São Paulo, domingo, 12 de novembro de 2006

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+ sociedade

Utopias no varejo

Mestre da distopia urbana, o inglês J.G. Ballard fala de seu novo romance, "Venha a Nós", e define o consumismo como "a nova patologia da vida cotidiana"

MARIANNE BRACE

J G. Ballard conhece vendas. Na juventude, por algum tempo, ele foi vendedor de enciclopédias para crianças e aprendeu sobre a relação psicológica entre o aspirante a vendedor e o alvo interessado em comprar uma maneira de melhorar a vida. "Vender é como seduzir uma garota", diz Ballard.
Ele "acreditava" na "The Waverley" [enciclopédia de língua inglesa] porque a havia lido, quando menino. Sempre que se sentia entediado, a mãe mandava que fosse ler "os oito volumes". "Ela os chamava assim", ele ri. "Era o que tínhamos de mais próximo da televisão".
O novo romance de Ballard, "Kingdom Come" [Venha a Nós, ed. Fourth Estate, 15,99 libras, R$ 65), como de hábito nos trabalhos do escritor, encara de maneira pessimista os perigos do varejo como terapia.


"O tédio é uma perspectiva assustadora; há um limite para o número de microondas que se pode comprar; o que fazer depois?"


Em Brooklands, uma cidade-dormitório no vale do rio Tâmisa onde a paisagem é dominada pelos domos do shopping center local, a decisão moral mais difícil é escolher o modelo de máquina de lavar. Mas até mesmo as pessoas mais acomodadas anseiam por sensações.
À noite, os consumidores que acorrem ao Metro-Centre assumem nova encarnação como turbas de torcedores de esportes, vestindo suas camisetas com a cruz de St. George e atacando imigrantes.
"O consumismo é tão esquisito. É como uma espécie de conspiração da qual somos todos cúmplices", diz Ballard, que não vai às compras. "Você poderia imaginar que os consumidores que se dedicam a gastar o dinheiro que lhes custou tanto ganhar teriam enorme senso crítico. Todos sabemos que os fabricantes estão tentando nos engambelar."
Estamos sentados na modesta casa do escritor em Shepperton, onde a indústria evidentemente não conseguiu engambelá-lo. Além do televisor, não existe traço de bens de consumo supostamente duráveis na casa. Ele nem mesmo tem um computador. "Criei meus três filhos nesta casa, e nada mudou por aqui. Nada muda de lugar há 30 anos", diz.
Mas, embora as coisas continuem as mesmas na casa de Ballard, o mundo externo se reinventou. Agora, o panorama da Grande Londres "carece de todos os traços clássicos daquilo que costumava ser urbano -a sede do governo local, a igreja, a sede da paróquia, a biblioteca pública. Tudo isso se tornou em larga medida coisa do passado".
O fenômeno fascina Ballard. "A maior parte dos escritores ingleses não se interessa por mudanças, mas sim pelo romance social. Isso exige um pano de fundo estático. Eu me interesso profundamente por mudanças, provavelmente por autopreservação. Que diabos acontecerá a seguir?"

Desintegração psíquica
As cidades afogadas, paisagens calcinadas e selvas de asfalto de Ballard se tornaram notavelmente proféticas. Quer se trate de conjurar pântanos primevos ou torres residenciais cujos moradores estão em estado de regressão, ele reconhece nosso apetite por desintegração psíquica e física e nos alerta para o que talvez nos espere.
Se suas tramas às vezes deixam a desejar e seus personagens são genéricos (arquitetos, médicos, psiquiatras), a prosa controlada que ele produz inclui imagens quase narcoticamente belas e está repleta de idéias perturbadoras.
Duas coisas, em especial, alimentaram sua imaginação. Xangai, "um lugar terrivelmente excitante, uma cidade midiática antes mesmo que o conceito existisse", o local em que ele cresceu e "cidade que vem sendo o principal propulsor da minha ficção. Tentei alterar o mundo para que se parecesse com a Xangai dos anos 1930".
Seus estudos anatômicos e fisiológicos, enquanto isso, propiciam "uma vasta antologia de imagens e metáforas".
O trabalho de Ballard se enquadra de alguma maneira entre o de Joseph Conrad e o de William Burroughs. Seus primeiros protagonistas encontravam seus próprios corações das trevas em mundos mapeados por desastres ecológicos ou novas fronteiras entre imensos lagartos e florestas cristalizadas. Essas fronteiras passam a ser psicológicas em obras mais experimentais, como "The Atrocity Exhibition" [A Exposição de Atrocidades].
Em seus 50 anos de carreira, as locações oníricas deram lugar a espaços artificiais fechados nos quais os personagens se dedicam a atividades transgressivas só para terem certeza de que ainda estão vivos.
Ballard tem a rara distinção de aparecer em forma de adjetivo ("Ballardian") no dicionário de inglês "Collins". Será que o escritor -como o verbete propõe- trata preferencialmente de distopias?
Ballard não consegue resistir a uma inversão característica. "Decidi que me transformaria em utópico. Gosto dessa paisagem da rodovia M25 e do aeroporto de Heathrow. Gosto de escritórios de empresas de transporte aéreo e de empresas de locação de carros. Gosto de pistas expressas duplas. Quando vejo uma câmera de circuito fechado, sei que estou seguro. O que odeio" -Ballard se inclina e sorri- "é o que se costuma chamar de legado londrino. Esse é um ódio que desenvolvi há pouco. O legado londrino não inclui só Bloomsbury, Whitehall, a torre de Londres. Na verdade, se trata da Londres da classe média -Hampstead, Notting Hill, qualquer local que encontremos onde a cultura de convidar amigos para jantar em casa ainda resiste".

