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+ livros
A salvação da pátria
O historiador argentino
Luis Alberto Romero
alerta para o ressurgimento do populismo no país
SYLVIA COLOMBO
DA REPORTAGEM LOCAL
É
lugar-comum no Brasil achar que não é fácil entender os argentinos. A questão é
mesmo polêmica, mas
o certo é que, se você quiser ler
algum livro, em português, que
conte a história de nossos vizinhos de forma cronológica e
clara, dificilmente encontrará.
Existem pouquíssimas iniciativas editoriais de lançar títulos da historiografia argentina por aqui. Por isso, com os
problemas que "História Contemporânea da Argentina", de
Luis Alberto Romero, pode ter,
só o fato de estar sendo editado
no Brasil é algo a celebrar.
O livro traça um panorama
político da Argentina desde
1916 -ano em que chega ao poder Hipólito Yrigoyen, hoje um
mítico ícone da UCR (União
Cívica Radical)- até a chamada década Menem (1989-1999),
em que houve privatizações,
dolarização da economia e
abertura para o caos econômico que estouraria logo depois.
Romero é demasiado nostálgico com relação à era Alfonsín
(1983-89) e pouco preocupado
em localizar a Argentina na
América Latina. Porém, guardadas essas ressalvas, o livro
cumpre seu objetivo.
Às vésperas do aniversário
de cinco anos do chamado "estallido", turbulência social que
levou à queda do presidente
Fernando de la Rúa (1999-2001, renunciou em dezembro), Romero falou à Folha sobre a Argentina atual. Leia
abaixo os principais trechos da
entrevista.
FOLHA - Como o sr. define o que se
passou em dezembro de 2001?
LUIS ALBERTO ROMERO - Foi a mais
profunda das crises que, ciclicamente, têm abalado a Argentina há 30 anos. Naquele momento, tudo estava em questão.
Desde a confiança que pudéssemos ter na nossa moeda, o
que faríamos com os compromissos econômicos e o que seria do nosso sistema institucional. Segundo o ânimo geral, estávamos a um passo da dissolução. Foi, então, o momento dos
grandes projetos. Uma vez que
havíamos tocado o fundo, podíamos começar tudo de novo.
FOLHA - E que balanço o sr. faz do
que aconteceu depois?
ROMERO - Hoje a crise está longe. A economia foi reconstituída, e números importantes, como os de crescimento e superávit fiscal, são todos positivos.
Também se reconstruiu a autoridade presidencial, que é
uma coisa importante em um
país fortemente presidencialista, e retomamos o caminho correto no que diz respeito ao julgamento e à punição de responsáveis pela repressão dos anos
da ditadura militar (1976-83).
FOLHA - E o que continua sendo
um problema?
ROMERO - Em outros campos,
estamos longe da ilusão de uma
regeneração. A macroeconomia não se traduz em melhoria
do bem-estar popular. O Estado segue sendo carcomido pela
ineficiência e pela corrupção.
Além disso, a reconstrução
da autoridade política se fez às
custas das instituições republicanas, que, desde o fim da ditadura, haviam apontado o caminho de uma nova convivência
política. Traduzindo o balanço
em porcentagens, acho que dá
50% positivo e 50% negativo.
FOLHA - O livro começa com o período Yrigoyen, marcante para o debate sobre as instituições democráticas, e termina com Menem, um
momento em que as mesmas foram
colocadas diante de novos desafios.
Como compara os dois momentos?
ROMERO - Agora, em 2006, vejo
mais claro do que em 1999. O
ciclo que começou em 1983
[com o fim da ditadura e a eleição de Raúl Alfonsín], de construção de uma democracia republicana, terminou. Digo isso
com profunda dor. [O atual presidente Néstor] Kirchner nos
levou a um momento anterior e
clássico da história argentina, o
da democracia presidencialista
e plebiscitária.
