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O escritor e pensador alemão, autor de "Guerra Civil", fala sobre a brasilização da Europa e de seu novo livro, lançado na Alemanha, em que um dos poemas se refere ao samba brasileiro
Depois da ordem e do progresso
José Galisi Filho
especial para a Folha
Hans Magnus Enzensberger completou 70 anos e meio século de poesia.
No retrospecto de sua carreira, fecha-se um ciclo de estatura clássica, que se
expande por todos os quadrantes do
continente literário: poeta, escritor,
dramaturgo e um dos pensadores
mais incisivos da atualidade.
Autor dos ensaios "Mediocridade e
Loucura" e "Guerra Civil", ele terá
traduzido no Brasil no ano que vem,
pela Companhia das Letras, a sua
principal obra poética, "O Naufrágio
do Titanic".
Na entrevista a seguir, concedida
em Hannover (Alemanha), Enzensberger fala do Brasil e do samba, que é
tema de um dos poemas de seu novo
livro, "Mais Leve Que o Ar - Fábulas
Morais" (leia tradução do poema
"Hit" na contracapa, pág. 5-32).
"Com o samba ocorre hoje algo semelhante ao que aconteceu com o tango
nos anos 20: uma paródia involuntária ou intencional ou mesmo uma
pasteurização sob o rótulo do tal de
"multiculturalismo'", diz o poeta.
Em seu novo livro, há um poema sobre o
samba brasileiro. O sr. vê este gênero musical como um kitsch da "world music" para a classe média européia em férias, em
Palma de Mallorca e Ibiza, ou como uma
reserva de sentimentos tradicionais a serem preservados?
Naturalmente que com o samba
ocorre hoje algo semelhante ao que aconteceu com o
tango nos anos 20 e, hoje, com a música cubana e caribenha: uma paródia involuntária ou intencional,
um travestismo de formas ou mesmo uma pasteurização, sob o rótulo do tal de "multiculturalismo". Isso significaria, entre outras coisas, uma trivialização.
Nem sempre o híbrido nesse campo significa uma
qualidade técnica superior. Da mesma maneira, vejo
a questão da "brasilianização" da Europa, formulada
por Ulrich Beck. Eu a considero também inevitável,
no sentido de que a Europa nos próximos 30 anos será cada vez mais mestiça. Mas o preço a pagar é muito mais alto do que Beck supõe: nenhum idílio, mas
conflitos violentos -com favelas, "gangs" e a insegurança generalizada. São Paulo não é o que podemos chamar propriamente de um lugar de descanso!
Não existe esperança para o Brasil? Estaremos condenados a ser o "resto" da modernização?
O Brasil é um país que acreditou que o futuro estivesse do seu lado e que trabalhava para ele. "Ainda
chegaremos lá", era o slogan, mas o Ocidente há
muito já abdicara dessa ilusão do progresso e sabia
qual era seu preço real. A bandeira brasileira é a única do mundo que ostenta o slogan "ordem e progresso". É um slogan fantástico para um país. E, da
mesma maneira, valeria para o Brasil o que vale para
o fim do período da arte, que continua mesmo depois de decretado o seu
"fim". Quando, há 200 anos, Hegel
decretou esse "fim" ou "superação"
da arte, esta descobriu para si um espaço exclusivo de reflexividade que
impregnou a consciência do moderno -ela continuava, mas adiada, numa crescente auto-reflexão sobre seus
fins e meios.
O progresso para o Brasil dentro da
modernização foi também uma perspectiva sempre virtual e adiada. Esse
"grande futuro", que chegaria na forma de uma "grande potência", quando os problemas estivessem resolvidos com base na "gigantesca vitalidade" do país, simplesmente não chegou. Esse fim nunca chegou, e no seu
lugar apareceu uma outra desordem.
O que vem depois da ordem e do progresso? Sou cético e não vejo a resolução desse problema, no qual (como
ocorre com a arte), o Brasil prossegue,
mas sem uma base de sustentação no
presente. Poderíamos falar que o Brasil relativizou bastante a dialética de
ambos os pólos de ordem e progresso
com a mistura de (Enzensberger fala
em perfeito português) um pouquinho de progresso e regresso.
