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O filósofo discute "Estado de Exceção", livro de Giorgio Agamben lançado neste ano na Itália que propõe que a imanência pode ser realista e revolucionária
O Copérnico do pensamento
Antonio Negri
Mesmo sendo um leitor assíduo de Giorgio Agamben,
até hoje só resenhei um livro
dele, "A Linguagem e a
Morte", de 1982. Tratava-se de uma verdadeira introdução à filosofia, que propunha um método de análise que, nos
anos seguintes, se tornaria característico
do autor: construir criticamente no terreno do ser, escavando sobre a margem
existencial e linguística, o caminho da redenção. Uma redenção cem por cento
imanente, que jamais esquece a condição
mortal. Assim, trabalhar em filosofia significaria atravessar o ser com empenho
ético, eliminando todo resíduo dialético
(na época tão difuso entre os epígonos
do idealismo e do socialismo declinante)
e produzir um conhecimento verdadeiro, politicamente orientado e eticamente
qualificado, no sentido de uma possível
redenção humana.
À primeira vista, poderia parecer que
Agamben se movia na mesma direção
que Derrida e Nancy, debulhando um
ponto do ser desejoso do outro, porém
sempre ilusório. Mas não era assim.
Quanto mais Agamben se aprofundava
em sua análise fenomenológica do ser,
mais trabalhava o possível, um novo horizonte, assim como Blanchot atravessava o mundo linguístico em termos de ontologia crítica. É desse modo que Agamben se aproxima (e avizinha a descrição à
realidade que descreve) do "general intellect", ou seja, de uma idéia positiva do
ser linguístico comum, atravessado por
lutas, processos de exploração e impulsos liberatórios.
Mas como é possível estruturar o mundo que essa abordagem ontológica constitui? De que modo alguém como Agamben, que sempre teve a morte presente
na descrição fenomenológica, consegue
construir positivamente a idéia da redenção? Em torno desse projeto, o percurso teórico de Agamben apresentou
rupturas cada vez mais evidentes.
Talvez seja em "A Comunidade", de
1990, que a ruptura se manifeste com
mais força, quando a experiência da redenção se apresenta como distopia. Ela
exigia que a fronteira da morte fosse
atravessada pela tensão da vida e que o
método introjetasse a máxima espinosista: "O homem sábio não pensa na morte,
mas na vida". Com isso a idéia do biopolítico começava a surgir como potência
central, certamente inquieta, talvez alternativa, de qualquer modo estruturalmente inovadora no pensamento de
Agamben. Depois, em "Homo Sacer"
[ed. UFMG], essa problemática de novo
se apresenta em toda a sua complexidade
e contraditoriedade.
De fato há dois Agamben. Há aquele
que se detém sobre um fundo existencial, fatal e terrível, em que é forçado a
um confronto contínuo com a idéia da
morte; e há um outro que, por meio da
imersão no trabalho filológico e na análise linguística, conquista (coloca peças,
manobra, constrói) o horizonte biopolítico. Nesta segunda situação, Agamben
parece às vezes um Warburg da ontologia crítica. No entanto é paradoxal que os
dois Agamben estejam sempre juntos e,
quando você menos espera, o primeiro
reapareça e obscureça o segundo, e a
sombra da morte se estenda lúgubre
contra a vontade de viver, contra o excedente de desejo. Ou o contrário.
Em "Estado de Exceção" temos a possibilidade de ler simultaneamente esses
dois Agamben. Em primeiro lugar,
Agamben reconhece e denuncia o fato de
que o estado de exceção (um estado de
morte) agora abrange toda estrutura de
poder e esvazia de modo radical toda experiência e definição de democracia. É a
condição imperial. E aqui se abre uma
primeira linha de leitura: essa definição
de estado de exceção se instaura num horizonte de ontologia indiferenciada, cínica ou pessimista, em que todo elemento
é absorvido no jogo vazio de uma negatividade igual. O estado de exceção surge
aqui como fundo indiferente que neutraliza e descolore os horizontes, reconduzindo-os a uma ontologia incapaz de
produzir sentido, a não ser em termos
destrutivos. Esse ser é totalmente improdutivo. Esse ser se confunde com o direito (ou com a sua ausência) ali onde apenas o direito poderia ser chamado a conferir um sentido ao real. Assiste-se, pois,
a uma sobrevalorização do direito e a
uma desvalorização da ontologia: a realidade não produz sentido.
