São Paulo, domingo, 12 de novembro de 2006

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Nietzsche, Bob Dylan, Janis Joplin, Platão...

À luz da música pop, "Vitaminas Filosóficas" utiliza grandes pensadores como fórmula prática do bem-viver

VLADIMIR SAFATLE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Um dos fenômenos mais pitorescos na vida cultural do Brasil dos últimos anos é o crescente interesse pela filosofia (ou por algo que se aproxime dela).
Cursos de difusão cultural, revistas de grande circulação, spots de televisão com pérolas filosóficas: tudo isso parece que veio para ficar.
É possível que se trate de um fenômeno heteróclito para o qual convergem práticas e expectativas diversas. Mas há uma dimensão desse interesse pela filosofia que é visível para qualquer um que se aventure a deslizar os olhos por livros como: "Mais Platão e Menos Prozac" (um clássico do gênero), "Nietzsche em 90 Minutos" ou o mais recente "Vitaminas Filosóficas - A Arte de Bem Viver".
Todos eles são animados pelas mais belas intenções. Tais livros querem retirar a linguagem "empolada" da filosofia universitária, criticar a divisão entre alta e baixa culturas, entre o pensar e o corpo, entre sofrimentos cotidianos e grandes questões existenciais. Em suma, trata-se de reconciliar o pensar e a alegria de viver.
Até porque trazem sempre a mesma mensagem edificante: a filosofia é uma arte do bem-viver, um pouco como se a "Fenomenologia do Espírito" [de Hegel] fosse apenas uma versão mais complicada de "como descobrir a si mesmo sem precisar gastar dinheiro com um novo guarda-roupa".
Nesse sentido, "Vitaminas Filosóficas", do amante do rock e filósofo Theo Roos, é o que os profissionais de marketing chamariam de "um case de sucesso". Durante dois anos, uma rede de TV alemã apresentou tais vitaminas na forma de programa seriado. Agora, elas estão disponíveis em um livro em que Schopenhauer, Nietzsche, Sócrates são comentados com a ajuda de Bob Dylan, Janis Joplin e Van Morrison.
O resultado é descobrir que Schopenhauer nos ensina que devemos "desfrutar o presente, cuidar da saúde, ser nós mesmos e [esta é a melhor] imaginar-se no espaço, olhando para a Terra lá embaixo".
Da mesma forma, o "âmago" da filosofia de Nietzsche não seria outro que o inaudito: "É preciso aprender a amar. E também aprender a amar o outro, o estranho em nós". Mas, se assim for, por que comprar um livro caro como "O Mundo como Vontade e Representação" se tudo o que você vai encontrar nele está em qualquer pocket de auto-ajuda de R$ 10?

Dupla traição
É claro que sempre terá alguém a dizer que livros como este, por mais rasos que sejam, são importantes por despertar o interesse pela filosofia e demonstrar que clássicos do pensamento "podem falar conosco, na nossa linguagem".
A esse respeito, vale lembrar que quem trai na forma trai no conteúdo. O estilo da escrita não é exterior ao objeto do qual se fala, e isso vale principalmente para a escrita filosófica.
O verdadeiro aprendizado consiste no trabalho paciente de confrontação com textos cuja escrita impõe um tempo para compreender, tempo que não se submete à ânsia terapêutica de quem está atrás de conhecimento em pílulas para curar desconfortos do cotidiano ou de quem tenta submeter toda experiência intelectual à transparência plena de uma linguagem instrumental de administrador de empresas.
O mínimo que se pode dizer de quem começa imaginando que a filosofia supre tais demandas é que começou mal. Por outro lado, essa maneira de reduzir a filosofia a uma arte do bem-viver feita de promessas de transgressão publicitárias e de descobertas de novas reconciliações é, no fundo, um sintoma típico da nossa época.
Uma época que não se reproduz mais por meio da apresentação de normatividades e padrões estritos, mas que, ao contrário, se alimenta da transgressão de seus próprios padrões e normas. Que transforma a transgressão em mercadoria. Nesse sentido, produtos como livros de auto-ajuda filosófica estão organicamente vinculados à ideologia do estágio contemporâneo da indústria cultural. Contra eles, devemos lembrar os momentos em que a filosofia não foi associada à cura, mas à doença. "O homem que pensa é um animal doente" é uma frase que faltou ao livro.
Ela serve para lembrar que, em certas situações, a melhor coisa a fazer é recusar a cura; até porque a doença é o que muitas pessoas têm de mais real.


VLADIMIR SAFATLE é professor no departamento de filosofia da USP e autor de "A Paixão do Negativo - Lacan e a Dialética" (Unesp).

VITAMINAS FILOSÓFICAS
Autor:
Theo Roos
Tradução: Maria Aparecida Barbosa
Editora: Casa da Palavra (tel. 0/ xx/11/ 2222-3167) Quanto: R$ 29,90 (200 págs.)


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