|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
"Antonio Candido - Pensamento e Militância" reúne textos sobre o crítico literário
Um reencontro com "il miglior fabbro"
Paulo Sérgio Pinheiro
especial para a Folha
N
o filme "Carrington", o escritor
Lytton Strachey, considerado inapto para ir para a guerra de 1914, e a pintora Carrington passam um fim-de-semana numa casa de campo aristocrática.
Saem para um terraço onde jovens casais
despreocupados volteiam alegremente
num misto de minueto e charleston.
Lytton se vira para Carrington e diz: "É
para isso que os nossos rapazes estão se
matando nos campos da Europa. Eu
quero que as classes dominantes se danem".
Qual a postura que o intelectual deve
ter com o poder e com as classes dominantes? Desprezo e sobretudo distância,
nenhuma contemporização e ser principista. Largos contingentes das classes
dominantes no Brasil, dizia Severo Gomes, aliás aluno de Antonio Candido,
destacam-se por seu desprezo pelo país e
por seu povo. Terminaram as senzalas,
mas o "habitus", o saber social incorporado dessas classes (e de muitos intelectuais) nas suas relações com a maioria de
pobres, continua a ser de senhores com
escravos, apesar de toda a modernidade.
Ruptura do elitismo
Toda a vida e
obra de Antonio Candido foram cruciais
na ruptura do elitismo e do preconceito.
Ninguém pense que ele acordou um dia
e disse "vou ser Antonio Candido na vida". Foi longo e penoso o processo. Esse
conjunto de quatro dezenas de abordagens da vida e da obra dele -no qual estão juntos companheiros de percurso,
colegas professores, como Maria Isaura
Pereira de Queiroz, Octavio Ianni e Alfredo Bosi, Paul Singer, alunos, como
Walnice Nogueira Galvão, além de variados testemunhos, como os de Jacques
Marcovitch e dom Paulo Evaristo
Arns- oferece pistas seguras.
A história pessoal, a lenta montagem de sua biografia, as etapas concretas
da sociedade e da vida política, a ditadura e a democracia, a crise da instituição universitária, a literatura brasileira vão aos
poucos servindo como
motivação e redefinindo a
rota. Sempre foi capaz de modificar sua
escritura, impondo-lhe disciplina "até
chegar à forma lúcida e translúcida de
suas últimas publicações", como constata Decio de Almeida Prado.
Intelectual e militante
Ao longo de
seis décadas de vida ativa, foi emergindo
o intelectual e o militante. Sem nunca renunciar ao ensino, à pesquisa ou à escrita, interiorizou a contradição dilacerante
de uma sociedade dividida entre exploradores e explorados, entre ricos e miseráveis. Toda a obra de Antonio Candido
na sociologia contribuiu para melhor devassar como as classes subalternas vivem
e sua enorme vulnerabilidade sob diferentes formas de discriminação. Desde
sempre foi capaz de tomar sobre a sociedade o ponto de vista dos mais desfavorecidos, falando pelos que não têm voz
(nunca pretendendo falar em nome de)
por sua conta e risco, em resistência à
opressão, numa consistente militância
não-partidária, como sinaliza Walnice
Nogueira Galvão.
No vigor dos seus 80
anos, Antonio Candido se
projeta por sua integridade e dignidade em contraste com seus contemporâneos, tendo guardado sempre, consistentemente, uma saudável distância do poder. Ao longo
de sua trajetória, soube
como nenhum outro intelectual viver a
permanente tensão entre continuidade,
adensamento ou superação, como apontou Roberto Schwarz.
Suas intervenções na esfera pública, na
política ou na universidade estiveram
voltadas para ajudar a emergência de políticas mais eficientes para superar a discriminação, o arbítrio, o racismo. Sua
obra é um exemplo vivo -transitando
da sociologia para a crítica e teoria literária- de que os universitários precisam
trabalhar juntos, pondo abaixo as barreiras disciplinares que os isolam e reduzem a meros técnicos de saberes especializados.
Depois dos balanços e visões anteriores
-"Esboço de Figura", aos 60 anos, e
"Dentro do Texto, Dentro da Vida", aos
70 anos-, "Antonio Candido - Pensamento e Militância" é um lindo prolongamento para reencontrarmos "il miglior fabbro" entre os intelectuais brasileiros.
Antonio Candido - Pensamento e Militância.
335 páginas, R$ 20,00
Organizado por Flávio Aguiar.
Editora Humanitas e Fundação
Perseu Abramo (r. Francisco
Cruz, 234, São Paulo, CEP
04117-091, tel. 0/xx/11/
571-4299).
Paulo Sérgio Pinheiro é professor titular de ciência
política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da USP.
EVENTO
Acontece, entre amanhã e o dia 30 de janeiro, no
Memorial da América Latina (av. Auro Soares de
Moura Andrade, 664, tel. 0/xx/11/3823-9605),
uma exposição com a obra completa de Antonio
Candido, em homenagem aos 40 anos de publicação de "Formação da Literatura Brasileira".
Texto Anterior: + livros Resenhas - Jean Marcel Carvalho França: A emergência do Rio de Janeiro Próximo Texto: Lançamentos Índice
|