceu pobre-de-marré-desci, tinha tabuleta no princípio da vida, era marreteiro; ganhou a sorte grande na Loteria Federal em 1920 e tantos


Aquilo era um problema de trigonometria: jogar com a cabeça. Ninguém usava aquela metáfora. Futebol se jogava com os pés. Aí tive que repetir "jogar com a cabeça"; foi indo, foi indo até que entendi que eu devia prestar atenção em alguma coisa que nem podia imaginar o que era, no meio daqueles jogadores tão bons, que levavam a gente de aluvião.
Ele sempre me dizia uma coisa para eu pensar: "Você hoje vai torcer pelos bandidos ou pelo artista?". O artista era o mocinho, não é? E isso dava dor de cabeça. Você não podia imaginar que a pessoa pudesse torcer pelos bandidos. Era a negação da lógica. Da lógica bipolar e tal, do maniqueísmo. Ou melhor: a apresentação do maniqueísmo.
Então, um dia, ele fez essa interferência fatal na minha vida, quando me disse: "Eu não toco mais flauta, toco violão". "Puta merda!", eu falei. Estava indo ver as meninas, vi que as meninas já iam chegando, aquela aflição, mas eu tenho que ouvir Renato. Aí ouvi e ele prrramm: "Não quero outra vida, pescando no rio de Jereré...". No "de Jereré" a melodia faz dó, si, dó, ré; e o violão fazia dó, si, lá, sol. Contraponto do primeiro grau (veja como o contraponto estava na minha veia).
Esse contraponto do primeiro grau, nota contra nota, começando até com oitavas paralelas, se não me engano, esse contraponto me impressionou tanto que o mundo escureceu, as meninas desapareceram, naquela hora tudo girou, eu matei minha formiga preta. No interior dizem que, quando você mata uma formiga preta, escurece o mundo, que é o apocalipse, não é? Meu apocalipse foi ali: eu perdi completamente tudo em que estava ligado, todos os interesses momentâneos desapareceram com aquele buraco, não é? No eixo do ser. E no outro dia estava atrás de violão. Desse dia em diante nunca mais deixei de ficar atrás de música. Eu tinha 17 anos.

Nestrovski - Em casa não tinha ambiente para música?
Não. Minha mãe pintou durante o ginásio. Teve uma coisa com minha mãe, minha mãe Helena: ela foi a rebelde, porque lá pelo terceiro ano do ginásio disse a meu avô Pompílio que não queria mais estudar interna. Como não se podia mais botar uma moça na Bahia a não ser em Salvador e a não ser interna, ela voltou para Irará. Aí veio a casar com meu pai em 35; e eu nasci em 36.

Nestrovski - Seu pai tinha uma loja?
Tinha. Ele nasceu pobre-de-marré-desci, tinha tabuleta no princípio da vida, era marreteiro. Ganhou a sorte grande na Loteria Federal em 1920 e tantos. Então...

Luiz Tatit - Puxa! O grande prêmio da Loteria Federal?
Tudo era cósmico ou cômico lá. Meu pai tinha um bilhete premiado. Antes disso, tinha acontecido o seguinte: vocês conhecem a história no interior de enterrar pequenos potezinhos com moedas de libra esterlina? Essa era a maneira de passar heranças no interior. E o morto, para poder contar em vida, não contava aquilo a ninguém, era o mesmo que uma senha de banco, ele vinha em sonhos contar a alguém e você só podia desenterrar à meia-noite. Meu pai, que nunca teria coragem de ir à meia-noite em lugar nenhum desenterrar nada... não sei como foi parar uma herança dessas na mão dele.
Meu pai nunca teve parentes, eu nasci sabendo que ele não tinha parentes, porque os irmãos morreram tuberculosos, por pobreza, por isso, por aquilo, por aquilo outro, fome e tal. O lado de minha mãe que era a família rica. E eu na loja sabia que meu pai não tinha irmãos, que o pai dele tinha morrido há muito tempo. Aí meu pai conta que, quando ele ficou de posse do potezinho com as libras esterlinas, começaram a aparecer parentes de todo lado, gente dizendo que era sangue do sangue dele. Realmente, aqueles primos de segundo grau, primos de terceiro grau, concunhados, pode-se contrair uma parentela enorme na Bahia.
Então, um dia, meu pai resolveu dividir a herança. Isso era bem a cara dele, esse tipo de repente. "Olha, avise que eu vou dividir essa herança. Está marcado na casa de fulano de tal" -que ele não tinha casa- "tal dia, tal hora, vou levar as libras". Bom, vieram todos os interessados, deu tempo de correr os avisos, todos os interessados vieram, ele botou o pote no chão: "Uma sua, uma sua, uma minha, uma sua, uma sua, uma sua, uma minha..." -em três rodadas acabou. Ele aí chegou na porta da rua, o bilheteiro de Feira de Santana ia passando: "Seu Éverton, compra aqui, olha, uma boa centena, 0549". Ele ainda segurando as libras na mão assim: "Meu filho, não tenho dinheiro". "O que é isso aí na sua mão? Isso é dinheiro, seu Éverton, eu troco para o senhor". E ele comprou o bilhete inteiro, que foi premiado.

