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TERRA À VISTA
Cosmonauta que passou mais tempo em órbita, o russo Serguei Krikaliov fala dos prazeres e das frustrações de viver
no espaço
Uma vez tentamos
fazer cooper, como em "2001";
mas não funcionou
Com certeza, os extraterrestres existem; importa apenas saber onde
ULRICH SCHMID
Estamos na Terra, na
Rússia. A abertura na
janela da portaria do
prédio do centro aeroespacial, situado na
rua Chovanskaia Uliza, 3, foi
tapado com espuma plástica.
Faltam azulejos no banheiro.
Na sala de espera, a TV narra
em tom solene as sublimidades
da Rússia do primeiro-ministro Vladimir Putin. Sobre a mesa, uma pequena publicação
sobre tênis, com o título "Federer acaba com a França". Ela
data do século passado.
Este centro aeroespacial
lembra um pouco o clima de
outrora em Wandlitz, sede da
"nomenklatura" da República
Democrática Alemã: é silencioso, afastado e privilegiado, mas
só um pouquinho.
Sobra espaço, sobra claridade, mas no mais tudo é bem soviético: os revestimentos em
curvim estalam, rompem-se
aqui e ali, os conjuntos de poltronas estão gastos, o estuque
se desmancha.
Pouco do muito dinheiro ganho por Putin com petróleo parece ter sido canalizado para
este lugar, mas as pessoas são
simpáticas -de qualquer modo, mais amáveis do que em
instituições estatais similares.
A recepcionista coloca o fone
no gancho e me oferece uma
bebida.
Ágil como um menino, Serguei Krikaliov entra na sala.
Ele pôde observar a Terra como um todo durante mais tempo do que qualquer outra pessoa. Ficou no espaço mais de
800 dias, bem mais do que dois
anos: quase sempre na estreiteza abafada de uma cápsula, mas
também flutuando na escuridão do infinito.
O cosmonauta nasceu em
1958 na então Leningrado [hoje São Petersburgo]. Entre 1988
e 2005, voou seis vezes ao espaço, onde permaneceu ao todo
803 dias. Em maio de 1991, viajou pela segunda vez à estação
espacial Mir. Quando retornou
à Terra, sua pátria, a União Soviética, não existia mais.
Participou em 1994 da primeira missão Space Shuttle
realizada em conjunto por russos e norte-americanos. Recebeu diversas condecorações na
Rússia e é venerado como herói
do povo. A Nasa outorgou-lhe
duas vezes a medalha por vôos
espaciais.
Krikaliov é um cinqüentão
amável, de aspecto muito jovem. Ostenta um sorriso alegre
e ao mesmo tempo pensativo.
Tem algo de brincalhão, de curioso. A entrevista é realizada
em uma sala gélida, com pé direito muito alto e paredes com
fotografias de cosmonautas soviéticos penduradas.
PERGUNTA - Qual é o cheiro do universo?
SERGUEI KRIKALIOV - É incomparável. Nada na Terra cheira assim. Entenda-me bem: não falo
do cheiro da cápsula, não falo
do uniforme do cosmonauta.
Falo do universo. Sei que isso
no fundo é impossível. Não se
pode cheirar o vácuo do espaço.
Mas, curiosamente, isso
acontece com todos os cosmonautas. Temos saudade desse
cheiro estranho, metálico. Só
consigo descrever isso com dificuldade. Talvez sejam determinados gases, determinados
íones que alteram a sua estrutura no vácuo. É fascinante.
PERGUNTA - O sr. está deitado em
uma cápsula, e embaixo flutua a
Terra -chega a sonhar com coisas
grandiosas, sublimes?
KRIKALIOV - Sonho mais com
coisas profanas. A gente sonha
com o que não tem. No universo, não temos a Terra e seus
prazeres celestiais. Sonho com
um filé de carne grelhada, mas
mais ainda com a gravidade, esse estado maravilhoso, que
mantém a comida no prato.
Na cápsula, tudo sai voando,
a gente fica com vontade de
mandar tudo pelos ares!
PERGUNTA - O que se come lá em
cima?
KRIKALIOV - Alimentação guardada em tubos. É meio insossa.
PERGUNTA - E qual é seu preferido?
KRIKALIOV - O de requeijão com
nozes!
