São Paulo, domingo, 12 de novembro de 2006

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Ponto de fuga

Vôo cego


A própria palavra erotismo parece exagerada; em "Pintar ou Fazer Amor" o sexo não é um objetivo que se isola; ele vem junto com empatias de toda ordem, com desejos, com um certo clima, mágico


JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

O filme toca, com cautela, num simbolismo discreto. Penumbra mortiça em fim de tarde num apartamento: nem luz do meio-dia nem escuridão profunda. Os irmãos Larrieu evitam os contrastes, os embates, modulam suavemente os tons, os movimentos de câmera, dosam com cuidado a emoção dos atores e o erotismo que se infiltra aos poucos.
A própria palavra erotismo parece exagerada; ela traduz um sentimento que tende para a exclusiva sexualidade. Ora, em "Pintar ou Fazer Amor" o sexo não é um objetivo que se isola. Ele vem junto com empatias de toda ordem, com desejos, com um certo clima, mágico: "Uma obra de arte depende do ambiente que a envolve", diz Adam. Adam e sua mulher, Eva; diante de montanhas imensas, são os guardiões de um paraíso primordial, anterior ao pecado.

A maçã no escuro
Madeleine e William, maduros, chegam à aposentadoria. Eles se amam. Mas dilatarão esse amor graças a Eva e Adam. Um casal se apaixona pelo outro em "Pintar ou Fazer Amor". Adam é cego. Sabe sentir melhor. É o guia no escuro, o pedagogo do ouvido, do tato, do cheiro. Transforma o clichê romântico das "trevas densas e ameaçadoras na floresta" em caminho certeiro.

Outros tempos
A estação é o outono, e os protagonistas são cinqüentões. William, meteorologista, aposentou-se. Quando compra uma casa no campo, sente o tempo regredir, como se estivesse rejuvenescendo. "Pintar ou Fazer Amor" é um filme sintomático, em nossos dias atuais, assustados, conservadores e mesquinhos.
Nele, dois jovens se amam, se casam, e pronto. Os maduros é que percebem carinhos possíveis e novos, afinidades eletivas e sensuais. Descobrem o sexo como complemento da afeição, do encantamento pelo outro.
Nos anos 1970, essa descoberta seria enérgica, libertária; como em tantos filmes daquela década, moças e rapazes descobririam o próprio corpo, o dos outros; formariam uma comunidade de prazeres e conflitos. Bertolucci reviu essa situação, com olhos de hoje, em "Os Sonhadores", que se passa durante as revoltas parisienses de 68: um trio de jovens inicia-se em erotismo banhado pela transgressão do incesto.
Os irmãos Larrieu, ao contrário, escolhem personagens maduros que, por suposto, viveram aqueles tempos de outrora. Avançam com passos medidos no terreno escorregadio e incerto. O filme, suavemente, retoma aventuras que esquecemos, enterradas num passado hedonista e livre. Ensina que os afetos se apequenam ao se acomodarem nas convenções bem classificadas, para vicejarem quando estão fora delas.
Atrair, separar-se, tudo vem mostrado em matizes outonais e nuançados. A fluidez cinematográfica é tranqüila, mas levemente inquietante e perturbadora. A relação tecida entre os personagens sobe em direção à nota sensual sem insistência, eliminando todo voyeurismo. Quando Eva pede a Madeleine que pinte seu retrato, ela se despe: inocência sem pudor em uma; surpresa, primeiro, e encanto, depois, na outra.
A atração que corre, unindo os dois casais, a cumplicidade erótica, traz um momento de graça, uma promessa de plenitude, um vislumbre de felicidade. A história, porém, não consegue mais, como há 30 anos, avançar para a utopia da comunidade, intelectual, afetiva e física. O final não é feliz nem infeliz.
A prática do suingue termina por ser evocada, e com ela, o fel da vulgaridade se insinua.
Hoje, não se fazem mais paraísos como antigamente.

jorgecoli@uol.com.br


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