Tatit - Que loucura.
O homem divide a herança e já sai premiado. Então veio para Salvador receber, para saber o que se faz com um bilhete premiado. Ninguém sabia. Meu pai foi falar com Florentino Silva -eu cheguei a conhecer Florentino Silva. Eram grossistas na Bahia, uma família italiana, o que era raro por lá. Os caras estavam acostumados a tudo, naturalmente. Aí o Florentino disse: "Você dê um passeio aí, Éverton, trabalhe um pouco, que eu vou ver o que se faz. Bote o bilhete aqui". Meu pai botou o bilhete no cofre do Florentino e foi embora. Naquele tempo o mundo era de confiança.
Quando meu pai voltou, mais tarde, ele disse: "Éverton, o negócio é o seguinte: ou você entra num navio aqui no porto e vai para o Rio receber na Caixa Econômica ou tem um homem rico aqui que paga com 3%". Meu pai, que sempre teve ojeriza a viagem, recebeu 4.850 contos, botou nos bolsos, subiu em cima de um caminhão e foi para Irará. Isso era dinheiro para comprar metade da cidade.
Ele então começou a ter acesso a moças mais qualificadas, casou com a irmã da mãe de Roberto Santana, dona Mirandinha, que morreu com uma espinha que inflamou, uma coisa maluca. Aí meu pai casou com a irmã do pai de Roberto Santana, Helena Santana, irmã de Elísio Santana e Fernando Santana. Tanto que eu sou primo carnal de Roberto Santana, duas vezes.

Nestrovski - E seu pai abriu uma loja e você trabalhava no balcão, é isso?
É, mas antes da loja trabalhei em padaria. Ele, uma época, largou a loja, em 40 e tantos, largou a loja e teve padaria, eu trabalhei, teve pastelaria, eu trabalhei, quando voltou para a loja, em 48, que luxo! Tudo limpinho, não sujava nada, fechava às 18h. Ah, que felicidade, trabalhava dia de sábado, porque era feira, mas que felicidade.

Nestrovski - Tem uma história que você me contou uma vez... O caso do dinheiro que você escondia.
Ah, do tio, bom, do tio Elias, eu roubei o dinheiro do tio Elias, roubava sempre, não é? Aí comecei a viver uma vida de terror. Eu já tinha o terror na primeira infância...