PERGUNTA - Às vezes o sr. fica farto
de estar lá em cima?
KRIKALIOV - Evidentemente!
Sonho então com uma cama
confortável, uma boa refeição,
minha mulher, um longo banho de chuveiro, o frescor da
noite depois de uma chuva.
Tudo é artificial lá em cima
-sim, às vezes sinto muita saudade da Terra.
PERGUNTA - Como a gente suporta
ficar 800 dias sem fazer sexo?
KRIKALIOV - Prefiro não falar
disso.
PERGUNTA - Quais foram os seus
sonhos de menino?
KRIKALIOV - Meu sonho era
voar. Nasci em meio a uma família intelectual, li muito, estudei tecnologia de foguetes. Assim me aproximei pouco a pouco dos cosmonautas. Acabei
por ser um deles. Gostei muito,
mas não sonhei com isso.
PERGUNTA - A primeira vez lá em cima foi como tinha imaginado?
KRIKALIOV - Como menino?
Não. Nessa idade a gente não
tem idéias claras. Sonhamos
muito, imaginamos coisas fantásticas, mas isso não tem muito a ver com a realidade. Veja, é
um processo: quanto mais pensamos sobre o universo, quanto
mais cursos freqüentamos,
tanto mais concretas se tornam
as nossas representações.
Treinamos cada comando,
cada seqüência de movimentos, sabemos exatamente como
é a cápsula. Mas, quando observei o mundo pela primeira vez
lá de cima, como um todo, fiquei muito surpreso.
PERGUNTA - O sr. se tornou religioso no espaço? Ou será que perdeu a
sua fé, se é que teve fé?
KRIKALIOV - Não falo de religião.
PERGUNTA - Sempre imaginei uma
nave espacial como um ambiente
acolhedor: aqui estou eu, lá embaixo a Terra, aqui estão os painéis luminosos, aqui a janela e, logo além,
estão o nada, o abismo, a morte...
KRIKALIOV - Sei o que você quer
dizer. Sim, o espaço é o inimigo
da vida. É absolutamente mortal. Terrível. Fica difícil traçar
um paralelo com a Terra.
Na Terra há tempestades, calor, frio, tudo. As forças contrárias à vida são sensíveis, sempre
e em qualquer lugar. Mas no espaço a gente não sente nada, só
sabe que é perigoso.
Tudo é absoluto, não há mais
nenhum grau superior. Você vive ou está morto. A nave nos
protege, permite sobreviver.
Não sei bem como expressar
isso, mas isso nos inspira um
certo sentimento de gratidão.
Mas "ambiente acolhedor"?
Negativo. Nem a bordo de uma
nave espacial nem a bordo de
uma estação espacial a vida é
confortável ou acolhedora.
Muito pelo contrário. Tudo é
pequeno e acanhado.
PERGUNTA - A vida em meio ao perigo é mais intensa?
KRIKALIOV - Não necessariamente. A gente vive diferentemente, não há dúvida. A consciência se altera, percebemos
diferentemente, estabelecemos outras prioridades.
Mas estamos muito concentrados no nosso trabalho, assim
como inúmeras outras pessoas
em profissões exigentes.
PERGUNTA - O sr. chegou a sofrer
de claustrofobia no espaço?
KRIKALIOV - Não. Claustrofobia
é uma doença. Isso não existe
entre nós. Somos testados, somos cosmonautas!
PERGUNTA - O sr. vivenciou o que
uma fração minúscula da humanidade pode vivenciar. Será que ainda
consegue sonhar? Em caso positivo,
com o que sonha?
KRIKALIOV - Ora, continuo sonhando até agora! Nunca deixei
de sonhar e também nunca perdi meu entusiasmo. Quero sair
novamente para o espaço, quero voar novamente. Saber sonhar depende de atingir ou não
o objetivo. Eu não o atingi e
nunca o atingirei.
Às vezes sonho com o espaço
durante a noite. É como com
outras coisas, com amigos, com
o esporte: a gente sempre volta,
sempre repete, mas não perde o
gosto. O desejo fica aceso.
PERGUNTA - O sr. conhece a doença
espacial? Esse anseio, quase pânico,
que consome a pessoa, esse desejo
de poder voar novamente na direção das estrelas?