Infelizmente, parece que essa é a maneira mais adequada
para governar a sociedade argentina tal qual é hoje. Uma sociedade pouco educada, onde
os cidadãos vão desaparecendo
e as formas um pouco complexas de uma democracia republicana não têm sustento. É
triste, seria bom se fizéssemos
algo para mudar isso.
FOLHA - Como acha que Kirchner lida com a questão do esvaziamento
do Estado, após as privatizações?
ROMERO - Vejo-o muito pouco
preocupado em reconstruir o
maquinário de controle e regulação que deve compor um Estado. Isso se faz com instituições, burocracia, administradores. E o que vejo é apenas um
exercício de autoridade, uma
coisa pessoal e momentânea. É
como dar um golpe violento sobre uma mesa ou um tapa num
filho -isso não resolve problemas nem educa crianças.
FOLHA - Na introdução, o sr. diz
que, se fosse reescrever o livro hoje,
mudaria a parte sobre Alfonsín. E ela
me pareceu muito positiva. Ou seja,
o sr. faria mais críticas?
ROMERO - Em 1984, eu e muita
gente nos iludimos, o que foi
bom, por um lado, porque a ilusão era importante para construir a democracia. Mas foi
mau porque deixamos de ver
algumas coisas, como a tremenda deterioração do Estado.
O capítulo sobre Alfonsín está muito marcado por essa ilusão. Hoje me dou conta de que
ele jogou para o futuro problemas que eram urgentes. Houve
uma supervalorização das possibilidades do sistema. Alfonsín
não deveria ter deixado que as
pessoas se iludissem tanto, para que depois a reação não fosse
tão violenta contra ele.
FOLHA - Como o sr. compara as histórias de Brasil e Argentina do ponto
de vista democrático?
ROMERO - A Argentina que vai
de fins do século 19 até a década
de 60 do século 20 foi um país
socialmente bastante democrático, no sentido de que promoveu um vasto processo de
incorporação, principalmente
no desenvolvimento do sistema educativo e da cultura letrada. Conseqüentemente, houve
aumento na capacidade de incorporação política.
Isso não necessariamente teve conseqüências apenas boas,
porque é um processo difícil de
conduzir. É por isso que começo o livro com Yrigoyen, que
deu início a uma política nesse
sentido, adotando um instrumental populista.
No Brasil, a política demorou
muito mais para usar esse tipo
de mecanismo. Isso veio bem
depois, com Getúlio Vargas e,
ainda assim, com graus de incorporação menores do que na
Argentina. No Brasil, há ainda
uma boa parte da sociedade
que está à parte da política.
Essa democratização que caracterizou a Argentina nesse
período depois se consolidou
na maneira como o peronismo
governaria e resolveria os problemas sociais.
FOLHA - Qual é o principal problema de Kirchner?
ROMERO - Ele não está se esforçando para reconstruir a democracia republicana. Não distingo esses seus gestos de autoridade como uma autêntica
construção do Estado. Como
diziam os romanos, o Estado
deve ser suave nas formas e duro no fundo, e o que temos com
Kirchner é exatamente o contrário. Voltamos a um estilo político faccioso, em que somos
"nós" e "eles".
E isso me faz recordar muito
a velha tradição argentina do
yrigoyenismo, dos militares, do
peronismo, coisas que eu acreditava que já estavam enterradas no passado.
FOLHA - O que há em comum entre
esses momentos citados?
ROMERO - A idéia de que alguém representa a nação e de
que os que estão contra são os
"inimigos da pátria". Perón os
criticava, os militares os matavam. Ao nosso presidente encanta essa situação de acusar
adversários com esses argumentos. Isso, como a história já
mostrou, é muito perigoso.
HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA
DA ARGENTINA
Autor: Luis Alberto Romero
Tradução: Edmundo Barreiros
Editora: Jorge Zahar (tel. 0/xx/21/
2240-0226)
Quanto: R$ 49,50 (312 págs.)
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