Paradoxo
Nesse ponto, é evidente
que não há diferença entre estado de exceção e poder constituinte, porque ambos vivem no mesmo nível de indistinção. Nesse Agamben, a definição do biopolítico se apresenta como indiferente ao
antagonismo: inútil argumentar que o
direito de exceção anula o ser, já que, ao
contrário, é a resistência e o poder constituinte que o criam. Não. Aqui, tudo o
que ocorre no "bios" se dobra à indistinção da natureza, ao "zoe"... De fato, não é
difícil ver em ação aquela deriva que
obriga toda concepção unilateral do
"bios" a uma redução naturalista.
O efeito dessa primeira parte da análise
é paradoxal: é como se tudo o que ocorre
no mundo, hoje, estivesse fixado em um
horizonte totalitário e estático, como
"sob o nazismo". Mas as coisas não são
bem assim: se vivemos em um estado de
exceção, é porque vivemos uma "guerra
civil", feroz e permanente, em que o positivo e o negativo se confrontam -e em
nenhum caso a sua potência antagonista
deve dissolver-se na indiferença.
Mas Agamben não pára por aqui. "Estado de Exceção" nos apresenta uma segunda perspectiva, mais original, mais
poderosa: trata-se de uma linha espinosista e deleuziana. Aqui, nesse segundo
terreno, a análise não sobrevoa um biopolítico inerte, mas o atravessa com uma
fervorosa ânsia utópica, colhendo o seu
antagonismo interno. A arma filológica
que Agamben utiliza com tanta destreza
se torna, nesse ponto, diante da complexidade de que é investida, quase incerta,
em todo caso tateante; as descobertas
emergem como surpresas, mas são autênticas descobertas, inovações conceituais e linguísticas.
O pós-moderno mostra-se, aqui, ontologicamente duro e criativo. E é nesse
núcleo que a arqueologia e a filologia são
sucedidas pela genealogia do biopolítico.
De fato o dispositivo utópico não se contrapõe sincronicamente ao horizonte
ontológico, mas irrompe, penetra e
aprofunda diacronicamente as instituições e o desenvolvimento jurídico. Aqui
a dialética é realmente superada, porque
o biopolítico é desconstruído e atravessado por dentro.
A essa altura, o biopolítico em Agamben não é mais observado do exterior,
como se fosse uma realidade independente a ser estudada e reconhecida
-um fruto a ser colhido. O hegelianismo foi aqui definitivamente ultrapassado por uma crítica que reconhece a impossibilidade da homologia dialética dos
opostos. E com ele foi superada qualquer
nostalgia da esquerda hegeliana. O próprio Benjamin, que no entanto viveu e
propôs essa série de imbróglios problemáticos e de dolorosas reminiscências
dialéticas, foi ultrapassado. Com um gesto formidável, Agamben vai além, conceitual e eticamente, do estado de exceção, atravessando-o; assim como o cristianismo primitivo e o comunismo das
origens atravessaram o poder ou a exploração, destruindo-os, porque lograram
esvaziá-los. Nesse segundo cenário, a
análise de Agamben mostra como a imanência pode ser realista e revolucionária.
Este é um livro cansativo em seu desenvolvimento e em seus dualismos, mas
extraordinário na realização. Esclarece
um ponto em torno do qual a filosofia
pós-estruturalista e pós-moderna havia
até aqui girado no vazio, fazendo -a
contrapelo- do horizonte biopolítico
uma experiência verificável e percorrível. Uma experiência copernicana.
Antonio Negri é filósofo italiano, autor de, entre
outros, "O Poder Constituinte" (DP&A), "Exílio"
(Iluminuras) e "Império" (Record), com Michael
Hardt. Este texto foi publicado no "Il Manifesto".
Tradução de Maurício Santana Dias.
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