São Paulo, domingo, 12 de novembro de 2006

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A salvação da pátria

O historiador argentino Luis Alberto Romero alerta para o ressurgimento do populismo no país

SYLVIA COLOMBO
DA REPORTAGEM LOCAL

É lugar-comum no Brasil achar que não é fácil entender os argentinos. A questão é mesmo polêmica, mas o certo é que, se você quiser ler algum livro, em português, que conte a história de nossos vizinhos de forma cronológica e clara, dificilmente encontrará.
Existem pouquíssimas iniciativas editoriais de lançar títulos da historiografia argentina por aqui. Por isso, com os problemas que "História Contemporânea da Argentina", de Luis Alberto Romero, pode ter, só o fato de estar sendo editado no Brasil é algo a celebrar.
O livro traça um panorama político da Argentina desde 1916 -ano em que chega ao poder Hipólito Yrigoyen, hoje um mítico ícone da UCR (União Cívica Radical)- até a chamada década Menem (1989-1999), em que houve privatizações, dolarização da economia e abertura para o caos econômico que estouraria logo depois.
Romero é demasiado nostálgico com relação à era Alfonsín (1983-89) e pouco preocupado em localizar a Argentina na América Latina. Porém, guardadas essas ressalvas, o livro cumpre seu objetivo.
Às vésperas do aniversário de cinco anos do chamado "estallido", turbulência social que levou à queda do presidente Fernando de la Rúa (1999-2001, renunciou em dezembro), Romero falou à Folha sobre a Argentina atual. Leia abaixo os principais trechos da entrevista.

 

FOLHA - Como o sr. define o que se passou em dezembro de 2001?
LUIS ALBERTO ROMERO
- Foi a mais profunda das crises que, ciclicamente, têm abalado a Argentina há 30 anos. Naquele momento, tudo estava em questão. Desde a confiança que pudéssemos ter na nossa moeda, o que faríamos com os compromissos econômicos e o que seria do nosso sistema institucional. Segundo o ânimo geral, estávamos a um passo da dissolução. Foi, então, o momento dos grandes projetos. Uma vez que havíamos tocado o fundo, podíamos começar tudo de novo.

FOLHA - E que balanço o sr. faz do que aconteceu depois?
ROMERO
- Hoje a crise está longe. A economia foi reconstituída, e números importantes, como os de crescimento e superávit fiscal, são todos positivos. Também se reconstruiu a autoridade presidencial, que é uma coisa importante em um país fortemente presidencialista, e retomamos o caminho correto no que diz respeito ao julgamento e à punição de responsáveis pela repressão dos anos da ditadura militar (1976-83).

FOLHA - E o que continua sendo um problema?
ROMERO
- Em outros campos, estamos longe da ilusão de uma regeneração. A macroeconomia não se traduz em melhoria do bem-estar popular. O Estado segue sendo carcomido pela ineficiência e pela corrupção.
Além disso, a reconstrução da autoridade política se fez às custas das instituições republicanas, que, desde o fim da ditadura, haviam apontado o caminho de uma nova convivência política. Traduzindo o balanço em porcentagens, acho que dá 50% positivo e 50% negativo.

FOLHA - O livro começa com o período Yrigoyen, marcante para o debate sobre as instituições democráticas, e termina com Menem, um momento em que as mesmas foram colocadas diante de novos desafios. Como compara os dois momentos?
ROMERO
- Agora, em 2006, vejo mais claro do que em 1999. O ciclo que começou em 1983 [com o fim da ditadura e a eleição de Raúl Alfonsín], de construção de uma democracia republicana, terminou. Digo isso com profunda dor. [O atual presidente Néstor] Kirchner nos levou a um momento anterior e clássico da história argentina, o da democracia presidencialista e plebiscitária.
Infelizmente, parece que essa é a maneira mais adequada para governar a sociedade argentina tal qual é hoje. Uma sociedade pouco educada, onde os cidadãos vão desaparecendo e as formas um pouco complexas de uma democracia republicana não têm sustento. É triste, seria bom se fizéssemos algo para mudar isso.

FOLHA - Como acha que Kirchner lida com a questão do esvaziamento do Estado, após as privatizações?
ROMERO
- Vejo-o muito pouco preocupado em reconstruir o maquinário de controle e regulação que deve compor um Estado. Isso se faz com instituições, burocracia, administradores. E o que vejo é apenas um exercício de autoridade, uma coisa pessoal e momentânea. É como dar um golpe violento sobre uma mesa ou um tapa num filho -isso não resolve problemas nem educa crianças.

FOLHA - Na introdução, o sr. diz que, se fosse reescrever o livro hoje, mudaria a parte sobre Alfonsín. E ela me pareceu muito positiva. Ou seja, o sr. faria mais críticas?
ROMERO
- Em 1984, eu e muita gente nos iludimos, o que foi bom, por um lado, porque a ilusão era importante para construir a democracia. Mas foi mau porque deixamos de ver algumas coisas, como a tremenda deterioração do Estado. O capítulo sobre Alfonsín está muito marcado por essa ilusão. Hoje me dou conta de que ele jogou para o futuro problemas que eram urgentes. Houve uma supervalorização das possibilidades do sistema. Alfonsín não deveria ter deixado que as pessoas se iludissem tanto, para que depois a reação não fosse tão violenta contra ele.

FOLHA - Como o sr. compara as histórias de Brasil e Argentina do ponto de vista democrático?
ROMERO
- A Argentina que vai de fins do século 19 até a década de 60 do século 20 foi um país socialmente bastante democrático, no sentido de que promoveu um vasto processo de incorporação, principalmente no desenvolvimento do sistema educativo e da cultura letrada. Conseqüentemente, houve aumento na capacidade de incorporação política.
Isso não necessariamente teve conseqüências apenas boas, porque é um processo difícil de conduzir. É por isso que começo o livro com Yrigoyen, que deu início a uma política nesse sentido, adotando um instrumental populista.
No Brasil, a política demorou muito mais para usar esse tipo de mecanismo. Isso veio bem depois, com Getúlio Vargas e, ainda assim, com graus de incorporação menores do que na Argentina. No Brasil, há ainda uma boa parte da sociedade que está à parte da política.
Essa democratização que caracterizou a Argentina nesse período depois se consolidou na maneira como o peronismo governaria e resolveria os problemas sociais.

FOLHA - Qual é o principal problema de Kirchner?
ROMERO
- Ele não está se esforçando para reconstruir a democracia republicana. Não distingo esses seus gestos de autoridade como uma autêntica construção do Estado. Como diziam os romanos, o Estado deve ser suave nas formas e duro no fundo, e o que temos com Kirchner é exatamente o contrário. Voltamos a um estilo político faccioso, em que somos "nós" e "eles".
E isso me faz recordar muito a velha tradição argentina do yrigoyenismo, dos militares, do peronismo, coisas que eu acreditava que já estavam enterradas no passado.

FOLHA - O que há em comum entre esses momentos citados?
ROMERO
- A idéia de que alguém representa a nação e de que os que estão contra são os "inimigos da pátria". Perón os criticava, os militares os matavam. Ao nosso presidente encanta essa situação de acusar adversários com esses argumentos. Isso, como a história já mostrou, é muito perigoso.


HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DA ARGENTINA
Autor: Luis Alberto Romero
Tradução: Edmundo Barreiros
Editora: Jorge Zahar (tel. 0/xx/21/ 2240-0226)
Quanto: R$ 49,50 (312 págs.)



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