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São Paulo, domingo, 12 de outubro de 2003

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O filósofo discute "Estado de Exceção", livro de Giorgio Agamben lançado neste ano na Itália que propõe que a imanência pode ser realista e revolucionária

O Copérnico do pensamento

Antonio Negri

Mesmo sendo um leitor assíduo de Giorgio Agamben, até hoje só resenhei um livro dele, "A Linguagem e a Morte", de 1982. Tratava-se de uma verdadeira introdução à filosofia, que propunha um método de análise que, nos anos seguintes, se tornaria característico do autor: construir criticamente no terreno do ser, escavando sobre a margem existencial e linguística, o caminho da redenção. Uma redenção cem por cento imanente, que jamais esquece a condição mortal. Assim, trabalhar em filosofia significaria atravessar o ser com empenho ético, eliminando todo resíduo dialético (na época tão difuso entre os epígonos do idealismo e do socialismo declinante) e produzir um conhecimento verdadeiro, politicamente orientado e eticamente qualificado, no sentido de uma possível redenção humana. À primeira vista, poderia parecer que Agamben se movia na mesma direção que Derrida e Nancy, debulhando um ponto do ser desejoso do outro, porém sempre ilusório. Mas não era assim. Quanto mais Agamben se aprofundava em sua análise fenomenológica do ser, mais trabalhava o possível, um novo horizonte, assim como Blanchot atravessava o mundo linguístico em termos de ontologia crítica. É desse modo que Agamben se aproxima (e avizinha a descrição à realidade que descreve) do "general intellect", ou seja, de uma idéia positiva do ser linguístico comum, atravessado por lutas, processos de exploração e impulsos liberatórios. Mas como é possível estruturar o mundo que essa abordagem ontológica constitui? De que modo alguém como Agamben, que sempre teve a morte presente na descrição fenomenológica, consegue construir positivamente a idéia da redenção? Em torno desse projeto, o percurso teórico de Agamben apresentou rupturas cada vez mais evidentes. Talvez seja em "A Comunidade", de 1990, que a ruptura se manifeste com mais força, quando a experiência da redenção se apresenta como distopia. Ela exigia que a fronteira da morte fosse atravessada pela tensão da vida e que o método introjetasse a máxima espinosista: "O homem sábio não pensa na morte, mas na vida". Com isso a idéia do biopolítico começava a surgir como potência central, certamente inquieta, talvez alternativa, de qualquer modo estruturalmente inovadora no pensamento de Agamben. Depois, em "Homo Sacer" [ed. UFMG], essa problemática de novo se apresenta em toda a sua complexidade e contraditoriedade. De fato há dois Agamben. Há aquele que se detém sobre um fundo existencial, fatal e terrível, em que é forçado a um confronto contínuo com a idéia da morte; e há um outro que, por meio da imersão no trabalho filológico e na análise linguística, conquista (coloca peças, manobra, constrói) o horizonte biopolítico. Nesta segunda situação, Agamben parece às vezes um Warburg da ontologia crítica. No entanto é paradoxal que os dois Agamben estejam sempre juntos e, quando você menos espera, o primeiro reapareça e obscureça o segundo, e a sombra da morte se estenda lúgubre contra a vontade de viver, contra o excedente de desejo. Ou o contrário. Em "Estado de Exceção" temos a possibilidade de ler simultaneamente esses dois Agamben. Em primeiro lugar, Agamben reconhece e denuncia o fato de que o estado de exceção (um estado de morte) agora abrange toda estrutura de poder e esvazia de modo radical toda experiência e definição de democracia. É a condição imperial. E aqui se abre uma primeira linha de leitura: essa definição de estado de exceção se instaura num horizonte de ontologia indiferenciada, cínica ou pessimista, em que todo elemento é absorvido no jogo vazio de uma negatividade igual. O estado de exceção surge aqui como fundo indiferente que neutraliza e descolore os horizontes, reconduzindo-os a uma ontologia incapaz de produzir sentido, a não ser em termos destrutivos. Esse ser é totalmente improdutivo. Esse ser se confunde com o direito (ou com a sua ausência) ali onde apenas o direito poderia ser chamado a conferir um sentido ao real. Assiste-se, pois, a uma sobrevalorização do direito e a uma desvalorização da ontologia: a realidade não produz sentido.