KRIKALIOV - Não. Isso é um mal-entendido. Em torno de certas
coisas, que em algum momento
foram ditas e repetidas à saciedade, surge rapidamente um
tecido de mitos.
Pense apenas na lorota de
que seria possível ver a Muralha da China do espaço. Não é.
Como seria possível? Ela é estreita e feita de pedra, tem portanto a mesma cor das montanhas, sobre as quais se estende.
Ainda não ouvi de nenhum
colega que cosmonautas ficariam deprimidos na Terra. Somos mais como marinheiros.
Quando estão em alto-mar,
anseiam por retornar à terra
firme. E quando sentem o chão
debaixo dos pés, quase não podem aguardar o momento de
retornarem a bordo.
Nós, seres humanos, somos
assim. Sempre queremos o que
não temos. Mas isso não tem
nada a ver com depressão.
PERGUNTA - Colombo foi mais audaz, ele viajou para o desconhecido
-não tinha a América diante dos
olhos. Não estava permanentemente em contato com uma estação terrestre, não tinha colegas altamente
motivados, mas marinheiros doentes, inclinados a motins. O sr. concorda com isso?
KRIKALIOV- Isso é correto
-quase. Conhecemos nossa rota e temos freqüentemente
contato com a Terra, mas nem
sempre. Há fases longas em que
a comunicação é interrompida.
E sempre há situações inesperadas, com muita freqüência
até. Sempre acontecem surpresas ruins, e nesse caso precisamos do fator humano.
Do contrário, poderíamos
enviar a máquina ao espaço.
Planejamos muito, mas sabemos também que as coisas
sempre acontecem diferentemente. Quase sempre.
PERGUNTA - O que a gente faz o dia
inteiro na nave espacial?
KRIKALIOV - Quando não trabalhamos, procuramos relaxar.
Ouvimos música. Uma vez
também tentamos fazer cooper
em uma estação espacial, como
os heróis de Stanley Kubrick
em "2001 - Uma Odisséia no
Espaço". Mas não funcionou.
PERGUNTA - Há televisão a bordo?
KRIKALIOV - Não. Por um lado,
passamos em menos de dez minutos por todos os satélites de
TV; por outro, não captamos
nenhum sinal. Notícias em vídeo e radiofônicas são transmitidas por um determinado canal. Também podemos enviar e
receber arquivos eletrônicos.
PERGUNTA - Em maio de 1991, o sr.
saiu da União Soviética para o espaço, pousando em abril de 1992 num
novo Estado, na Rússia. O sr. foi o
"último cidadão soviético". Que
sensação foi essa?
KRIKALIOV - Foi curiosa. Mas,
em última instância, isso significa pouco para mim. O "último
cidadão soviético": isso são palavras vazias para mim. Uma
frase de efeito para a mídia.
Fiz o meu trabalho e lidei depois com as mesmas pessoas de
antes, minha nave era a mesma,
as coisas não tinham mudado
de nome. Isso não foi nada de
especial.
PERGUNTA - Os seres extraterrestres existem?
KRIKALIOV - Naturalmente! Não
encontrei nenhum até agora.
Teria o maior prazer em conhecer representantes de outras civilizações. Isso é realmente um
sonho. E uma grande esperança. É por isso que estamos
voando! No fundo, a pergunta
pela existência de seres extraterrestres nem é uma questão
científica. Com certeza eles
existem em algum lugar. Importa saber apenas onde.
PERGUNTA - Fale três coisas que levou nas suas aventuras espaciais.
KRIKALIOV- Na primeira viagem
não levei nada. Simplesmente
não tive tempo. Além disso, eu
ainda não tinha casado. Na segunda viagem, levei um pendrive USB com fotos da minha
mulher e dos nossos filhos.
Além disso, na nossa cápsula
muitas vezes há um pequeno
Tcheburachka [um personagem cinematográfico e romanesco, muito popular na antiga
União Soviética, de Eduard Uspenski, político e autor de livros infantis] de veludo.
PERGUNTA - Onde o sr. se sente
mais feliz? Na Terra? No espaço? No
vôo para o espaço?
KRIKALIOV - Na Terra, imediatamente depois de um vôo. Não
há nada mais belo.
A íntegra deste texto foi publicada no diário suíço "Neue Zürcher Zeitung".
Tradução de Peter Naumann.
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