Nestrovski - Eram uns colegas seus que lhe ameaçavam, não?
Isso, isso, a minha vida toda foi roubando e sendo roubado, não é? Quando entrei na escola primária, nessa sala da professora Joselita, aconteceu um incidente, um menino maior me deu uns cascudos. Meu pai foi na casa da viúva mãe dele se queixar, gritou lá. Meu pai chamava-se Cochicho, porque gritava muito, todo mundo aceitava isso, não era briga, não era nada. E meu pai nunca brigou com ninguém. Então, o professor Artur, para agradar meu pai, me botou na classe dele.
Ora, em Irará só tinha primeiro, segundo, terceiro e quarto anos primários, sendo que o quarto ano primário era a última escola. Então, muita gente que não queria sair da escola ficava lá no quarto ano. Eu saí do primeiro, onde já era tímido, envergonhado, fui para o quarto, onde estavam aqueles malandrões, que já eram um moleques mesmo de rua, barras-pesadas, e que não queriam sair da escola. Não passavam nunca do quarto ano. Então, eu... se no primeiro já era uma dificuldade, ali foi um inferno. Até meu primo, que Deus o abençoe -de quem meu pai tinha, em 1943, comprado a tal casa nova e ele passado a morar na casa em que eu morava antes-, ele, que já estava também humilhado (e eu não sabia), me tratava mal para caramba.
Eu pensava mesmo que eu era um espúrio. Então um moleque, que sentava comigo, Deus o abençoe, o Miro, começou a fazer um jogo assim: eu pego um objeto, um livro meu, ele diz uma palavra, o livro é dele. Quando não posso dar o livro, fico devendo um cruzeiro. De vez em quando eu pegava ele, mas ele me pegava a semana toda. Aí, no fim da semana estava devendo a ele 17 mil réis; ele chegava na pastelaria do meu pai, me dava 5.000 réis para comprar um cigarro e eu dava o troco da compra a ele mais os 17 mil réis que devia, do "contrato" na escola.
No princípio, isso só metia medo a mim, depois eu vi que essa história ia se espalhando e então o terror ia ficando cada vez maior. Demorou três anos para o meu pai saber. Não tive coragem de contar dentro de casa: "Estou sendo espoliado". Então, me habituei a viver sob terror. Então, depois eu mesmo roubava na loja de meu pai.
Uma vez eu peguei o dinheiro de meu tio em Salvador. Aí meu pai foi me buscar, todo mundo já contra mim. A família ficava contra você. Primeiro, você já era um moleque nascido lá do casamento que ninguém aprovava muito, aqueles porquinhos todos nascendo naquela casa pobre e tal (antes de meu pai mudar para a casa grande, em 1943); a família de minha mãe já saindo do campesinato e indo para a universidade, família culta e tal, então, já era muito difícil aceitar a gente. Eu via tudo, não sabia por que diabos não me ensinaram a pegar num garfo para não passar tanto vexame e lá vai o diabo acontecendo.
Um dia roubei o dinheiro do tio Elias, que também me roubaram na praia, e eu não desfrutei o dinheiro, não é? Um cara mais velho tomou o dinheiro para guardar e sumiu com ele. Eu ficava com vergonha de perguntar: "Cadê o dinheiro?". Veja como eu era idiota [risos]. Aí meu pai foi chamado, no dia que descobriram que fui eu, e meu pai me disse assim: "Meu filho, levo você até a beira do abismo". Esse tipo de coisa trágica: era como se eu fosse um criminoso lá dentro de casa. Um negócio estranho, meu pai era uma pessoa que não maltratava a gente nunca. Então, essas coisas me botavam num mundo trágico. Eu não sabia nem o nome, falava "trágico" para poder me defender um pouco, nominar. Aí fugi de casa, fiz o diabo...
Até que um dia um professor de história... O professor Orlando Bahia Monteiro, ele falava baixinho, e como falava baixinho, comecei a ouvir. Ele inaugurou, naquele ano, uma tal de história interpretativa: fatores que levam a pensar que o descobrimento do Brasil foi intencional e fatores que levam a pensar que não foi intencional, os argumentos são tais e tais. Ora, uma coisa de argumento você presta atenção, é quase um júri em sua presença. Então, eu prestei atenção. Na aula seguinte, ele me chama, eu não sabia que sabia, tirei nota nove na tal da sabatina. Novamente não tomei bolo, tirei nota nove. E, então, eu comecei a estudar história porque ele me gabava. Comecei a estudar história para não negá-lo. Foi nesse ano que eu comecei a estudar (depois daquele terceiro ano que eu perdi).
Aí a professora de português, professora Belmira, um dia disse uma coisa comovente, um negócio assim: "Vocês têm que aprender português" -aquela professora miudinha, negra, sentada naquela cadeira enorme, parecia sumir ali, mas ela era de um vigor! Eu não pensava em escrever nem fazer música nem nada, mas ela disse o seguinte: "Vocês têm que aprender português. De onde é que vão sair os escritores e os poetas?".
Ora, só ter uma expectativa boa sobre mim, mesmo como coletividade, era um bálsamo. Eu fiquei com os olhos mareados lá no fundo da sala. Naturalmente me escondi, para ninguém ver. Mas aquilo me bateu que eu comecei a estudar português também, porque a mulher tinha me agradado. Tanto é que virei estudante, a partir desse ano. Voltei a estudar, equilibraram-se as coisas e tal. E aí tudo é fanático, não é? Quando voltei a estudar, voltei como cdf.

