São Paulo, domingo, 12 de outubro de 2008

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TERRA À VISTA

Cosmonauta que passou mais tempo em órbita, o russo Serguei Krikaliov fala dos prazeres e das frustrações de viver no espaço

Uma vez tentamos fazer cooper, como em "2001"; mas não funcionou

Com certeza, os extraterrestres existem; importa apenas saber onde

ULRICH SCHMID

Estamos na Terra, na Rússia. A abertura na janela da portaria do prédio do centro aeroespacial, situado na rua Chovanskaia Uliza, 3, foi tapado com espuma plástica. Faltam azulejos no banheiro. Na sala de espera, a TV narra em tom solene as sublimidades da Rússia do primeiro-ministro Vladimir Putin. Sobre a mesa, uma pequena publicação sobre tênis, com o título "Federer acaba com a França". Ela data do século passado. Este centro aeroespacial lembra um pouco o clima de outrora em Wandlitz, sede da "nomenklatura" da República Democrática Alemã: é silencioso, afastado e privilegiado, mas só um pouquinho. Sobra espaço, sobra claridade, mas no mais tudo é bem soviético: os revestimentos em curvim estalam, rompem-se aqui e ali, os conjuntos de poltronas estão gastos, o estuque se desmancha. Pouco do muito dinheiro ganho por Putin com petróleo parece ter sido canalizado para este lugar, mas as pessoas são simpáticas -de qualquer modo, mais amáveis do que em instituições estatais similares. A recepcionista coloca o fone no gancho e me oferece uma bebida. Ágil como um menino, Serguei Krikaliov entra na sala. Ele pôde observar a Terra como um todo durante mais tempo do que qualquer outra pessoa. Ficou no espaço mais de 800 dias, bem mais do que dois anos: quase sempre na estreiteza abafada de uma cápsula, mas também flutuando na escuridão do infinito. O cosmonauta nasceu em 1958 na então Leningrado [hoje São Petersburgo]. Entre 1988 e 2005, voou seis vezes ao espaço, onde permaneceu ao todo 803 dias. Em maio de 1991, viajou pela segunda vez à estação espacial Mir. Quando retornou à Terra, sua pátria, a União Soviética, não existia mais. Participou em 1994 da primeira missão Space Shuttle realizada em conjunto por russos e norte-americanos. Recebeu diversas condecorações na Rússia e é venerado como herói do povo. A Nasa outorgou-lhe duas vezes a medalha por vôos espaciais. Krikaliov é um cinqüentão amável, de aspecto muito jovem. Ostenta um sorriso alegre e ao mesmo tempo pensativo. Tem algo de brincalhão, de curioso. A entrevista é realizada em uma sala gélida, com pé direito muito alto e paredes com fotografias de cosmonautas soviéticos penduradas.

 

PERGUNTA - Qual é o cheiro do universo?
SERGUEI KRIKALIOV
- É incomparável. Nada na Terra cheira assim. Entenda-me bem: não falo do cheiro da cápsula, não falo do uniforme do cosmonauta. Falo do universo. Sei que isso no fundo é impossível. Não se pode cheirar o vácuo do espaço. Mas, curiosamente, isso acontece com todos os cosmonautas. Temos saudade desse cheiro estranho, metálico. Só consigo descrever isso com dificuldade. Talvez sejam determinados gases, determinados íones que alteram a sua estrutura no vácuo. É fascinante.

PERGUNTA - O sr. está deitado em uma cápsula, e embaixo flutua a Terra -chega a sonhar com coisas grandiosas, sublimes?
KRIKALIOV
- Sonho mais com coisas profanas. A gente sonha com o que não tem. No universo, não temos a Terra e seus prazeres celestiais. Sonho com um filé de carne grelhada, mas mais ainda com a gravidade, esse estado maravilhoso, que mantém a comida no prato. Na cápsula, tudo sai voando, a gente fica com vontade de mandar tudo pelos ares!

PERGUNTA - O que se come lá em cima?
KRIKALIOV
- Alimentação guardada em tubos. É meio insossa.

PERGUNTA - E qual é seu preferido?
KRIKALIOV
- O de requeijão com nozes!