Paradoxo
Nesse ponto, é evidente que não há diferença entre estado de exceção e poder constituinte, porque ambos vivem no mesmo nível de indistinção. Nesse Agamben, a definição do biopolítico se apresenta como indiferente ao antagonismo: inútil argumentar que o direito de exceção anula o ser, já que, ao contrário, é a resistência e o poder constituinte que o criam. Não. Aqui, tudo o que ocorre no "bios" se dobra à indistinção da natureza, ao "zoe"... De fato, não é difícil ver em ação aquela deriva que obriga toda concepção unilateral do "bios" a uma redução naturalista.
O efeito dessa primeira parte da análise é paradoxal: é como se tudo o que ocorre no mundo, hoje, estivesse fixado em um horizonte totalitário e estático, como "sob o nazismo". Mas as coisas não são bem assim: se vivemos em um estado de exceção, é porque vivemos uma "guerra civil", feroz e permanente, em que o positivo e o negativo se confrontam -e em nenhum caso a sua potência antagonista deve dissolver-se na indiferença.
Mas Agamben não pára por aqui. "Estado de Exceção" nos apresenta uma segunda perspectiva, mais original, mais poderosa: trata-se de uma linha espinosista e deleuziana. Aqui, nesse segundo terreno, a análise não sobrevoa um biopolítico inerte, mas o atravessa com uma fervorosa ânsia utópica, colhendo o seu antagonismo interno. A arma filológica que Agamben utiliza com tanta destreza se torna, nesse ponto, diante da complexidade de que é investida, quase incerta, em todo caso tateante; as descobertas emergem como surpresas, mas são autênticas descobertas, inovações conceituais e linguísticas.
O pós-moderno mostra-se, aqui, ontologicamente duro e criativo. E é nesse núcleo que a arqueologia e a filologia são sucedidas pela genealogia do biopolítico. De fato o dispositivo utópico não se contrapõe sincronicamente ao horizonte ontológico, mas irrompe, penetra e aprofunda diacronicamente as instituições e o desenvolvimento jurídico. Aqui a dialética é realmente superada, porque o biopolítico é desconstruído e atravessado por dentro.
A essa altura, o biopolítico em Agamben não é mais observado do exterior, como se fosse uma realidade independente a ser estudada e reconhecida -um fruto a ser colhido. O hegelianismo foi aqui definitivamente ultrapassado por uma crítica que reconhece a impossibilidade da homologia dialética dos opostos. E com ele foi superada qualquer nostalgia da esquerda hegeliana. O próprio Benjamin, que no entanto viveu e propôs essa série de imbróglios problemáticos e de dolorosas reminiscências dialéticas, foi ultrapassado. Com um gesto formidável, Agamben vai além, conceitual e eticamente, do estado de exceção, atravessando-o; assim como o cristianismo primitivo e o comunismo das origens atravessaram o poder ou a exploração, destruindo-os, porque lograram esvaziá-los. Nesse segundo cenário, a análise de Agamben mostra como a imanência pode ser realista e revolucionária.
Este é um livro cansativo em seu desenvolvimento e em seus dualismos, mas extraordinário na realização. Esclarece um ponto em torno do qual a filosofia pós-estruturalista e pós-moderna havia até aqui girado no vazio, fazendo -a contrapelo- do horizonte biopolítico uma experiência verificável e percorrível. Uma experiência copernicana.


Antonio Negri é filósofo italiano, autor de, entre outros, "O Poder Constituinte" (DP&A), "Exílio" (Iluminuras) e "Império" (Record), com Michael Hardt. Este texto foi publicado no "Il Manifesto".
Tradução de Maurício Santana Dias.


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