Tatit - Volta a participação dos professores, não é?
É, é. Esse disco último ["Jogos de Armar"] foi dedicado aos professores por isso, não é? Porque Belmira me salvou a vida; e o professor Artur, na escola primária. Eu, numa casa bastante porão, no sentido de que tudo era escuro, o mundo não tinha esperança e tal, aquelas brigas eternas, aquele negócio terrível, aí o professor Artur falava em primavera nossa, como aquilo era delicioso! E sol, o sol é uma coisa... Aí tinha uma canção que eu me admirava, a "Canção da Árvore". Dizia assim: "O sol de dezembro lhe dá seu calor". Eu me perguntava como é que o sol dá seu calor. O sol mata as plantas de calor. Nasci vendo as plantas morrerem, o fumo não crescer, aquela situação, a cidade em miséria porque o sol acabava com tudo; mas tinha lá, do mundo civilizado: "O sol de dezembro lhe dá seu calor".
E tudo isso que ele falava de primavera, isso me encheu de luz, professor Artur, que santa coisa aquele homem lá. Um homem positivo.
No dia de eu fazer a minha prova final de aritmética, ele me fez um negócio maravilhoso. Me disse assim: "Vou fazer uma questão para você, que você não conhece o assunto..." -agora, por que ele foi fazer logo comigo, isso é que é incrível, meu Deus-, "mas, pelo que já aprendeu, você pode deduzir. Se acertar eu aumento sua nota; se errar, não diminuo. Você aceita?". Eu falei: "Aceito". Sabia que tinha passado e tal. "Aceita? Aceito."

Tatit - Não tinha nada a perder.
Lá sei eu... Pelo menos raciocinei, tive coragem. Ele deu o problema, realmente resolvi, uma coisa simples, boba. Ele aí me gabou muito. Isso foi durante muito tempo... O professor Artur me sustentava aqui com essa coisa de dizer que eu era inteligente.
Tanto que um dia eu tive uma prova de que a cabeça podia me tirar da desgraça. Carreguei isso comigo por anos. Foi assim: eu estava jogando bola. Era proibido de tomar chuvisco e de jogar bola. E estava jogando, na rua da Quixabeira. Minha mãe, olhando de certa janela lá de casa, via parte dessa rua. Eu estava no campo de visão dela num momento em que estava chuviscando e ela me viu. Aí ouvi, porque a gente ouvia de longe: "Antônio José!"

Nestrovski - Dois crimes: jogando bola e na chuva.
A chuva, então! Para a asma... Minha mãe achava que a asma era a chuva, a chuva era a tuberculose, eram os parentes de meu pai que estavam querendo me tuberculizar e tal. Muito bem. Então pensei: "Meu Deus, vou apanhar". Me encostei escondido na parede e tive a idéia: olhei os meninos e escolhi o que mais se parecia comigo. Mandei ele vestir meu calção, botei a boina (aquela boina antiga de jogador de futebol) e disse: "Carlito, desça e passe na rua de baixo, mas você tem que fazer minha mãe o ver". Tinha uma festa de rua, todo mundo estava na janela. Carlito foi inteligente, passou várias vezes. Quando entrei em casa, veio a solução maravilhosa. "Já estava preparando o cipó para lhe dar uma surra", falou minha mãe, "quando vi o menino que eu pensei que era você passando aqui". Ah, nesse dia, eu disse: "Estou salvo, tem uma coisa aqui na cabeça que pode me salvar". Minha mãe falou exatamente o que eu precisava ouvir. Nossa! Como eu fiquei com fé, com esperança.