PERGUNTA - Às vezes o sr. fica farto de estar lá em cima?
KRIKALIOV
- Evidentemente! Sonho então com uma cama confortável, uma boa refeição, minha mulher, um longo banho de chuveiro, o frescor da noite depois de uma chuva. Tudo é artificial lá em cima -sim, às vezes sinto muita saudade da Terra.

PERGUNTA - Como a gente suporta ficar 800 dias sem fazer sexo?
KRIKALIOV
- Prefiro não falar disso.

PERGUNTA - Quais foram os seus sonhos de menino?
KRIKALIOV
- Meu sonho era voar. Nasci em meio a uma família intelectual, li muito, estudei tecnologia de foguetes. Assim me aproximei pouco a pouco dos cosmonautas. Acabei por ser um deles. Gostei muito, mas não sonhei com isso.

PERGUNTA - A primeira vez lá em cima foi como tinha imaginado? KRIKALIOV - Como menino?
Não. Nessa idade a gente não tem idéias claras. Sonhamos muito, imaginamos coisas fantásticas, mas isso não tem muito a ver com a realidade. Veja, é um processo: quanto mais pensamos sobre o universo, quanto mais cursos freqüentamos, tanto mais concretas se tornam as nossas representações. Treinamos cada comando, cada seqüência de movimentos, sabemos exatamente como é a cápsula. Mas, quando observei o mundo pela primeira vez lá de cima, como um todo, fiquei muito surpreso.

PERGUNTA - O sr. se tornou religioso no espaço? Ou será que perdeu a sua fé, se é que teve fé?
KRIKALIOV
- Não falo de religião.

PERGUNTA - Sempre imaginei uma nave espacial como um ambiente acolhedor: aqui estou eu, lá embaixo a Terra, aqui estão os painéis luminosos, aqui a janela e, logo além, estão o nada, o abismo, a morte...
KRIKALIOV
- Sei o que você quer dizer. Sim, o espaço é o inimigo da vida. É absolutamente mortal. Terrível. Fica difícil traçar um paralelo com a Terra. Na Terra há tempestades, calor, frio, tudo. As forças contrárias à vida são sensíveis, sempre e em qualquer lugar. Mas no espaço a gente não sente nada, só sabe que é perigoso. Tudo é absoluto, não há mais nenhum grau superior. Você vive ou está morto. A nave nos protege, permite sobreviver. Não sei bem como expressar isso, mas isso nos inspira um certo sentimento de gratidão. Mas "ambiente acolhedor"? Negativo. Nem a bordo de uma nave espacial nem a bordo de uma estação espacial a vida é confortável ou acolhedora. Muito pelo contrário. Tudo é pequeno e acanhado.

PERGUNTA - A vida em meio ao perigo é mais intensa?
KRIKALIOV
- Não necessariamente. A gente vive diferentemente, não há dúvida. A consciência se altera, percebemos diferentemente, estabelecemos outras prioridades. Mas estamos muito concentrados no nosso trabalho, assim como inúmeras outras pessoas em profissões exigentes.

PERGUNTA - O sr. chegou a sofrer de claustrofobia no espaço?
KRIKALIOV
- Não. Claustrofobia é uma doença. Isso não existe entre nós. Somos testados, somos cosmonautas!

PERGUNTA - O sr. vivenciou o que uma fração minúscula da humanidade pode vivenciar. Será que ainda consegue sonhar? Em caso positivo, com o que sonha?
KRIKALIOV
- Ora, continuo sonhando até agora! Nunca deixei de sonhar e também nunca perdi meu entusiasmo. Quero sair novamente para o espaço, quero voar novamente. Saber sonhar depende de atingir ou não o objetivo. Eu não o atingi e nunca o atingirei. Às vezes sonho com o espaço durante a noite. É como com outras coisas, com amigos, com o esporte: a gente sempre volta, sempre repete, mas não perde o gosto. O desejo fica aceso.