O que o sr. quer dizer com o verso: "Pois
aquele de que se fala, cala", do livro "O
Naufrágio do Titanic"?
A esmagadora maioria da humanidade não tem voz, e a tentativa de delegá-la e de representá-la na arte é uma
catástrofe. No marxismo houve a tentativa de figurar essa voz na vanguarda do proletariado ou da classe trabalhadora, do partido ou do comitê central como instâncias de representação. A arte ocupou esse silêncio, assim como a
política. É absolutamente problemático falar do fracasso dos outros. Esse funcionário do hotel à nossa
frente... como ele poderia compreender o que está
errado no mundo e falar por essa maioria? Afirmei
poeticamente uma vez que falava dos que não falavam, mas era apenas uma licença poética. Posso
conversar com grande entusiasmo com as pessoas
das favelas brasileiras, mas não posso falar por elas.
O seu último livro fala de "uma poesia mais leve que o
ar", mas este século ficará conhecido como o do naufrágio da subjetividade.
No meu poema do naufrágio não formulo o
"fim", mas a iminência do fim, a aproximação de
um "fim" que será sempre adiado. Enquanto ainda falarmos, esse fim nunca deixará de recuar.
Mas quem dará o testemunho do naufrágio, já que,
como diz o poema, "o fim é sempre discreto", já aconteceu, o iceberg já atingiu a estrutura do sistema?
A filosofia também "acabou". Não temos mais
uma história da filosofia. Quando falamos, adiamos o fim, desejamos adiá-lo até onde nosso fôlego suporta. Quando falamos de "fim", ele não pode estar lá, pois senão não poderíamos falar dele.
O apocalipse é, em primeiro lugar, uma fantasia.
Existem a cada dia "mini-apocalipses", mas a
idéia mesma do apocalipse é que ele seja algo total. O fim do mundo vale para todos, sem exclusão. O apocalipse é uma gigantesca fantasia democrática, quando todos são iguais na queda; na
religião, portanto, o apocalipse não é apenas uma
fantasia de terror, mas a expressão do desejo do
fim nessa igualdade. Mas a realidade não é assim,
podemos estar tendo alucinação com o apocalipse, enquanto na realidade estamos aqui sentados.
O sr. descreve em seu último livro, no poema "Mercado Global", um mendigo que observa o desfile das bugigangas do consumo. Qual é a nova palavra para exprimir "exploração", hoje?
A idéia de exploração é hoje um problema interessante. Milhões de pessoas anseiam desesperadamente por serem exploradas, aguardam um
explorador qualquer. As pessoas esperam que ela
venha, mas ninguém aparece. A maquinização
conduziu a esse paradoxo da demanda. O capital
simplesmente prescinde dessas pessoas. A exploração não é mais o horror do qual antes tanto se
reclamava, e as pessoas esperam ser exploradas.
O grande problema da África é que ela não é mais
interessante, não oferece petróleo, diamantes para os aventureiros, os exploradores não precisam
mais dela. É toda uma situação bastante agravada
em relação ao passado recente do capital.
Com o conceito de "mídia zero", o sr. descreveu um
projeto de apagamento da realidade que nem sequer
as vanguardas históricas ousaram imaginar. Com a Internet, esse limite teria sido superado?
Nossa espécie não tem limites e lança mão de todos os recursos possíveis. Esses novos meios são
prova de uma superação ainda mais radical das
fronteiras anteriores. Neste capitalismo digitalizado, avança-se até mesmo para a supressão da
própria idéia tradicional de realidade. Com a nova biotecnologia, por exemplo, trata-se não mais
da exploração de classes em sentido tradicional,
como um estágio da força de trabalho, mas do
próprio capital genético, no qual bilhões estão
sendo investidos.
José Galisi Filho é doutorando em germanística na Technische Universitaet, de Hannover (Alemanha), e bolsista da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.
A OBRA
"Leichter als Luft. Vorzugsausgabe", de Hans Magnus Enzensberger.
Suhrkamp Verlag. 131 págs., 128 marcos.
Encomendas, em SP, na Livraria Bücherstube (tel. 0/xx/11/240-3735).
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