Tatit - Aproveitando essa história do professor, uma coisa que achei comovente naquele vídeo que a Carla Gallo fez ["Tom Zé, ou Quem Irá Botar Dinamite na Cabeça do Século?"], foi o depoimento do Koellreutter sobre aquela música sua, "Toc". Talvez tenha sido um dos últimos depoimentos lúcidos dele, porque logo depois adoeceu, não é? Estava em transe nesse depoimento. Falou que não conseguia dormir à noite tendo ouvido sua música. Você fica imaginando toda aquela experiência, de 80 e tantos anos, tudo o que ele passou, e ouvindo sua música numa emoção, mas numa emoção que eu nunca vi. Inverteu-se a história: o professor completamente extasiado, depois de tantos anos, com seu aluno. Aquilo é demais, não é?
Agora, pense, depois que saí da escola nunca imaginei voltar a receber uma aprovação daquelas pessoas. Quando a menina Carla Gallo me falou que ia mostrar o disco, eu lhe disse: "Não faça isso, o professor, coitado, está cansado, você vai aborrecê-lo com música". Ela insistiu: "Mas ele quer ouvir...".
Depois perguntei: "O que foi que ele ouviu, foi "Toc'?". "Não, ouviu o primeiro disco todo." Aí fui ouvir com o ouvido dele, para saber o que é que podia ter interessado a Koellreutter. Fui ouvir com o ouvido que eu sabia que a escola... que ainda me lembrava do que era...

Tatit - Com uma sinceridade, rapaz, ele estava falando que não conseguiu dormir à noite, depois de ter ouvido aquela música. Então, você vê, ele vem de uma outra formação completamente diferente, deu a volta, você já tinha passado uma carreira inteira, ele também, e ele agora impressionado com aquilo. Aquele depoimento eu achei uma das coisas mais... É um coroamento, assim, de toda uma vida.
Nossa Senhora! Realmente aquilo, se eu tivesse juízo... faria como o Gil disse, depois do Grammy: "Agora, preciso providenciar uma boa morte".


Nestrovski - Podemos voltar um pouquinho para Irará? Queria que você contasse de novo duas histórias lindas, que já me contou: a primeira vez que você viu uma torneira e a primeira vez que viu uma lâmpada.
Nossa Senhora! Olha, imagine a torneira... Imagine que, para ter água de beber... água de cisterna a gente tinha, cisternas muito fundas lá em Irará. Essa água dava para lavar as mãos, tomar banho, lavar prato; mas para beber tinha de ir na Fonte da Nação. Então vinha o aguadeiro, que vendia aquela água potável. Chegava na sua porta com um jegue portando quatro barris na cangalha. Você comprava essa carga toda, botava numa talha; durante uma semana, tinha água para beber e para cozinhar.
Um belo dia, vou para Salvador e tia Wanda me fala: "Lave o rosto aí". Achei estranho, porque era uma pia sem água. Vacilei: "Não tem água". Ela disse: "Olhe a torneirinha aí". Girei cuidadosamente a alça superior e saiu água! Não contei nada a ela, só pensei: "Puxa vida, mas que danação!". Depois fui lá para cima. Quando ia saindo, tia Wanda me disse: "Feche". Voltei e fechei; e a fonte sumiu, não é? Isso, realmente... para o meu mundo era mágica!
Uma água que está lá longe, que você vai buscar, pega na fonte, onde está minando, carrega no jegue, bota dentro de casa para beber. Mas eis que num contrapasso, olha a água vindo por uma pequena torneira ali quietinha e pronta para o inesperado, que coisa de mundo de conto de fadas, não é? Que coisa louca, uma torneira e o que era mais ainda de conto de fadas: você fecha a torneira, acabou a fonte. A fonte desapareceu. Cadê a fonte? Não está mais aqui. A fonte foi retirada. Encanto, o Mágico de Oz passou...