PERGUNTA - O sr. conhece a doença espacial? Esse anseio, quase pânico, que consome a pessoa, esse desejo de poder voar novamente na direção das estrelas?
KRIKALIOV
- Não. Isso é um mal-entendido. Em torno de certas coisas, que em algum momento foram ditas e repetidas à saciedade, surge rapidamente um tecido de mitos. Pense apenas na lorota de que seria possível ver a Muralha da China do espaço. Não é. Como seria possível? Ela é estreita e feita de pedra, tem portanto a mesma cor das montanhas, sobre as quais se estende. Ainda não ouvi de nenhum colega que cosmonautas ficariam deprimidos na Terra. Somos mais como marinheiros. Quando estão em alto-mar, anseiam por retornar à terra firme. E quando sentem o chão debaixo dos pés, quase não podem aguardar o momento de retornarem a bordo. Nós, seres humanos, somos assim. Sempre queremos o que não temos. Mas isso não tem nada a ver com depressão.

PERGUNTA - Colombo foi mais audaz, ele viajou para o desconhecido -não tinha a América diante dos olhos. Não estava permanentemente em contato com uma estação terrestre, não tinha colegas altamente motivados, mas marinheiros doentes, inclinados a motins. O sr. concorda com isso?
KRIKALIOV
- Isso é correto -quase. Conhecemos nossa rota e temos freqüentemente contato com a Terra, mas nem sempre. Há fases longas em que a comunicação é interrompida. E sempre há situações inesperadas, com muita freqüência até. Sempre acontecem surpresas ruins, e nesse caso precisamos do fator humano. Do contrário, poderíamos enviar a máquina ao espaço. Planejamos muito, mas sabemos também que as coisas sempre acontecem diferentemente. Quase sempre.

PERGUNTA - O que a gente faz o dia inteiro na nave espacial?
KRIKALIOV
- Quando não trabalhamos, procuramos relaxar. Ouvimos música. Uma vez também tentamos fazer cooper em uma estação espacial, como os heróis de Stanley Kubrick em "2001 - Uma Odisséia no Espaço". Mas não funcionou.

PERGUNTA - Há televisão a bordo?
KRIKALIOV
- Não. Por um lado, passamos em menos de dez minutos por todos os satélites de TV; por outro, não captamos nenhum sinal. Notícias em vídeo e radiofônicas são transmitidas por um determinado canal. Também podemos enviar e receber arquivos eletrônicos.

PERGUNTA - Em maio de 1991, o sr. saiu da União Soviética para o espaço, pousando em abril de 1992 num novo Estado, na Rússia. O sr. foi o "último cidadão soviético". Que sensação foi essa?
KRIKALIOV
- Foi curiosa. Mas, em última instância, isso significa pouco para mim. O "último cidadão soviético": isso são palavras vazias para mim. Uma frase de efeito para a mídia. Fiz o meu trabalho e lidei depois com as mesmas pessoas de antes, minha nave era a mesma, as coisas não tinham mudado de nome. Isso não foi nada de especial.

PERGUNTA - Os seres extraterrestres existem?
KRIKALIOV
- Naturalmente! Não encontrei nenhum até agora. Teria o maior prazer em conhecer representantes de outras civilizações. Isso é realmente um sonho. E uma grande esperança. É por isso que estamos voando! No fundo, a pergunta pela existência de seres extraterrestres nem é uma questão científica. Com certeza eles existem em algum lugar. Importa saber apenas onde.

PERGUNTA - Fale três coisas que levou nas suas aventuras espaciais.
KRIKALIOV
- Na primeira viagem não levei nada. Simplesmente não tive tempo. Além disso, eu ainda não tinha casado. Na segunda viagem, levei um pendrive USB com fotos da minha mulher e dos nossos filhos. Além disso, na nossa cápsula muitas vezes há um pequeno Tcheburachka [um personagem cinematográfico e romanesco, muito popular na antiga União Soviética, de Eduard Uspenski, político e autor de livros infantis] de veludo.

PERGUNTA - Onde o sr. se sente mais feliz? Na Terra? No espaço? No vôo para o espaço?
KRIKALIOV
- Na Terra, imediatamente depois de um vôo. Não há nada mais belo.

A íntegra deste texto foi publicada no diário suíço "Neue Zürcher Zeitung". Tradução de Peter Naumann.



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