A Inglaterra real
Ainda que se admita "muito nostálgico" em relação à sua infância, Ballard zomba do sentimental amor inglês pelo passado. "Continuamos a acreditar que a Inglaterra seja um lugar de pátios quadrangulares cercados de construções góticas, de praças de aldeia, em toda aquela bobagem de John Major [premiê britânico entre 1990 e 97] sobre cerveja quente e orações noturnas. Por favor, me poupe", ele diz, rolando de rir.
"Morando aqui ao lado da [rodovia] M25, sei que estou na Inglaterra real. Essa é a Inglaterra que votou em Tony Blair, por vôos baratos para as ilhas Seychelles e por um serviço nacional de saúde mais eficiente. Milhões de pessoas vivem aqui e não estão interessadas nos velhos pátios e suas construções góticas."
Mas de que maneira o afeto por uma região semicomercial próxima ao aeroporto se enquadra no desdém que ele ostenta por shopping centers, como o Bentall Centre, na vizinha Kingston?
"Por que eu detesto tanto o Bentall Centre?" Ballard pára e pensa. "Porque é tão... cretino." Ele já observou os consumidores lá. "Parecem estar caminhando em uma espécie de espaço de sonho comercial, e sinais vagos flutuam por seus cérebros." O consumismo se tornou parte do ar que respiramos. "É por isso que serve como potencial base para alguma grande mudança psicológica."
Ballard pretendia escrever um quarteto sobre o que define como "a nova patologia da vida cotidiana". "Venha a Nós", como os três romances precedentes, é uma história de mistério em torno de um assassinato, investigado pelo narrador. "Todos os quatro romances tratam da criminalização da vida cotidiana", explica. O crime energiza um exclusivo centro turístico espanhol em "Noites Cocainômanas", enquanto a recreação dos criminosos reanima os zumbis executivos no parque empresarial "Super-Cannes".
A classe média do bairro de Chelsea Marine descobre o poder do crime sem sentido, em "Terroristas do Milênio" [Cia. das Letras]. Para os desajustados em "Venha a Nós", o crime é o fascismo.
Os narradores se tornam implicitamente criminosos, seduzidos sem resistência por um personagem moralmente equívoco. Ballard diz endossar "as idéias oferecidas pelo Dr. Maxted, em termos gerais".
Em "Venha a Nós", o psiquiatra Maxted diz que "o consumismo cria imensas necessidades inconscientes que só o fascismo pode satisfazer. E o que é o fascismo a não ser a forma que o consumismo toma ao optar por loucura eletiva?". Como publicitário, o narrador, Richard, percebe as possibilidades. Determinado a descobrir quem matou seu pai, ele ajuda a preparar um líder de culto, começando pelas "salas de hospitalidade da TV vespertina".
"O tédio é uma perspectiva assustadora. Há um limite para o número de carros e microondas que se pode comprar. O que fazer depois?", pergunta.
No passado, ele previu um futuro em que o tédio seria interrompido por atos violentos e imprevisíveis. "O consumismo e o fascismo têm certas afinidades", argumenta ele. "É uma forma de votar em que a urna é substituída pela caixa registradora... A única atividade cívica da qual participamos é o consumo, especialmente nos maiores shopping centers. Trata-se de cerimônias de afirmação em massa."
"Venha a Nós" traz a familiar mistura de absurdo, percepção e humor provocante que caracteriza a literatura de Ballard. Entre seus livros favoritos, menciona "Alice no País das Maravilhas", de Lewis Carroll, "Moby Dick", de Herman Melville, "Admirável Mundo Novo", de Aldous Huxley, e "Ardil 22", de Joseph Heller, todos eles tratando de mundos fechados e dotados de lógica própria e bizarra.
"O realismo já não serve para os romances. Não há como competir com o cinema, a televisão ou com os comerciais de TV, em termos de construir uma imagem naturalista do mundo. O romance atinge sua melhor forma quando cria do zero um mundo próprio."

Vida surrealista
De acordo com Ballard, porém, "a vida está repleta de momentos surrealistas. Basta percebê-los. Os seres humanos são os únicos membros do reino animal cujo estado mental normal fica bem perto da loucura".
Quando menino, testemunhou grande violência. Passou a desconfiar da realidade convencional. "Compreendi que aquilo que vemos como realidade convencional -a tranqüila rua de subúrbio, por exemplo- é apenas um cenário que pode ser arrastado para longe."
Ballard se define como libertário. "Defendo o sexo livre, o álcool, e liberalizaria as drogas se houvesse um jeito de proteger os adolescentes." Como escritor, porém, diz: "Tendo a moralizar e lamento que isso aconteça, porque faz de mim uma espécie de vendedor. Estou vendendo a nova e mais quente linha da temporada -a psicopatologia!", ri Ballard. "Eu às vezes sou veemente demais ao expor minhas idéias. Termino por me repetir. Mas quero reforçar a mensagem."

Este texto saiu no "Independent".
Tradução de Paulo Migliacci.

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