Nestrovski - E a lâmpada, a mesma coisa?
A lâmpada foi na porta de seu Chaves, o farmacêutico. Não havia ainda eletricidade em Irará, porque só chegou em 1950. E isso foi em 1947, 48, coisa de João Marinho, família muito rica.
Enfim, João Marinho tinha posto luz elétrica nas casas que construiu, era gente grande em Feira de Santana. Fez casas novas, modernas, aquela coisa brasileira, arquitetura dos anos 50 e tal e botou luz elétrica. Um dia, minha mãe foi visitar a mulher do seu Chaves e, no pátio, assim, naquela primeira entrada que já é coberta, essas varandinhas da casa, ela disse: "Deixa eu lhe mostrar" e acendeu a lâmpada.
Nossa Senhora! Aquela luz sem nenhuma mancha! Porque os candeeiros nossos sempre tinham uma coisa que não estava bem, não é? A fumaça que subia do próprio candeeiro sujava o tubo. Nunca aquela luz era perfeita. Eu fiquei extasiado. Criança não se mete em conversa de adulto, então podia sentir à vontade, era uma vantagem.
Aí eu me dizia: "Meu Deus, vai morrer agora a catapora, a mula-sem-cabeça, o lobisomem" -aquelas histórias que me aterrorizavam, principalmente naquela casa enorme, com piso e forra de madeira, que estalava a noite toda, esfriando do sol, não é?
Eu passava horas sem dormir. À noite, era a hora do terror. Criança lá vai dormir às 20h e sofre a noite toda, ninguém liga se está dormindo ou não. Vai agora, com uma luz dessa não pode aparecer bicho nenhum; porque a luz do candeeiro bruxuleando, palpitando assim levemente, já era por natureza vizinha da mula-sem-cabeça, mas essa lâmpada, absolutamente branca? Nossa Senhora, aquilo foi... Até hoje ainda me lembro daquela cor, daquela cor que é uma cor que você nunca viu antes. Isso que é o inaugural, não é? A placa inaugural, a cor daquele filete lá, que agora a gente sabe que é tungstênio.

Tatit - E quando a luz elétrica chegou na cidade?
Quando botaram luz elétrica em Irará também foi uma emoção. Porque criança não tinha o que fazer. Valha-me Nossa Senhora! Um dia é um tormento de vazio. Então, tudo o que acontece na cidade é uma grande novidade. Botar luz elétrica em Irará... Você ficar na janela olhando aquele movimento lentíssimo: um dia chegava gente para cavar um buraco. Um dia botavam ali uma coisa de madeira desse tamanho, que chamavam "poste". Um dia fincavam esses postes. Um dia vinham pregando umas primeiras coisas, que futuramente vão segurar os transformadores. Depois, as linhas de três fios, da corrente de 11 mil volts. Fui aprendendo tudo, porque só vivia olhando e escutando.
O fato é que, depois de montarem tudo, consegui repetir uma ligação trifásica num nicho lá de casa e acendeu. Porque eu não tinha outra coisa para fazer: era só observar. E quando a luz estava para inaugurar na cidade -tinha ouvido dizer que ia ser ligada no sábado às 16 horas-, então tomei coragem, porque criança não falava com adulto, e perguntei ao funcionário. E ele: "É, vai ligar às 16h". E eu: "A que horas chega aqui?".
Olha, de Coração de Maria para Irará você passava meio dia viajando. Saía de manhã, chegava lá ao meio-dia. Podia demorar pouco, mas tinha que demorar alguma coisa! Quando ele me disse: "Chega na mesma hora", pensei que estivesse zombando e fechando a conversa. Já estava segregando criança. Fiquei triste, porque eu estava conseguindo respostas de um adulto, ainda mais um adulto da eletricidade, não é?

Nestrovski - Foi seu tio quem trouxe a luz?
É. Meu tio Elísio botou luz elétrica em Irará. Era prefeito de Irará. Eu estava no palanque no dia em que ele botou a luz com a roupa de caroá, muito humilhado porque a roupa do filho dele, Jarbas, era de casimira. Esses contrastes...

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